Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL*
O sonho americano não é mais que uma miragem que, historicamente, tem o fôlego de apenas algumas décadas
Em uma manhã ensolarada de 1958, fosse na Califórnia, fosse nos subúrbios de Gastonia, Carolina do Norte, um americano de certa classe média opulenta poderia montar um Cadillac rabo-de-peixe do ano enquanto ouvia no rádio o doce hit dos Platters ou o rascante canto-do-cisne do saxofonista Jimmy Dorsey, e a vida pareceria de fato toda ela ensolarada. O sol parecia ao alcance de todos. Bastava dar duro. O Cadillac 58 foi talvez o mais imponente monumento de todos os tempos, produzido em série, para a civilização do automóvel. E um lugar como Gastonia superara os anos duros das primeiras décadas do século, em torno das fábricas têxteis (cotton mills), que culminaram na histórica e trágica greve da Loray Mill em 1929, para viver o boom imobiliário dos subúrbios de classe média.
Dez anos antes de voarem para a Lua, os Estados Unidos já tinham alcançado seus anos dourados, e prometiam ao mundo que iam permanecer ali para sempre, apesar das nuvens escuras (e obscuras) que logo se insinuariam. Era, bem ou mal, o sonho americano em seu auge.
Outras seis décadas se passaram, e agora a notícia cabal não veio assim de um modo explícito, como já suspeitava Caetano Veloso a respeito daquelas coisas que podem ter estado ocultas quando não eram muito mais que o óbvio. Mas veio pronunciada de maneira visceral. Muitos a estão tomando como uma convocação à mobilização, mas os mais realistas já sabem que é tarde demais, e que o que impacta é tão apenas a força constatativa da sua crueza e vertigem, regada de melancolia. Adiada o quanto foi possível, a notícia do fim do sonho americano ganhou todas as letras e palavras que precisava nesta semana que passou, e está ressoando intensamente, nessa viciosa ágora da contemporaneidade que é o mundo digital.
Como era de se esperar que acontecesse desde que o século passado no Ocidente consagrou suas linguagens paradigmáticas de expressão, uma notícia assim viria ou da música popular ou do cinema. Provavelmente por seu caráter bem menos domesticado, veio da música. Na quarta-feira, dia 10 de agosto, a RadioWV, um canal bastante novo, presente em várias mídias sociais, dedicado gravar e divulgar música country em registros solo, fora de estúdio e com arranjos os mais econômicos possíveis, mas com tomadas de som de alta qualidade e poucos cortes de câmera, o que reveste a apresentação dos temas de um caráter quase documental, mas esteticamente limpo e sofisticado, postou dois temas de um jovem e desconhecido compositor da zona rural do Estado da Virgínia, Oliver Anthony. Nos cinco dias que se seguiram, um dos temas, “Rich Men North Of Richmond” (“Os homens ricos ao norte de Richmond”) foi acessado mais de nove milhões de vezes no Youtube, outorgando a seu compositor e intérprete fama instantânea.
A despeito de ser um gênero usualmente reconhecido pela marca de um público específico e circunscrito, quase que uma aldeia musical com cacoetes muito pronunciados (e, portanto, facilmente caricaturizáveis), os do mundo caipira norte-americano, alguns elementos combinados parecem ter contribuído para uma recepção pública que ultrapassou em muito suas circunstâncias originais, manifestando virtudes musicais e expressivas de alcance bem mais largo: a voz ao mesmo tempo incisiva, desenvolta e áspera, inusitadamente hábil e rústica de Oliver Anthony; a dicção característica desse gênero de música, que tem como fundamento tradicional contar bem uma história exemplar, para compartilhá-la; o caráter despojado do registro (apenas voz e uma “dobro guitar” – violão com ressonador de metal –, filmadas em um mato com cachorros), o que lhe imprime uma imagem de pureza e “autenticidade”; e, sobretudo, a mensagem direta, explícita e impactante da sua letra, que acolheu a massiva cumplicidade de uma enormidade de gente deixada no acostamento do sonho americano.
