Por FRANCISCO LOUÇÃ*
A inteligência artificial torna a humanidade mais estúpida
Imagine que no Natal venha a estar disponível uma aplicação que lhe permite fazer a sua própria música a partir de uma mistura de alguns acordes de Sérgio Godinho e José Afonso, poemas da Garota Não e de Fausto Bordalo Dias e uns arranjos de José Mário Branco. Tudo possível ao carregar simplesmente num botão. Haverá direitos de autor que foram extorquidos?
Nada daquilo será de sua lavra, mas boa sorte para quem tentar disputar em tribunal a precedência artística, será dificilmente identificável a inspiração de cada uma das componentes da mistura – e a aplicação pode fazer duas diferentes com os mesmos ingredientes em segundos. A indústria musical pode transmutar-se no futuro imediato e a produção artística pode esgotar-se nesse processo. Esta possibilidade suscita várias questões difíceis.
Produção e meios de produção
A primeira questão é que o meio de produção é novo. A música que sairá dessa aplicação será, ainda assim, um produto cultural, mas é uma nova forma de cultura, que eleva o pastiche, além do roubo da propriedade intelectual, a um novo patamar. A arte, neste caso, será só o simulacro da arte.
Então, produzir-se-á mais não se produzindo nada e a cultura será uma forma de incultura e a inspiração uma artimanha. Para combater este risco, diversos escritores processaram as empresas que oferecem aplicações de inteligência artificial – e há hoje uma corrida nesse mercado – por terem treinado os seus algoritmos com textos seus sem autorização. Piratearam para ensinar um programa a piratear.
As implicações deste sistema são gerais. Antes mesmo da aplicação que estou a imaginar que finja que somos bons músicos, já há uma que permite fingir que se é um escritor, como o ChatGPT. Há já literatura escrita deste modo nas livrarias. E há um pânico nas escolas entre quem se tinha empenhado em estimular a criatividade, pedindo aos alunos que escrevessem ensaios, investigassem e fundamentassem uma opinião, em vez do exame de cruzes. Tudo isso acabou, passou a ser indistinguível um trabalho sério e um ficheiro cuspido por um algoritmo. O sistema de ensino readaptar-se-á recuando ao tempo da chamada oral.
Produção e regulação
A segunda questão é o próprio modo de produção. A sociedade moderna regula a forma de construir um automóvel ou outra máquina: há materiais aceitáveis e outros recusados, os processos são patenteados e verificáveis. Em contrapartida, produzem-se agora algoritmos inverificáveis, o meio de produção cultural do século XXI. Aplicados à criação de artefatos, sejam textos, ou músicas, ou jogos, o seu modo de tomar decisões não é escrutinável: é como se fôssemos proibidos de saber como funciona a caixa de velocidades do automóvel.
O que tem sido mais discutido é como este poder algorítmico gera comunidades autocentradas e recompensa a escalada da agressividade emocional, de que os discursos de ódio são felizes utilizadores. De facto, a hipercomunicação impede os modos conhecidos de intermediação, supera em rapidez qualquer tentativa de confirmação ou desmentido e é direcionável por uma caixa negra que, ao contrário dos outros meios de produção que existem na sociedade moderna, é extralegal, e, portanto, está acima do alcance da regulação.
Mas há outra das suas facetas que começa a merecer atenção: a ambição de nos absorver num mundo virtual que ocupe a nossa vida desde crianças (no Reino Unido, um quarto das crianças até aos quatro anos tem o seu aparelho para ver streaming). O projeto Metaverso esmoreceu, mas foi só o primeiro lance deste jogo.
E, na verdade, a imersão na colmeia digital já conseguiu resultados potentes. A vida virtual é uma ansiedade, altera-nos a noção de tempo, promove a multiplicidade de tarefas e impõe a necessidade de uma sociabilidade reconfortante pela trivialização da comunicação permanente. Na base dessa transição está a colonização da nossa capacidade de leitura e de concentração. A University College de Londres concluiu agora um estudo de cinco anos sobre os hábitos de leitura a partir do registo das pesquisas feitas por milhões de utilizadores em duas grandes bibliotecas, que oferecem acesso a jornais, textos online e outros recursos digitais.
A conclusão é esmagadora: os leitores já não leem, saltitam, ou seja, são conduzidos pelo algoritmo. Usam uma página ou duas de uma fonte, seguem para outro texto, e isto “são sinais de uma nova forma de leitura, em que os utilizadores buscam horizontalmente através de títulos e procuram resultados imediatos. É como se estivessem online para evitar ler no sentido tradicional”, dizem os autores do estudo.
Por esta razão, a Suécia vai deixar de usar manuais escolares online, pois as crianças precisam de aprender a ler um livro. O diretor de Educação da OCDE acrescenta que “quanto maior e mais frequente for a utilização da tecnologia digital na sala de aula, pior será o desempenho dos alunos [até] no teste de leitura digital”. Assim, o meio de produção condiciona a nossa forma de aprender e de pensar, não só na formatação da linguagem como também da nossa memória e imaginação.
As aplicações que parecem oferecer-nos um produto cultural, enganando os nossos amigos, quanto às nossas capacidades musicais, ou os professores, quanto ao estudo, estão de facto a mudar o nosso padrão de atenção e a nossa capacidade de expressão. A inteligência artificial está a mudar a humanidade, tornando-a mais estúpida.
*Francisco Louçã é economista, foi coordenador do Bloco de esquerda de Portugal (2005-2012). Autor, entre outros livros, de A maldição de Midas: a cultura do capitalismo tardio (Cotovia).
Publicado originalmente no jornal Expresso.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA