Por LINCOLN SECCO*
Da várzea do Glicério à Liberdade, as igrejas da Boa Morte, do Enforcado e dos Aflitos delineiam um circuito histórico da população negra
A periferia da antiga cidade colonial foi marcada por um espaço-movimento criado pela população negra de São Paulo. Seus marcos são a Igreja da Boa Morte, do Enforcado e dos Aflitos.[i]
A Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte foi erguida em 1810 em terreno adquirido pela Irmandade dos homens pardos. Diz Paulo Cursino de Moura (São Paulo de outrora, p.60): “por cento e doze mil réis”. Situa-se na Rua do Carmo, antiga Rua da Boa Morte. A Igreja da Boa Morte tem uma imagem do Cristo trazida do Pátio do Colégio, e que deve datar do século XVI. A Nossa Senhora da Boa Morte ou do sono que espera a Assunção de Maria (a Dormitio Mariae) tem celebração a 14 de agosto, um dia antes da Assunção.
O templo tem paredes muito largas. Quando o visitamos[ii] havia infiltrações de água e uma pintura descuidada nas paredes. Em 1984 houve uma pequena reforma no forro. A parte interna, cujo acesso na época nos foi permitido pelo Padre Sergio Bradanini tem um Cristo morto, que é usado nas procissões. Partilhando as dependências da igreja, reúne-se a pastoral dos negros.
O enforcado
Prosseguindo o périplo negro, encontra-se o Pelourinho, no atual Largo Sete de Setembro, junto ao Fórum João Mendes. Seguindo para o metrô Liberdade, chega-se à Capela do Enforcado. Sua origem religiosa e política remonta a 1821. O Primeiro Batalhão de Caçadores em Santos sublevou-se. O líder da revolta foi o cabo Francisco José das Chagas (o Chaguinhas). Os motivos: aumento do soldo e igualdade no tratamento de soldados brasileiros e portugueses. A sentença do Chaguinhas: a morte pela forca. No entanto, a trajetória dos revoltosos permite imaginar que estavam imbuídos de um sentimento que foi além da revolta corporativa.
No dia 3 de junho de 1821 houve um ensaio de sedição do II Batalhão do Regimento de Caçadores da capital paulista. No mesmo mês, na noite de 27 para 28, alguns dias depois de empossado o Governo Provisorio da Província de São Paulo, revoltou-se o Primeiro Batalhão de Caçadores em Santos. As ações ultrapassaram a reivindicação de soldos atrasados. De acordo com Toledo Piza, os amotinados arrombaram a cadeia e soltaram os presos, invadiram o paiol e se apossaram de armas e munições; assestaram a artilharia do porto para um navio de guerra português ali ancorado e fizeram fogo: “Em seguida, espalhando-se os soldados em grupos pelas ruas, prenderam as auctoridades, sequestraram os estabelecimentos públicos ou particulares e mesmo puzeram a resgate os homens abastados que conseguiram apanhar”.
A repressão aos amotinados foi a mais severa possível. O nome de Martim Francisco (um dos irmãos Andrada) ficou ligado ao sufocamento da rebelião. Os condenados à morte que eram do litoral foram mortos em Santos. Já o cabo Francisco José das Chagas (o Chaguinhas) e o soldado Joaquim José Cotintiba (ou Conditiba), nascidos serra acima, tinham que ser enforcados na capital “para exemplo dos parentes e amigos”.
Crueldade sem clemência
A compreensão do conflito exige combinar a revolta de baixo com a crise interna do estamento dominante. Em 23 de maio de 1822 uma revolta da elite da cidade impediu que o líder da junta provisória viajasse ao Rio de Janeiro em obediência ao Ministro José Bonifácio. Foi a Bernarda de Francisco Inácio de Souza Queirós. Bernarda era o termo para uma intentona armada e foi interpretada por Toledo Piza como revolta conservadora contra os Andradas. Mas foi considerada por Sergio Buarque de Holanda como destituída de qualquer ideologia.
Simples disputa pelo poder, ela usou o sufocamento da revolta de Santos como motivação para angariar apoio popular contra os Andradas, pois atribuiu-se a Martim Francisco a execução do Chaguinhas. Na verdade, toda a junta governante e o ouvidor da comarca de São Paulo foram cúmplices do enforcamento que se deu sob circunstâncias muito especiais.