Por trás do fenômeno, uma constatação: essa gente agora sabe que é e se expressa como maioria. Assim, ao efeito surpresa somou-se o efeito solidariedade. Eis o registro: https://www.youtube.com/watch?v=sqSA-SY5Hro
A letra da canção pode ser traduzida, de forma condensada, nos seguintes versos:
“Tenho vendido minha alma, trabalhando o dia todo
Horas extras por um salário de merda
Aí, eu posso sentar aqui e gastar minha vida
Me arrastar de volta pra casa e afogar meus problemas
É uma puta vergonha a que ponto o mundo chegou
Para pessoas como eu, para pessoas como você
Queria só poder acordar e isso não ser verdade
Mas é. Ah! É sim
Viver em um mundo novo
Com uma alma velha
Esses homens ricos ao norte de Richmond
Deus sabe que todos eles só querem o controle total
‘Quero saber o que você pensa, quero saber o que você faz’
E eles não acham que você saiba, mas eu sei que você sabe
Porque o dinheiro que você ganha não é merda
E ainda paga imposto a não poder mais
Por causa dos homens ricos ao norte de Richmond
Eu gostaria que os políticos dessem atenção aos pequenos
E não apenas a menores em uma ilha por aí
Senhor, temos pessoas na rua. Elas não têm nada o que comer
Enquanto obesos ordenham o bem-estar
Meu bom Deus! Se você tem um metro e oitenta e pesa 140 quilos
Os impostos não deveriam pagar por seus sacos de rosquinhas
Os jovens estão se enterrando a sete palmos de terra
Porque tudo o que esse maldito país faz é continuar chutando-os pra baixo
Senhor, é uma puta vergonha a que ponto o mundo chegou
Para pessoas como eu, para pessoas como você
Queria só poder acordar e isso não ser verdade
Mas é. Ah! É sim
Viver em um mundo novo
Com uma alma velha”
Algumas elucidações merecem ser feitas. O que fica “ao norte de Richmond” é Washington D. C. Essa geografia sinuosa, disposta indiretamente por um percurso, é um recurso usual nas letras country, que prezam por enfatizar (quando não, quase que absolutizar) a experiência prática pessoal e próxima e, portanto, de um “como chegar até lá”, de uma maneira tipicamente provinciana. De quebra, a receita geográfica aqui serve também para criar uma paronomásia poética entre os “homens ricos” (“rich men”) e a capital dos Estados Unidos (“north of Richmond”). A referência aos “menores em uma ilha por aí” (“minors on an island somewhere”) é uma alusão às ilhas Great St.-James e Little St.-James, no arquipélago caribenho das Ilhas Virgens Norte-Americanas, que eram propriedade do bilionário Jeffrey Epstein, e onde ele oferecia os prazeres sexuais de ninfetas menores de idade a grandes figuras do mundo político e empresarial.
Essa última alusão (tal como o filme “Sound of Freedom”, que ainda não chegou ao Brasil) poderia se justificar apenas por razões humanitárias ou mesmo moralistas, se o puritanismo do discurso político norte-americano da direita mais radical (a alt-right) não tivesse investido pesado na caricatura do “desregramento sexual” de uma elite mundial, especialmente hiperbolizado na imagem da “pedofilia”. Caricatura destinada a estigmatizar o que eles chamam de “esquerda” norte-americana, representada, na verdade, pelo liberalismo progressista, ela produziu há alguns anos a narrativa do Pizzagate, a rigor tão escalafobética quanto a sua engenhosa contraparte do outro lado do espectro político, o Russiagate.
Dessa forma, como canção com um forte sabor antissistema, evocando tropos da discursividade ultraconservadora (também contra os impostos) e saída de um ambiente social notavelmente marcado pela presença do supremacismo branco[1] e de um libertarismo cego, o fenômeno Oliver Anthony foi recebido de forma um tanto esnobe pela revista Rolling Stone como a nova inspiração para os influencers de direita (não custa lembrar que, com desdém análogo, a ex-candidata Hillary Clinton chamou os eleitores insensíveis às verdades politicamente corretas de “deploráveis”).
Esses influencers de direita, por sua vez, se esforçam (inclusive de forma curiosamente orquestrada) por alçar Anthony à condição de porta-voz dos trabalhadores blue-collar. O próprio Anthony, ao se manifestar (musicalmente inclusive) como contrário a todos os partidos políticos (“Republicans, Democrats… Lord, I swear they’re all just full of crap”: “Republicanos, Democratas… Senhor, eu juro que eles estão todos cheios de merda” – do tema “Doggon It”), acaba enfatizando uma posição antissistema, lugar – mais relativo que substantivo – que é hoje o grande ativo simbólico da direita mundial.
