Por JOE TACHE*
A propriedade privada está na base da gentrificação, do capitalismo e da supremacia branca, nenhum dos quais pode ser reformado por eles mesmos
As cidades dos EUA estão se transformando rapidamente. Os empreendimentos de luxo do “estilo gentrificado” estão substituindo os pontos de referências da vizinhança e as moradias de baixa renda. Cada vez mais, os preços altíssimos dos aluguéis empurraram os moradores pobres para longe dos centros da cidade. Estas tendências são sintomas de gentrificação, o processo pelo qual pessoas pobres e da classe trabalhadora são expulsos de suas comunidades devido ao influxo de investimento capitalista em seus bairros.
A gentrificação nem sempre é definida nestes termos. Alguns citam explanações culturais, do tipo e número de amenidades (tais como cafeterias, ciclovias, etc.) desenvolvidas em um bairro urbano para mudar as normas sociais ao redor das “escolhas de tipos de estilos” (como não ter crianças), definindo a gentrificação como resultado das preferências individuais do consumidor. Ou poderiam defini-la como o resultado de padrões de consumo coletivo, que aparecem em argumentações sobre a “gentrificação gay”.
Alguns definem a gentrificação como um processo das pessoas brancas se mudando para bairros de pessoas negras, empurrando a longo prazo os residentes negros para fora dos maiores centros urbanos tais como Washington D.C., Chicago e Philadelphia. Ainda tem outros que aceitam que a gentrificação é um fenômeno “natural” e inevitável. Em geral, esses grupos veem a gentrificação como um problema de curto prazo a ser corrigido através de ajustes nas políticas, como reformando as leis de zoneamento residencial ou “melhores” escolhas individuais.[1]
Em vez de escolhas individuais ou mesmo políticas, marxistas entendem a gentrificação como um processo que é fundamentalmente provocado pelas leis do capitalismo – como parte e parcela de seu ciclo regular de acumulação de capital – juntamente com o racismo e outras formas de opressão. Neste artigo, explicamos as forças subjacentes que produzem a gentrificação voltando-nos a Marx e Engels antes de cobrir as pesquisas mais recentes e organizar em torno do tema. Ao final, discutimos as implicações práticas de uma compreensão revolucionária sobre a gentrificação.
A moradia sob o capitalismo e os fundamentos da gentrificação
O ponto inicial para qualquer discussão acerca da moradia sob o capitalismo é a mercantilização. Na sociedade capitalista, a habitação – como essencialmente tudo mais – primeiramente é produzida como algo para ser vendido e obter lucros. Seu valor de uso (por exemplo, fornecer abrigo) está subordinado a seu valor de troca (por quanto pode ser vendido). É por isso que milhões de pessoas nos EUA perdem seus lares por despejo ou execução hipotecária a cada ano, enquanto, ao mesmo tempo, há uma abundância de moradias vagas: porque as mesmas permanecerão nas mãos do capital até que elas possam retornar um suficiente valor de troca.
O motivo principal dos capitalistas não é simplesmente gerar um lucro, mas maximizar os lucros indefinidamente. Isto leva aos capitalistas a concentrar seus investimentos nas indústrias e nas regiões geográficas que são mais lucrativas, enquanto simultaneamente extraem ou negligenciam outras áreas. Devido à natureza competitiva do capitalismo, se um capitalista encontra uma área lucrativa, outros logo o seguirão para competir na mesma região, mercado ou indústria. Com o tempo, a competição entre capitalistas reduzirá a taxa de lucros obtida na respectiva área, e o capital sairá da área, agora saturada, para procurar outras áreas para investimento.