Vejamos a descrição de Edmundo Amaral, no seu livro raro, Rótulas e Mantilhas:
“No pateo da cadeia, calçado de pedra meúda, passam vultos de capotes que fluctuam no ar como bandeiras; luzes de azeite luzem na taipa branca dos muros; uma fila de lumes escorre lenta da porta grande. É o cortejo do padecente. Não faltam almotacés, esbirros, milicianos, negros e o carrasco na sua murça vermelha. Na frente, alçada, balançada num rithmo de passos, uma cruz de prata reflecte chammas de vela; logo após, entre um quadrado de lanças, junto ao confessor, descalço, sereno, magnífico, passa Chaguinhas para a forca”.
Possivelmente no dia 20 de setembro de 1821 houve a execução. Primeiro foi o soldado Conditiba. Depois… a corda arrebentou e o Chaguinhas caiu, alegre e vivente. O povo, que a tudo assistia, gritou: “Liberdade!”. Era o costume comutar a pena em casos semelhantes e os presentes foram ao Pátio do Colégio pedir clemência. Ele poderia ser enviado para as tropas de combate do sul ou condenado a trabalhos forçados. Mas Martim Francisco, secretário da fazenda e do interior, consultado, decidiu que se o executasse de novo. A junta governante o apoiou. E assim se fez. Mas eis que a corda arrebentou uma vez mais. E a multidão gritou: “Milagre!”. Entre os presentes estava o futuro Regente Feijó.
De acordo com Toledo Piza “foi, pois, tudo baldado e pela terceira vez Chaguinhas subiu ao patibulo e foi então muito bem enforcado, não mais com corda ordinaria e quebradiça de embira ou do linho” e sim com um laço de “couro trançado de amarrar bois, que se mandou buscar ao matadouro”.
A capela do enforcado
Velas foram acesas e uma cruz foi erguida. Dizem que nem vento, nem chuva apagavam as velas! Depois de muito tempo erigiu-se uma capela, em 1887 (segundo Miguel Milano em seu curioso livro Fantasmas de São Paulo, p. 23). Mas a documentação primária que consultei no Arquivo da Cúria diz que sua primeira missa celebrou-se em 1 de maio de 1891, ano de sua fundação. Sua festa passou a se dar no dia 3 de maio, pois em abril de 1911 a Irmandade de Santa Cruz dos Enforcados solicitou ao vigário foral do arcebispado (São Paulo já se tornara sede de Arquidiocese nessa época), a permissão para a procissão e a festa de 3 de maio.
Conforme documentos existentes no Arquivo da Cúria Metropolitana, a capela sofreu reformas de vulto nos anos 1920. No início do ano jubileu (2000), houve um incêndio provocado por uma quantidade enorme de velas que uma devota ali depositou. O que não foi novidade na história dessa capela, pois outros pequenos incêndios ali ocorreram desde o início desse século XX. Felizmente, o templo permaneceu intacto. A Capela de Santa Cruz das Almas dos Enforcados resistiu. Ou simplesmente “Igreja das Almas”.
Aflitos
Chaguinhas e Conditiba foram levados ao cemitério dos Aflitos. Diz a novena, em seu primeiro dia: “Senhora dos Aflitos, encheu-se vosso coração de amargura ao vos ser negada hospedagem em Belém. Acolhei em vosso cálido coração, os aflitos que padecem desamparados!”. É novena para os deserdados desta vida. É para estes que se erigiu a Capela de Nossa Senhora dos Aflitos.
Sua construção, segundo Paulo Cursino de Moura (São Paulo de outrora, p. 124) data de 1774. Parece ter se equivocado por muito pouco. O antigo Cemitério dos Aflitos, e não a Capela, foi construído em 1775, por ordem governamental. E este cemitério nasceu estreitamente vinculado às necessidades dos negros. Que não tinham acesso às melhores moradas eternas. A capela surgiu só em 27 de junho de 1779, como atestam documentos do Arquivo da Cúria Metropolitana.
É possível que em 1869 tenha havido alguma reforma de monta. Se é que se podia fazer algo de tanto fausto na capela mais escondida do centro de São Paulo. Ela está num beco sem saída. Beco dos Aflitos. Travessa da Rua dos Estudantes. Presa entre prédios que nela se colam e, grudados, têm até uma janela com a face no sino.
Controvérsias
Lendas circulam sobre o Chaguinhas. Dele se disse nos anos 1930 que foi o Tiradentes santista. Que ele e Conditiba foram os únicos executados por serem líderes da revolta. Que a corda rebentou uma quarta vez e ele foi morto a pauladas. Que fugiu para o interior etc.
