Por LUIS FELIPE MIGUEL*
Muita gente criativa e inteligente tem que ganhar a vida em agências de publicidade. É uma pena ver tanto talento desperdiçado, usado para enganar e piorar a vida das pessoas
Ao longo dos século XIX e XX, houve uma mudança no sentido de “publicidade”. De uma exigência de transparência para a esfera pública – publicidade como o procedimento de tornar públicos os atos de Estado – ela ganhou o sentido de propaganda e, portanto, de controle.
Ao mesmo tempo, a publicidade comercial passou a romper a ligação entre forma e conteúdo: entre aquilo que se fala e aquilo sobre que se fala. Como disse David Harvey, “a publicidade já não parte da ideia de informar ou promover no sentido comum, voltando-se cada vez mais para a manipulação dos desejos e gostos mediante imagens que podem ou não ter relação com o produto a ser vendido”.
A instigação ao consumo ostentatório, o fetiche da inovação tecnológica (com a obsolescência programada dos bens de consumo pretensamente duráveis), a exaltação de certos padrões de juventude e beleza: em torno destes núcleos, o discurso publicitário constrói seus “mitos”. E os constrói de forma científica, integrando aportes da psicologia, da sociologia e da semiótica, além das técnicas mais avançadas de pesquisa de opinião, grupos focais e big data.
O bombardeamento publicitário gera sem cessar “necessidades supérfluas” e induz ao consumo conspícuo como único caminho da realização humana. Cumpre, assim, papel fundamental na reprodução do capitalismo.
O consumo compensatório (minha vida é um lixo, meu trabalho é uma porcaria, mas eu vou comprar um carro novo), que a publicidade incentiva de forma incessante, mantém os dominados acomodados no sistema.
O discurso publicitário, embora esteja voltado para a promoção de marcas específicas, sempre afirma a eficácia e utilidade de toda a sua classe de produtos – um anúncio de uma companhia aérea é, por exemplo, a reafirmação da confiabilidade da aviação como meio de transporte; o anúncio de um remédio avaliza a ideia da cura farmacêutica e assim por diante. De maneira mais geral, a publicidade promove a ideia de que o consumo resolve nossos problemas.
Para o público, é uma evasão da qual por vezes é difícil despertar. P. T. Barnum, o famoso mistificador do século XIX, dono de um circo de horrores, pioneiro da propaganda comercial moderna, já dizia que o segredo é entender que o público deseja ser enganado e colabora ativamente para que a ilusão não se desfaça.
Como escreveu o crítico de arte John Berger: “A publicidade está sempre voltada para o futuro comprador. Oferece-lhe uma imagem dele próprio que se torna fascinante graças ao produto ou à oportunidade que ela está procurando vender. A imagem, então, torna-o invejoso de si mesmo, daquilo que ele poderia ser. Mas que é que o torna pretensamente invejável? A inveja dos outros”.
A fim de alcançar o máximo de eficácia, a publicidade tende a agir sempre de acordo com as expectativas de seu público – as “surpresas” são sempre milimetricamente pensadas para não causarem estranheza. Por isso, tende a reproduzir estereótipos e preconceitos.
Nos anos 1980, uma pesquisa sobre a representação dos papéis de gênero na publicidade, encomendada pelo Ombudsman dos Consumidores da Dinamarca, concluiu que o único jeito de conter a reprodução de estereótipos seria proibir toda e qualquer representação de seres humanos em anúncios.
E a publicidade ainda se apresenta como a ferramenta que nos propicia tantas coisas “de graça”. Não pagamos para assistir a TV ou navegar na web porque a publicidade financia para a gente.
Mas, na verdade, nós pagamos. O custo da publicidade está embutido no preço dos produtos. Dependendo do caso, pode significar um acréscimo de 20%, 30% ou até mais.
Muita gente criativa e inteligente tem que ganhar a vida em agências de publicidade. É uma pena ver tanto talento desperdiçado, usado para enganar e piorar a vida das pessoas.
*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica).
Publicado originalmente no Jornal GGN.
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