O desenvolvimento das cidades capitalistas exemplifica esse fenômeno. No processo de industrialização, os capitalistas investem na construção de meios de produção como as fábricas e máquinas em áreas urbanas, incrementando sua capacidade para produzir e vender mais mercadorias. Como mencionado acima, a movimentação de capital influencia a movimentação das pessoas. À medida que o investimento capitalista se concentrou nas cidades, os trabalhadores também. Muitos se mudaram de áreas rurais, caracterizadas pelo pouco investimento, para as cidades, na procura de emprego.[2]
Entre 1829 e 1920, a porcentagem de residentes nos EUA morando em cidades aumentou de 7,2 para 51,2 por cento. Em O capital, Marx descreve um processo semelhante ocorrendo na Inglaterra, na transição do feudalismo ao capitalismo, escrevendo: “quanto mais rápido o capital acumula em uma cidade industrial ou comercial, mais rapidamente flui a corrente de material humano explorável, mais miseráveis são as moradias improvisadas dos trabalhadores”.[3]
Marx observa as más condições de vida para os trabalhadores e esboça um processo que hoje poderíamos chamar de gentrificação nesta passagem: “A relação íntima entre as dores da fome das camadas operárias da classe trabalhadora, e o consumo extravagante, grosseiro ou refinado, dos ricos, baseado na acumulação capitalista, revela-se a si mesma apenas quando as leis econômicas são conhecidas. Não é da mesma maneira com a ‘moradia dos pobres’. Qualquer observador imparcial pode ver que quanto maior é a centralização dos meios de produção, maior é a consequente aglomeração dos trabalhadores dentro de um determinado espaço; que, portanto, quanto mais rápida a acumulação capitalista, mais miseráveis são as moradias da população trabalhadora. As ‘melhorias’ das cidades, que acompanham o aumento da riqueza, pela demolição de bairros mal construídos, pela construção de palácios para bancos, armazéns, etc., a ampliação das ruas para o tráfego de mercadorias, para os carros de luxo, e para a introdução de bondes, etc., joga os pobres para esconderijos ainda piores e mais lotados. Por outro lado, todos sabem que o preço das habitações está em proporção inversa a sua excelência, e que as minas da miséria são exploradas por especuladores imobiliários com mais lucro ou menos custo do que jamais o foram as de Potosí. O caráter antagônico da acumulação capitalista e, por conseguinte, das relações capitalistas de propriedade em geral”.[4]
Aqui, Marx expõe pontos críticos acerca da habitação sob o capitalismo que até hoje são relevantes. Ele descreve condições extremamente inseguras e exploradoras para os trabalhadores nas cidades. As casas são lotadas e negligenciadas, pois os proprietários lucram com o pagamento do aluguel enquanto reinvestem pouco ou nada desse dinheiro do aluguel para manter boas condições na moradia, porque isso interferiria em sua lucratividade.
As condições eram tão ruins que funcionários do governo da Grã-Bretanha intervieram atipicamente nos direitos do capital ao implementar códigos sanitários habitacionais, não pela bondade de seus corações, mas porque temiam a propagação de doenças e outros riscos sociais. Isto é o que Friedrich Engels encontrou em seu estudo sobre a Inglaterra: “Cada grande cidade tem uma ou mais favelas, onde a classe trabalhadora está aglomerada” em “um território separado… afastado da vista das classes mais felizes”.[5]
Em segundo lugar, Marx descreve uma forma inicial de gentrificação. Porque o capital continuou a se concentrar nas cidades na busca pela expansão dos lucros, os trabalhadores foram deslocados à força de suas casas para abrir caminho às “melhorias” urbanas. Como Marx observa, não houve melhorias nas condições de vida dos trabalhadores, que permaneceram fortemente explorados, mas melhorias no ambiente para a expansão do capital.
Capitalismo e gentrificação na era moderna
Embora os fenômenos fundamentais da mercantilização e do desenvolvimento desigual sob o capitalismo permanecem relevantes para a habitação hoje, o contexto em que ocorre a gentrificação mudou. À medida que o capital saturou cidades com desenvolvimento a sua semelhança ao longo do século IXX e início do século XX, criou barreiras para o desenvolvimento futuro. O geógrafo Neil Smith mostrou que a gentrificação em meados do final do século XX resultou da necessidade do capital de expandir sua capacidade produtiva. O resultado foi a suburbanização – ou o deslocamento da produção e da moradia para fora da cidade, onde a terra era barata e disponível. O capital migrou para novos locais onde pôde ter uma taxa de lucro mais elevada e levou consigo muitos trabalhadores. Como resultado, o valor da terra nas cidades diminuiu, enquanto o valor da terra nos subúrbios aumentou.
Adam Smith formulou a teoria do “rent gap”, que é a diferença entre as rendas atuais do solo e as rendas potenciais do solo que os capitalistas e proprietários-locadores poderiam obter através do redesenvolvimento. O rent gap explica como nos EUA, durante esse período de tempo, o capital deslocou-se da cidade para os subúrbios e vice-versa. A gentrificação acontece quando o rent gap é grande o suficiente para cobrir os custos do redesenvolvimento com um retorno lucrativo suficiente quando os aluguéis são atualizados, e não se limita às cidades.