Chaguinhas era nascido em São Paulo, cidade que contava em 1808 apenas 24.163 habitantes (25% escravizados). Tinha crescido na rua das Flores (atual Silveira Martins).[iii] Perto da Igreja do Carmo. Na falta de mais documentos, recorremos à crônica para observar o Chaguinhas como menino pobre e sem ofício. Sempre às ordens para pequenos trabalhos. Nadando pelo Anhangabaú. Correndo pelas ruas estreitas, como imaginou Nuto Sant’anna em sua ficção histórica, porém arrimada em alguns documentos. Depois, fazendo-se cabo num batalhão em Santos. Mas quase nada se sabe dele.
A combinação do momento político, as circunstâncias inéditas da execução, o tamanho exíguo da população somaram-se às notícias da revolta de Santos. Chaguinhas não foi o único executado. Em Santos outros amotinados foram dependurados num navio. Chaguinhas foi trazido a São Paulo por ser da cidade, como vimos. Por isso é bastante crível que sua condenação tenha chocado o pequeno burgo paulistano. Também vimos que ele serviu de pretexto para uma insatisfação circunstancial de parte da elite paulista, o que atesta a impressão, quiçá revolta, que seu enforcamento provocou.
Boa Morte, Aflitos e Enforcados são capelas que estão ligadas por sua história. Reza a tradição que os escravos, vindos dos baixos do Carmo, da várzea do Tamanduateí, subiam a Tabatinguera. Paravam na Igreja em que pediam uma boa morte. Seguiam ao pelourinho, no atual Largo Sete de setembro. Viam o suplício do condenado. Seguiam até o Largo da Forca (atual Liberdade). Desciam depois ao cemitério dos aflitos. A geografia envolvia a condenação, a tortura, a execução e o sepultamento. Ali o circuito se fechava.
*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê). [https://amzn.to/3RTS2dB]
Referências
Avulsos da Sé, Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, Arquivo da Cúria Metropolitana, pasta nº. 49.
Avulsos da Sé, Capela de Santa Cruz das Almas dos Enforcados, Arquivo da Cúria Metropolitana, pasta nº.52.
Documentos e registros da Comissão de Obras da Capela de Santa Cruz dos Enforcados, Arquivo da Cúria Metropolitana, 1920.
Manuscrito sem título sobre a Capela de Santa Cruz das Almas dos Enforcados, datado de 24 de julho de 1895.
Nossa Senhora dos Aflitos, Documento digitado de Wanderley dos Santos, Arquivo da Cúria Metropolitana, 1978.
Novena a Nossa Senhora dos Aflitos, São Paulo, Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, s/d.
Antonio de Toledo Piza, “O supplicio do Chaguinhas”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Vol. V, 1899-1900.
Caio Prado Jr. Evolução política do Brasil: ensaio de interpretação materialista da história brasileira. São Paulo: Empreza Gráfica Revista dos Tribunais, 1933.
Edmundo Amaral. Rótulas e Mantilhas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1932.
Leonardo Arroyo, Igrejas de São Paulo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.
Miguel Milano. Os fantasmas da São Paulo antiga. São Paulo: Ed. Saraiva, 1949.
Nanci Leonzo. “Um motim e uma polêmica”. Revista do IEB (24), São Paulo, 1982.
Nuto Sant’anna. Santa Cruz dos Enforcados. São Paulo: Tipografia Rossolillo, 1937.
Paulo Cursino de Moura, São Paulo de outrora. São Paulo: Edusp, 1980.
Sergio Buarque de Holanda. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II, 2 vol. São Paulo: Difel, 1964.
Notas
[i] Esse artigo foi reescrito a partir do meu livro de 2.000 Capelas Antigas de São Paulo, o qual nunca foi publicado. Ciro Seiji fez as fotografias. O livro tem sido plagiado em sites católicos e na wikipedia sem menção à minha autoria. Isso porque alguns trechos devidamente assinados por mim vieram a lume num jornal de bairro (O Butantã) e depois habitaram a revista eletrônica Partes. O atual artigo foi reescrito a partir daqueles primeiros textos de mais de vinte anos atrás. Acrescentei novos dados à pesquisa original. Um exemplo de site que tem se apropriado de textos sem menção à autoria é https://www.catolicismoromano.com.br/
[ii] Eu a visitei em 2.000 com Ciro Seiji que a fotografou.
[iii] São Paulo teve uma Rua das Flores, atual Silveira Martins; e uma Travessa das Flores, atual Joaquim dos Santos Andrade, nome de um sindicalista metalúrgico.
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