No entanto – e aí parece residir a maior incógnita (ou potência indexical) do fenômeno –, a contundência e o alcance da sua mensagem, ainda que Oliver Anthony eventualmente se preste a ser um inocente (ou consciente) útil da alt-right, desvelam um profundo e extensivo mal-estar. Algo parece ter-se definitivamente quebrado no imaginário social norte-americano, deixando num beco irremediavelmente sem saída as certezas liberais que embalam tanto a direita quanto a “esquerda” daquele país. Só que nenhuma das duas vai sair daí para nenhum outro lugar, porque o que se quebrou, se levarmos a sério a sensibilidade de Anthony, foi, na realidade, o sonho americano, aquele da promessa para todos, mas estritamente individual, de opulência e “felicidade”.
O realismo social inconformista nas letras de folk e country está presente desde os duros tempos das indústrias de algodão (cotton mills) do início do século XX. Ao mundo do algodão compareciam o folk dos brancos pobres (mais urbano) e o blues de pretos igualmente pobres (mas mais rural). Apesar de comungarem a mesma pobreza e muitas vezes cantarem músicas parecidas ― ainda que os brancos pretendessem ter o seu próprio blues, o hillbilly ―, viviam segregados; e, se ainda depender dos caipiras dos Apalaches, vão continuar assim, porque assim quis Deus Todo-Poderoso. Numa sociedade como a norte-americana, o inconformismo sempre tem um limite de conformismo absoluto… e quase sempre violento.
O tropo do “homem rico”, do título do tema de Oliver Anthony, é algo relativamente trivial no imaginário folk desde, pelo menos, a composição clássica de Dave McCarn, “Poor Man, Rich Man”, de 1931, que, tal como Oliver Anthony, começava constatando: “When you work in the mill I’ll tell you what you have to do/ You’re up in the morning before daylight/ You labor all day till it gets night” (“Quando você for trabalhar na fábrica [de algodão], vou dizer o que você vai fazer/ Você acorda de manhã, antes de raiar o dia/ E trabalha o dia todo, até anoitecer”). Por essa mesma época, mas de uma perspectiva oposta e de uma maneira desconcertantemente mais oblíqua, Noel Rosa também cantava os três apitos de uma fábrica de tecido (artes da malandragem? ou ofícios de uma outra sociedade, essa, a do privilégio?).
Na canção de Oliver Anthony, o que se expressa é a revolta contra o contrato social rasgado e ludibriado; algo que, historicamente, os norte-americanos sempre fizeram, desde que os colonos usavam “tratados de amizade e comércio” para ludibriar e roubar os índios, passando depois, exemplarmente, pela história bancária norte-americana e chegando, finalmente, aos acordos internacionais jamais cumpridos. Ludibriar e roubar são traços atávicos da constituição sociocultural dos Estados Unidos.
Quando esses traços se tornam mais cruciantes, a miragem presumidamente sagrada do contrato social assume a feição de uma tirania arbitrária. E aqui ela encontra um outro tropo do imaginário popular norte-americano, que só anda bem e alimenta a miragem da legitimidade contratual quando tudo vai bem: os impostos. Quando uma sociedade tem como fundamento do seu cimento relacional não muito mais que um contrato entre indivíduos, tornar a espoliação por demais visível faz da figura do cidadão que paga seus impostos um anacronismo análogo à condição de loser.
A verdade é que nenhum liberal (ou seja, nenhum individualista) jamais reconhecerá que os impostos são o preço, necessário e incontornável, que se paga pela civilização; e que isso é algo que se baseia na suposição do bem comum como precedente lógico da regulação social, frente ao estrito ganho ou proveito individual. Americanos comuns (e liberais, de uma maneira geral) são cultural/ideologicamente condicionados para serem aleijões lógicos, incapazes de apreender que uma sociedade é algo maior que eles. É nela onde se consagram, residem e se reproduzem as tradições, e não em linhagens “de sangue” que remontam sua razão de ser a uma marca de origem.