Grande parte do redesenvolvimento ocorre no “ambiente construído”: prédios, ruas, pontes, armazéns e outras infraestruturas. Este desenvolvimento requer “um grande investimento de capital por um longo tempo”.[6] Uma vez que os investimentos do capital são feitos, o ambiente construído precisa permanecer por décadas, a fim de retornar suficientemente mais-valia para justificar o investimento. O que quer que seja construído não pode ser demolido e ainda retornar valor. O ambiente construído é valorizado aos poucos, à medida que as mercadorias são transportadas nas estradas, os salários são transformados em pagamentos de aluguel e hipoteca, etc. No entanto, à medida que o ambiente construído é usado, também é desvalorizado ao longo do tempo.
A circulação de capital através dos edifícios demora muito mais tempo do que outras mercadorias. As cidades capitalistas inicialmente não foram produzidas “em nenhuma base capitalista, mas às expensas da comunidade ou do Estado” porque não havia capital suficiente para investir por um período tão longo.[8]. Ainda hoje, o Estado é a maior força no desenvolvimento urbano. O Estado não só autoriza a gentrificação, mas também a subsidia. Por exemplo, durante a “Renovação Urbana” das décadas de 1950 e 60, pelo menos 300.000 famílias em todo o país foram deslocadas à força para que suas casas pudessem ser demolidas para dar lugar ao redesenvolvimento pelo capital.
O governo federal financiou tanto a chamada “remoção de favelas”, como os empreendimentos privados que substituíram essas casas da classe trabalhadora. Hoje, governos federais e locais vendem terras públicas valiosas para empreiteiras por centavos de dólar. O Estado orienta a gentrificação através da legislação e as políticas de zoneamento, isenções fiscais, subvenções e outros incentivos, ao mesmo tempo em que ostenta a moral sobre a “praga urbana”, como policiamento e repressão contínuos.[9]
Dado que há uma quantidade finita de terra em cada cidade, uma vez que uma cidade alcança um certo nível de desenvolvimento, as oportunidades de desenvolvimento lucrativo chegam a ser raras. Até certo ponto, os capitalistas já não conseguem investir de forma rentável em bairros reconstruídos, ainda que isso não signifique que capitalistas e locatários deixem de lucrar com as cidades. Já havendo investido capital em edificações e infraestrutura, eles são felizes de lucrar das “minas de miséria”, rejeitando investir na manutenção desses empreendimentos. A longo prazo, isso leva à deterioração das condições em muitos bairros urbanos e inclusive cidades inteiras, com moradias em mau estado e infraestruturas em ruínas.
Um novo ciclo de desenvolvimento e desinvestimento ocorre: “O capital flui onde a taxa de retorno é a mais alta, e o movimento do capital aos subúrbios junto à contínua depreciação do centro da cidade, eventualmente produz o rent gap. Quando esse abismo cresce o suficiente, a reabilitação (ou neste caso, a renovação) pode começar a desafiar as taxas de retorno disponíveis em outros lugares, e o capital flui de volta”.[10]
Este é o ciclo do desenvolvimento, desinvestimento e reinvestimento que produz gentrificação. Os bairros que têm sido negligenciados durante muito tempo são eufemisticamente alvo de “redesenvolvimento” ou “revitalização”.
Opressão nacional e gentrificação
No entanto, a fuga de capital das cidades do interior dos EUA só é compreensível no contexto da supremacia branca e a opressão nacional. Para escapar da estrutura racista do apartheid Jim Crow, pessoas negras migraram do extremo sul para áreas urbanas no norte. Porém, em lugar de encontrar trabalhos decentes e liberdade da segregação racista, “esses migrantes entraram à economia capitalista nos degraus mais baixos, e repetidamente foram os primeiros a sofrer de desqualificação e demissões”.[11] Muitos foram mantidos fora dos sindicatos dominados pelos brancos, que, para esse momento, haviam sido expulsos pelos comunistas.
As pessoas negras haviam sido excluídas dos programas da Administração Federal de Habitação e outros que forneciam empréstimos imobiliários a preços acessíveis para soldados que voltavam da Segunda Guerra Mundial. Em Nova York, por exemplo, as 17.400 casas construídas apenas eram acessíveis para pessoas brancas. Isto ajuda a explicar a natureza urbana das centenas de revoltas pela Libertação Negra nos EUA nos 1960-70, de Watts ao Harlem.
