Por LUIZ MARQUES*
Urge uma decisão radical contrária à cosmovisão guiada pelos interesses imediatistas do capital. Sob diversos e tenebrosos aspectos, atingimos o ponto da irreversibilidade
Ernest Mandel interpretou três fases do capitalismo. A primeira é a do mercado (1700-1850) com o capital circunscrito às nações. A segunda é a monopolista até a década de 1960, em que o boom da reconstrução pós-guerra é marcado pelo imperialismo dos mercados transnacionais e da exploração colonialista. A terceira carimba um “capitalismo tardio”. Alude às corporações multinacionais, à globalização dos mercados e ao consumo de massa. A reprodução do capital arruína os recursos naturais. A sociedade de consumo esgota a lógica produtivista. A superprodução transfere postos de trabalho (“desindustrialização”) ao setor de serviços e precariza os empregos. Acendia-se o alerta.
A catástrofe se armava. Capitalismo tardio (1972), o livro do prócer belga da IV Internacional, “é dos poucos que se pode dizer que ganham atualidade à medida que o tempo passa”, escreve Paul Singer. Mas o modo de produção não colapsara. O ator histórico da emancipação mantinha-se na coxia. Aguardava a hora de entrar em cena para enfrentar os desafios que vinham à consciência.
Atendo-se ao século XX, no prefácio à edição de Ciências humanas e filosofia (1952), Lucien Goldmann classifica de “capitalismo em crise” o período dos movimentos revolucionários de 1917-1923, a hecatombe de 1929-1933, as duas guerras mundiais e o fascismo italiano e espanhol na periferia do centro industrial europeu. A crise evidencia a desorganização do mercado liberal em função do desenvolvimento dos monopólios.
No pós-guerra, advém o “capitalismo de organização” com mecanismos reguladores e intervenções estatais em um contexto de crescimento econômico contínuo, que tem como símbolo maior a construção do Estado de bem-estar social. As categorias do pensador romeno-francês sobre as etapas das estruturas hegemônicas repercutem na academia. As imagens no caleidoscópio ainda não mostravam a forma do terror que, agora, abraça o caos.
A cortina do nonsense
Filosoficamente, a transição do capitalismo em crise para o capitalismo de organização substitui a angústia e a morte pela confiança no futuro cientificista, racionalista. A diferença com o Iluminismo clássico é que, em vez dos valores individualistas, a coletividade adquire a primazia pelo cuidado institucional com a dimensão social dos direitos da população (educação, saúde, trabalho, etc). As conquistas sociais reanimam a esperança. Confrontado com a influência da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (ex-URSS), o capitalismo se obriga a encenar um rosto mais humano.
A literatura desiludida com as carnificinas bélicas (F. Scott Fitzgerald, em Este lado do paraíso) dá lugar à literatura ligada à ficção científica dos avanços tecnológicos, da robótica e do conhecimento alienígena (Erich von Däniken, em Eram os deuses astronautas?). A juventude troca de medos. Durante o Maio de 1968, época de pleno emprego na Europa, estudantes temem perder os sonhos profissionais para os robôs invasores que ameaçam a sua empregabilidade, na próxima quadra. Os hippies, em comunidades alternativas, mapeiam a geopolítica do temor na sociedade. O filme de Dennis Hopper, Easy rider (1969), traduzido como Sem destino, retrata o sentimento em voga.
A ideologia neoliberal torna a “desigualdade” o novo ideal dos Estados. O “desemprego” vira um instrumento para debilitar os sindicatos e a resistência popular. A democracia distancia-se da justiça social. As lutas do trabalho são sufocadas. O cavalo louco do “capitalismo da desregulamentação” ataca as relações socialdemocratas. A violência destrutiva assalta o povo e o meio ambiente com a “biopolítica” e “a nova razão do mundo”. Analistas políticos enfatizam as tecnologias cibernéticas: o “capitalismo de vigilância”, a “sociedade da informação”, o “poder do Big Data”, a” infocracia”, a “inteligência artificial”, os “algoritmos”, a “manipulação da vontade”. Poucos olham para cima e reparam no divórcio litigioso do Homo sapiens com Gaia. Desce a cortina do teatro nonsense.
O futuro que queremos
A Conferência de Estocolmo, no longínquo 1972, foi a primeira realizada sobre o homem e o meio ambiente. Admite os problemas desencadeados pelo processo de industrialização, a poluição e o escoamento dos recursos naturais. A Conferência de Nairóbi, em 1982, acena com a necessidade de recuperação das áreas degradadas e a criação de unidades de conservação ambiental. O Protocolo de Montreal, em 1987, bane os gases nocivos da camada de ozônio. A Conferência do Rio de Janeiro, em 1992, prega a indispensável conciliação do desenvolvimento socioeconômico e a proteção dos ecossistemas. Pinta o precioso conceito de “desenvolvimento sustentável”, esboço da Agenda 21.
O Protocolo de Kioto, em 1997, se compromete em reduzir a emissão de gases poluentes advindos em grande escala dos combustíveis fósseis. Em Johanesburgo, na África do Sul, em 2002, se faz o balanço da Eco-92 com um plano de ação que destaca os recursos naturais e sua utilização racional, a globalização, a miséria, a pobreza e o respeito aos direitos humanos. A Rio+20, em 2012, faz outro balanço das propostas assumidas, sem explicitar “o futuro que queremos”. Compreende-se.
Também em 2012, o Fórum Social Mundial (FSM, Porto Alegre) abre espaços para discussão dos movimentos sociais sobre contrapartidas à metamorfose do planeta. Condena as “elites” econômicas e reivindica mudanças no modelo de desenvolvimento da sociedade, que amplia as desigualdades e destrói a natureza. Propõe o uso de energias renováveis, a utilização dos resíduos orgânicos e a limitação ao consumismo predatório e à opressão dos indígenas. O desmonte absurdo dos órgãos de controle aprofunda as mudanças climáticas, que ora incendeiam e ora inundam as manchetes.
Não a todo fatalismo
A ideia de que o “progresso inevitável” é um trem desgovernado, sem ninguém para puxar o freio de emergência é denunciada com o lançamento do Manifesto Ecossocialista Internacional (2001), assinado pelo intelectual brasileiro radicado na França, Michael Löwy, e um dos ícones do Partido Verde nos Estados Unidos, Joel Kovel. Grupos esparsos nos hemisférios Norte e Sul sinalizam para o perigo que se avizinha, e esbarram em um muro sólido de silêncios sob a batuta das finanças. Para não mencionar o negacionismo sobre o “efeito estufa” que – se queria provas empíricas – já as têm.
Michael Löwy e Joel Kovel alertam para o terrível desastre ambiental que nos espreita e para a consequente recessão ou a depressão mundial. Mais: acusam “o fatalismo internalizado que afirma não existir outra possibilidade de ordem mundial que não seja a do capital”. O Manifesto Ecossocialista é publicado no editorial da revista Capitalism, Nature, Socialism (2002). Passados vinte anos, o muro mostra rachaduras importantes, de alto a baixo.
A última Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), através do discurso histórico do presidente Lula da Silva, estampa a urgência em encontrar soluções para as desigualdades provocadas pelo neoliberalismo e em conter o aquecimento global. Não obstante, os países desenvolvidos relutam em arcar com as despesas para reverter a tendência.
Um consenso forma-se sobre a porta do inferno. Qualquer resposta se coloca entre dois campos. De um lado, a extrema direita que resgata as tendências reacionárias do nazifascismo, no decênio de 1930; de outro, as forças democráticas e socialistas que põem a démarche capitalista em xeque. Trata-se de uma questão de sobrevivência para a espécie humana diante de um espectro devastador.
A jovem sueca, Greta Thunberg, sabe que a briga não é contra “quem tem mais de trinta anos”. A briga tem caráter antissistêmico, mira o estilo de vida regido pelo método de produção e consumo perdulários, insustentáveis. É preciso cobrar atitudes das instituições de governança. A disciplina científica sugerida pelo biólogo Ernest Haeckel, em 1866, a “Ecologia”, contém na nomenclatura Logos (ciência) e o derivativo da palavra grega Oikos (casa, ambiente habitado) – deve integrar o currículo das escolas de Ensino Médio, como a Filosofia e a Sociologia. Antes tarde do que nunca.
Botar o bloco na rua
O grito de socorro foi ouvido por um notável pioneiro do ambientalismo na Terra brasilis, José Lutzenberger, fundador da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN, 1971), autor do Manual de Ecologia (1974) e do Manifesto Ecológico Brasileiro: O Fim do Futuro? (1976). “É possível que já estejamos presenciando o começo da inversão climática global, afetando seriamente a condição da atmosfera. O homem moderno estraga cada uma das peças da engrenagem – e joga areia no mecanismo, preparando o colapso. Chegará o dia em que os flagelados e os mortos totalizarão milhões. Se destruirmos os oceanos, teremos destruído a nós mesmos”, avisou o mestre.
Lutz, como era chamado com afeto, foi ministro do Meio Ambiente do triste governo Collor de Melo. Em conflito aberto com o Comando Militar da Amazônia e o governador do Amazonas, logo é exonerado do cargo (1990-1992). Promove a demarcação das terras Yanomami com 9.664.975 hectares, tamanho superior às dimensões de Portugal. Derrota os inimigos na trincheira, defensores do desmembramento territorial em dezenove condomínios, e aqueles que se julgam donos do Jardim do Éden: o agronegócio, os madeireiros e os garimpeiros com a sua necropolítica étnico-ambiental.
Urge uma decisão radical contrária à cosmovisão guiada pelos interesses imediatistas do capital. Sob diversos e tenebrosos aspectos, atingimos o ponto da irreversibilidade. Degelo dos polos, elevação dos mares, desertificação de terras agricultáveis, calamidades em série já fazem parte da nossa paisagem. É hora de tirar do armário a noção de “revolução”, para botar o bloco na rua. Se o sujeito da história foi o operário de macacão azul, em priscas eras, hoje é 99% da humanidade.
*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.
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