O ex-capitão servia bem aos propósitos de destruição do “sistema”, isto é, do regime inaugurado com a Constituição de 1988, que buscou juntar democracia política com diminuição da desigualdade social.
Por Bernardo Ricupero*
No dia 16 de março, um dia depois de Jair Bolsonaro confraternizar com seus apoiadores numa manifestação contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente foi surpreendido pela observação: “acabou, Bolsonaro”.
O espanto deve ter sido maior em razão dela ter sido proferida no “cercadinho” do Palácio do Alvorada, espaço onde os admiradores do capitão reformado costumam se concentrar para encontrá-lo no fim do dia, ocasião em que também aproveita para hostilizar os jornalistas ali presentes. Talvez o assombro do primeiro mandatário tenha sido maior já que a advertência foi feita por um negro, ao passo que os frequentadores do local normalmente são brancos e de classe média. Além de tudo, falava com sotaque, aparentemente haitiano, o que permitiu a Bolsonaro esquivar-se, alegando não entender suas palavras.
Chama a atenção a data da observação do haitiano anônimo. No dia 16 de março, o novo coronavírus começava a aparecer no Brasil; ainda não se tinha anunciado nenhuma morte, 236 pessoas estando então infectadas. Uma das manchetes da Folha de São Paulo do dia até observava: “Prevendo quarentena, paulistanos lotam cafés, bares e restaurantes”.
Duas semanas depois – quando já eram 165 os mortos e 4661 os infectados pelo coronavírus no país – a esquerda, finalmente, decidiu ecoar o haitiano anônimo. O manifesto, assinado pelos presidenciáveis Fernando Haddad, Ciro Gomes, Guilherme Boulos, Flávio Dino, pelos presidentes do PT, PDT, PSB, PC do B, PSOL e PCB e outros dirigentes do campo progressista, basicamente repete a afirmação feita no “cercadinho” do Palácio do Planalto: “acabou, Bolsonaro”.
Ou seja, aponta que o presidente é hoje o principal obstáculo no Brasil para o combate da maior pandemia dos últimos cem anos. Pena que uma iniciativa como esta não tenha vindo antes, mais especificamente, entre o primeiro e o segundo turno da eleição de 2018. Muitos sabiam então que Bolsonaro tinha um enorme potencial de destruição, mas ninguém imaginava que poderia ser o responsável pela morte de tantas pessoas.
É verdade que sempre se pode dizer: melhor tarde do que nunca. Também é possível argumentar que a necessidade de se contrapor a Bolsonaro não era tão evidente há um ano e meio. Até porque muitos dos motivos responsáveis agora pelo fim de fato de seu governo foram os mesmos que contribuíram para a sua eleição. Entre essas razões, encontra-se o “estilo”, ou melhor, “falta de estilo” do capitão reformado, o que não é um fator menor em se tratando de um admirador confesso do cel. Brilhante Ustra.
Sinal disso é que para caracterizar os vinte e oito anos de Bolsonaro como deputado é preciso recorrer a termos como violência, grosseria, desrespeito, misoginia, etc. Por outro lado, essas “qualidades” fizeram com que aos olhos de um setor considerável do eleitorado o obscuro parlamentar pelo Rio de Janeiro se diferenciasse de outros políticos. Como todos eles seriam “comunistas”, “corruptos” ou simplesmente parte do “sistema”, abriu-se caminho para que se convertesse em “mito”.
Bolsonaro servia especialmente bem aos propósitos de destruição do “sistema”, isto é, do regime inaugurado com a Constituição de 1988, que buscou, capengamente, juntar democracia política com diminuição da desigualdade social. Liberais estavam prontos a apoiar, de maneira envergonhada ou não, a obra de demolição, já que consideravam esgotado o contrato social da redemocratização. A mídia logo embarcou numa espécie de mantra, repetido à exaustão, de acordo com o qual, o gasto fiscal seria excessivo e tornariam imprescindíveis as “reformas”.
Em compensação, o que se chama de calamidade natural evidenciou o preço dessa obra de aniquilamento político. Prova disso é a inoperância do ministro da Economia, Paulo Guedes, em adotar medidas que aliviem a situação dos mais vulneráveis à pandemia, supostamente aterrorizado pela possibilidade de ser acusado de não cumprir a “regra de ouro” do Orçamento. O contraste é gritante com os EUA, onde um pacote de mais 2 trilhões de dólares foi rapidamente aprovado devido a um acordo bipartidário.
Em compensação, o mais importante instrumento que o Brasil conta para enfrentar o coronavírus é talvez a principal criação da Constituição de 1988: o Sistema Único de Saúde (SUS). Não por acaso, nossos doentes serão tratados na sua ampla maioria no maior sistema de saúde pública do planeta.
Em termos mais profundos, o avanço mundial, nos últimos quarenta anos, do neoliberalismo ajudou a solapar as bases de solidariedade social, tornando-nos mais vulneráveis a uma pandemia como o coronavírus. Esse processo se deu paralelamente à criação do arremedo de Estado de bem estar social brasileiro, os dois desenvolvimentos entrando em conflito e, por vezes, até se confundindo. Mais recentemente, vivemos a uberização do trabalho, em que supostos empreendedores ficam praticamente sem qualquer proteção social.
O mundo e o Brasil depois da coronavírus não podem mais ser os mesmos. Em sintonia com a urgência da situação, no Congresso se ensaiam movimentos de aproximação da esquerda e do centro para o enfrentamento da pandemia. Deve-se ir além e mirar diretamente o principal obstáculo para a ação da saúde pública: o presidente da República. No entanto, o capitão reformado é apenas a expressão de uma orientação mais ampla. E como percebeu o haitiano anônimo: “acabou, Bolsonaro”.
*Bernardo Ricúpero é professor do Departamento de Ciência Política da USP.