Conforme a revolução tecnológica começou a deslocar um número crescente de trabalhadores, o capital forçou o desemprego crônico nos bairros negros. Crises econômicas interligadas produziram uma recessão na década de 1970, enquanto a massiva terceirização do trabalho industrial expulsou ainda mais trabalhadores das fábricas – especialmente trabalhadores negros.
Para combater a crescente inquietação da população negra e das pessoas oprimidas, a classe dominante dos EUA consolidou-se em torno da resposta “lei e ordem” para reprimir rebeliões políticas. A narrativa que eles construíram equiparava “crime com dissidência política” e “estabeleceu as bases para um enorme incremento dos poderes repressivos do Estado”.[12] As organizações revolucionárias negras e os trabalhadores negros foram alvos e entregues ao crescente aparelho de encarceramento em massa.
A desvalorização dos aluguéis urbanos junto à repressão racista explica o processo de gentrificação nos centros urbanos dos EUA que iniciaram a fins do século XX, e ainda continua até hoje, por exemplo, a política de tolerância zero. Esta estratégia se baseia na tese “Janelas Quebradas” de 1982, que foi publicada em uma revista liberal. A teoria sustenta “que a chave para a redução do crime era que a polícia focasse nos crimes de perturbação da ordem, como vândalos quebrando janelas”.[13] A noção aqui é que os crimes menores como grafite ou vagabundagem, se não forem controlados, levariam a crimes maiores.
A instituição exemplar do que foi eventualmente chamado de policiamento de tolerância zero foi inaugurada pelo prefeito de Nova York, Giuliani, e seu chefe de polícia, William Bratton, que “juraram ‘limpar a cidade’ da ‘escória’ que aparentemente ‘ameaçava’ as pessoas que andavam pelas ruas”. Embora mascarada como uma política de crime, na realidade “é uma estratégia de limpeza social”.[14] Os “valores” que eles articularam eram claramente racistas e anti-trabalhadores, como evidenciado pelo número desproporcional de trabalhadores e pessoas negras presas por violações menores. Tais políticas agora são promulgadas na Nova Zelândia, Alemanha, Irlanda, Espanha, Brasil e outros lugares.
Mesmo depois de quase uma década dos protestos e rebeliões do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), o policiamento de tolerância zero como “parar e revistar” ainda é uma política para conservadores e liberais. O prefeito eleito pelo Partido Democrata de Nova York, Eric Adams, ex-policial e segundo prefeito negro da cidade, concorreu em uma campanha com a promessa de ressucitar a unidade da polícia secreta envolvida em parar e revistar. Em 11 de novembro de 2021, ele disse que estava cumprindo essa promessa.[15] Em um artigo de opinião para o New York Daily Post, Adams disse que “parar, questionar e revistar é uma ferramenta perfeitamente legal, apropriada e constitucional, quando usada inteligentemente” e a chamou de “ferramenta necessária”.[16]
A gentrificação, a instabilidade habitacional e o aumento da repressão estatal que a acompanham, radicalmente aumentam a opressão que já enfrentam os trabalhadores oprimidos por gênero, sexualidade, nacionalidade e habilidade. Como observa Yasmina Mrabet, “as mulheres costumam ser as locatárias e são as primeiras na fila a serem submetidas a despejos em massa. Mulheres com famílias têm dificuldade em garantir moradias seguras, habitáveis e acessíveis devido à eliminação de unidades de tamanho familiar”.[17] O Centro Nacional para a Igualdade Transgênero descobriu que 20% das pessoas trans nos EUA enfrentaram discriminação transfóbica ao encontrar moradia, mais de 10% foram despejadas por causa de sua identidade de gênero.[18] Entre 2016 e 2020, o número de jovens transgêneros em situação de rua aumentou para 88%.[19]
Assim como não podemos entender a gentrificação sem a opressão nacional, não podemos entender a opressão nacional sem o capitalismo (e vice-versa). Em outras palavras, a gentrificação não é o simples resultado de estruturas e atitudes racistas – o que é evidente no fato de que este é um fenômeno global e frequentemente envolve famílias interraciais. Em vez disso, nos EUA, é a supremacia branca junto a outras formas de opressão, aliadas ao capitalismo, são as que produzem e reproduzem a gentrificação.