No caso dos rednecks da Apalachia, eles precisam até de um blues que seja só seu, porque esse negócio de reconhecer partilhas definitivamente não é com eles. Aliás, não é com quase nenhum norte-americano. “Mestiçagem” e transculturação são coisas de latino-americanos, esses caras diferentes que precisam ser contidos nas fronteiras, para não comprometerem o orçamento dos programas sociais, como se oito trilhões de dólares gastos em guerras, apenas nos últimos vinte anos, já não fossem o suficiente. Como em toda sociedade que, na verdade, não dispõe do mecanismo cultural da inclusão, o fundamento do ódio aos imigrantes nunca foi econômico.
Assim, a pungente mensagem de Oliver Anthony não é, a rigor, endereçada a um espírito coletivo, a todo um país, mas apenas, como diz sua canção, a pessoas como ele, que não deixam de ser muitas e, agora seguramente, são a maioria. Mas não há uma invocação de justiça geral, e sim apenas a objetos individuais de justiça contratual, de compensação. Para os norte-americanos é assim mesmo que as coisas funcionam (e para todos os identitaristas, seguidores do mesmo evangelho, também).
E isso significa que a mensagem de Oliver Anthony pode ser muito convincente, tocar os corações, eventualmente mover votantes daqui pra lá, mas não inspirará maiores sensibilidades de regulação social que se atrevam a cogitar algo como o bem comum. A “luta de classes”, resolvida à americana, apenas redobra a aposta no individualismo. Afinal, também classes não devem ser maiores que indivíduos.
É, no entanto, em termos de comparação substantiva, que a mensagem de Oliver Anthony soa mais anacrônica. Na verdade, ela não expressa nenhuma novidade, mas apenas as mesmas coisas ― atualizadas e ampliadas, é verdade ― que as velhas canções dos tempos das cotton mills. Se hoje isso causa espanto a ponto de se tornar um escândalo visceral instantâneo de massas só pode ser porque, ao longo do percurso de pouco mais que um século, o reconhecimento compartilhado do bem-estar “social” nos Estados Unidos desenhou o movimento de uma parábola com concavidade para baixo, cujo vértice pode bem se encontrar naquele ensolarado ano de 1958. Esse agora é o fim do sonho americano. Não um sonho, mas uma miragem que, historicamente, tem o fôlego de não mais que algumas décadas.
E isso, de outra parte, poderia sugerir que uma canção como “Rich Men North of Richmond”, mesmo que interpretada no timbre lancinante de Oliver Anthony, não seria muito mais que o lamento narcísico, birrento e ensimesmado de eternos adolescentes, mimados e sem-noção, a quem caberia perguntar: “sério que vocês nunca se deram conta de que a sua sociedade sempre se moveu exatamente por essa lógica? sério que vocês não fazem mesmo ideia dos danos que ela causou a todo o resto do mundo?”. Parece que só agora alguma dor chegou até eles. Mas agora seguramente seria preciso que se dessem conta de muitas outras coisas, para que eventualmente possam ser, de fato, objeto da empatia de alguém mais; algo que eles, seguramente, não têm por ninguém. Afinal, oh Lord, jamais foram capazes de pôr em questão suas verdades intransigentes.
Enquanto o Império Americano se empapuçava de riqueza, a lógica que sempre moveu a sua sociedade permaneceu astuciosamente obscurecida. E, ainda hoje, cientistas sociais e cultural scholars nativos de lá, sobretudo think tankers das mais variadas plumagens liberais, se dedicam a esse deleite intelectual que Octavio Paz certa feita atribuiu às elites senhoriais latino-americanas: “esa asfixiante retórica a un tiempo nauseabunda y azucarada de gente satisfecha y aletargada por el mucho comer”. A única diferença é que, agora, seu contraponto estriciente emerge na voz de um caipira da Virgínia. E essa é a grande novidade naquele estranho mundo americano.
*Ricardo Cavalcanti-Schiel é professor de antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Nota
[1] Faça-se a ressalva de que, numa das suas pouquíssimas composições que chega perto de ser uma canção romântica, Oliver Anthony refere-se a si mesmo de uma forma social e “racialmente” bastante depreciativa: “I’m poor white trash” (“Sou um pobre lixo branco”) (“90 Some Chevy”).
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