A batalha contra a gentrificação: Teoria, táticas e estratégia
Esta teoria marxista da gentrificação tem implicações estratégicas e táticas. Ela esclarece que os “gentrificadores” individuais – os trabalhadores relativamente mais abastados financeiramente que podem se mudar a bairros gentrificados por várias razões – não são os condutores desse processo e não são alvos corretos de esforços de organização. Isso não quer dizer que determinados indivíduos ou instituições – como corretores de imóveis, promotores imobiliários, bancos, policiais, etc. – escapem da responsabilidade e fujam da nossa luta. Antes, é importante dizer, que nosso objetivo final não é transformar indivíduos, mas sim transformar a sociedade como um todo, e, portanto, criar a possibilidade de um novo tipo de ser social.
Esta análise nos forneceu um ponto de partida para lutar de forma eficaz. Um processo sistemático como a gentrificação pode apenas ser combatido através da organização coletiva das comunidades da classe trabalhadora que diretamente confronta o capital e seus lacaios. Isso toma muitas formas, incluindo interrupções nos processos de planejamento de empreendimentos de luxo, lutas por reformas como o controle do aluguel que restringe os direitos do capital, ocupações de prédios abandonados e lotes baldios antes de serem construídos, e ações de defesa contra despejos para manter as famílias em seus bairros.
Cada vez mais populares na tomada de direitos sobre a cidade, longe dos trabalhadores, são as chamadas portarias “sit-lie” que proíbem sentar ou deitar nas calçadas durante os horários da tarde e da noite para que as pessoas sem-teto não possam acampar nesses lugares. Organizadores de todo o país derrotaram com sucesso tais portarias e outras, como as que criminalizam a distribuição de comida para trabalhadores necessitados em certas partes da cidade.
Os grupos de defesa contra despejos estão se formando por todo o país para proteger os vizinhos sem-teto de perder o acesso a seus acampamentos. Em Manchester, New Hampshire, uma coalizão local de organizadores impediu com sucesso 11 despejos em sete meses, enquanto em Atlanta, na Georgia, recentemente organizadores evitaram um despejo ilegal por parte da imobiliária Betty Rose LLC, e em Province, Rhode Island, os protestantes acamparam do lado de fora do Palácio do Governo para exigir moradia para todos.[20]
Essas lutas coletivas intermediárias podem fornecer algumas proteções para as pessoas da classe trabalhadora, combater a alienação que é cada vez mais comum nos bairros gentrificados por meio das relações forjadas nessas lutas, e provar para a classe trabalhadora o poder da ação coletiva. Finalmente, e talvez o mais importante, essas lutas unificam nossa classe em confrontos diretos com o capital. Aqui, a natureza antagônica e exploradora do capital fica claramente exposta e abrem-se janelas para o crescimento da consciência socialista. Esses são alguns dos blocos de construção para uma revolução socialista que finalmente acabará com a gentrificação e a miséria generalizada da habitação sob o capitalismo, transformando a moradia de uma mercadoria em um direito humano!
Como Engels assinalou em 1872, o capitalismo nunca pode resolver a questão da habitação, ele só pode “movimentá-la” de um lado a outro, uma resposta que tem forma de gentrificação e deslocamento. Isso porque “a mesma necessidade econômica que os produziu em primeiro lugar, também os produz em segundo lugar”.[21]
A propriedade privada está na base da gentrificação, do capitalismo e da supremacia branca, nenhum dos quais pode ser reformado por eles mesmos. Essencialmente, então, abordar cada um requer estabelecer novas formas de propriedade: propriedade coletiva e comum. Como observa Michael Murawski, “a cidade… constitui o local-chave do fazer e desfazer do socialismo” e “o principal mecanismo que permitiu a construção da cidade socialista… foi a privatização da estrutura proprietária da cidade”.[22] A propriedade – quem tem o direito de usar e excluir, e com fundamento – é absolutamente fundamental para as lutas contra o capitalismo e o racismo.
Assim, enquanto lutamos para cancelar os aluguéis, acabar com todos os despejos e execuções hipotecárias, acabar com o terror policial racista e o encarceramento em massa, e garantir o direito à moradia – todos alcançáveis dentro do capitalismo – não podemos acreditar que essas medidas sejam suficientes. Para resolver verdadeiramente a questão da habitação e acabar com a gentrificação, precisamos de uma revolução socialista que produza cidades e vilas, moradias e parques, redes de transporte e outras amenidades urbanas, por seu valor de uso para as massas e não por seu valor de troca para os patrões. A gentrificação não é uma realidade estática, mas um processo contínuo, e cabe a nós detê-lo.
Joe Tache é arquiteto.
Publicado originalmente em Liberátion School.
Notas
[1] Isso não quer dizer que estes fatores são irrelevantes, mas sim que eles não explicam as forças subjacentes da gentrificação. Por exemplo, Lawrence Knopp argumenta que a gentrificação não pode ser vinculada às comunidades gay de forma geral. Veja Knopp, Lawrence. (1990). “Some theoretical implications of gay involvement in an urban land market”. Political Geography Quarterly 9, no. 4: 337352
[2] Nós vemos esta lógica e este fenômeno nas “terras de uso comum” na Inglaterra, o berço do capitalismo industrial moderno. Esses atos formam parte integrante da acumulação originária do capital que criaram as condições econômicas que forçaram os trabalhadores a abandonarem suas granjas na busca de trabalho assalariado industrial. Os trabalhadores rurais foram desvinculados de seus antigos meios de produção e, para isso, a classe dominante usou o Estado para capturar terras (e recursos) para lançar as bases para a mercantilização da terra e, portanto, das moradias construídas naquela terra.
[3] Marx, Karl (1967). Capital: A critique of political economy (vol. 1): The process of production of capital, trad. S. Moore e E. Aveling (Nova York: International Publishers), 661.
[4] Ibid., 615-616.
[5] Engels, Friedrich. (1845/1984). The condition of the working class in England (Londres: Penguin), 70.
[6] Marx, Karl. (1885/1967). Capital: A critique of political economy (vol 2): The process of circulation of capital (Nova York: International Publishers), 233.
[7] Marx refere-se à produção e a realização do valor com “valorização”
[8] Marx, Capital (vol. 2), 233.
[9] Veja Mitchell, Don. (2020). Mean streets: Homelessness, public space, and the limits to capital (Atenas: University of Georgia Press).
[10] Smith, “Toward a theory of gentrification,” 546.
[11] Puryear, Eugene. (2013). Shackled and chained: Mass incarceration in capitalist America (San Francisco: Liberation Media), 46.
[12] Ibid., 66.
[13] Ibid., 108.
[14] Smith, Neil. (2001). “Global social cleansing: Postliberal revanchism and the export of zero tolerance.” Social Justice 28, núm. 3: 69.
[15] Evans, Dave. (2021). “Mayor-elect dismisses Black Lives Matter threats of riots if NYPD unit resurrected” ABC 7, 11 de Novembro. Disponível aqui.
[16] Adams, Eric. (2021). “How we make New York City safe: Mayor-elect Eric Adams explains why we need stop and frisk and proactive policing” New York Daily News, 28 de novembro. Disponível aqui.
[17] Mrabet, Yasmina. (2018). Not just rich people and cafes: Toward a socialist understanding of gentrification.” Breaking the Chains, 27 de dezembro. Disponível aqui.
[18] O Centro Nacional para a Igualdade Transgênero. (2021). “Habitação e falta de moradia.” Disponível aqui.
[19] Aliança Nacional para Acabar com a Falta de Moradia. (2020). “Transgender homeless adults & unsheltered homelessness: What the data tell us.” Aliança Nacional para Acabar com a Falta de Moradia, 24 de julho. Disponível aqui.
[20] Para exemplos, veja Liberation Staff. (2021). Manchester, New Hampshire: Homeless community at The Bucket resists 11th eviction in seven months. Liberation News, 13 de junho. Disponível aqui; e Ford, Derek. (2020). “Indianapolis movement defeats ruling-class attack on the poor.” Liberation News, 19 de novembro. Disponível aqui; e Binder, Max. (2021). “Protesters sleep in tents outside Rhode Island State House, demand housing.” Liberation News, 05 de dezembro. Disponível aqui.
[21] Ford; Derek; Curry Malott. (2020). “Engels on the housing question: Wishful thinking vs. real solutions.” Liberation School, 27 de março. Disponível aqui.
[22] Murawski, Michal. (2018). “Marxist morphologies: A materialist critique of brute materialities, flat infrastructures, fuzzy property and complexified cities.” Focaal: Journal of Global and Historical Anthropology 82, núm. 1: 19.
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