Eram a consolação

Imagem: Jake Michael Singer
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Lúcia Helena Gama

O título do livro pode soar estranho, mas é uma citação de Adoniran Barbosa, em epígrafe:

Quantas dor de cotovelo
Eu bebi na minha vida
Espadona e Parreirinha
Ponto Chique, Avenida,
Outros bares da Ipiranga
Eram a consolação.

Com o subtítulo Sociabilidade e cultura em São Paulo nos anos 1960 e 1970, o volume dá continuidade ao projeto da autora, Lúcia Helena Gama, que abordou um cenário semelhante nas décadas de 40 e 50 (Nos bares da vida, Senac).

A obra é constituída basicamente de entrevistas com vários personagens que viveram o período, e também depoimentos e comentários encontrados em publicações diversas, de jornais e revistas até crônicas e textos literários. São atores, músicos, escritores, jornalistas e estudantes de diversas origens, que gravitavam em torno de bares, restaurantes, livrarias, teatros e cinemas da época, compondo um cenário efervescente de criação, polêmica e agitação política.

Os anos 1960 marcam o deslocamento deste epicentro cultural, muito focado nas faculdades da USP, ainda na rua Maria Antônia e adjacências, o Mackenzie, os botecos da Praça Roosevelt e do Centro Novo, e o início da ocupação boêmia de Pinheiros e Vila Madalena, motivados pela mudança da USP para o Butantã. A PUC, embora relevante, é situada num bairro residencial, de forma que seus estudantes também iam para os mesmos teatros e bares no triângulo Bexiga-República-Consolação.

A música, ou melhor, os botecos com música ao vivo, exerceu um papel fundamental na aglutinação intelectual do período, que viu surgir ali os grandes Festivais da Record, a dita MPB e a música de protesto. Nunca a música popular, o teatro e o cinema estiveram tão identificados em torno de um projeto político que misturava – de muitas formas, às vezes conflitantes – invenção, nacionalismo, revolução de costumes e luta de classes. Não à toa é também o período em que o campo de esquerda se fragmenta, e o golpe de 1964 vai encontrar apoio numa classe média assustada com as mudanças que aquele bando de transviados e transgressoras da “velha ordem” anunciavam ruidosamente em suas manifestações.

É também o afloramento de movimentos identitários, do Black Power, da emancipação feminina, da liberdade sexual proporcionada pelo surgimento da pílula anticoncepcional, e da televisão se tornando a maior mídia em escala mundial, para o bem e para o mal.

Há depoimentos de Plínio Marcos, Maria Adelaide Amaral, Walnice Nogueira Galvão, Marika Gidali, Ugo Giorgetti, Mouzar Benedito, Maria Rita Kehl, Ignacio de Loyola Brandão, Olgária Matos, Roberto Freire, Celso Frateschi, Nair Benedicto, Idibal Pivetta, Rudá de Andrade, Milton Hatoum, Vallandro Keating, Luiz Roncari, João Signorelli, Rita Lee, Dagomir Marquezi e Izaías Almada, entre outros.

Lúcia Gama costura os entrevistados criando uma personagem que vagueia de bar em bar, encontrando com os depoentes. Todos falam no tempo presente (“eu estou vindo de Minas Gerais para estudar”, “estou procurando trabalho no teatro”), o que cria um efeito curioso. A autora revelou que os textos foram adaptados para criar um efeito de estar em tempo real, procurando manter a fidelidade aos fatos.

É inevitável algumas repetições, em vários depoimentos. Uma vez que todos se encontravam nos mesmos bares, cantinas, teatros e cinemas, os nomes de lugares, eventos e pessoas retornam à baila. Talvez uma edição rigorosa reduzisse as quase 500 páginas do livro, mas implicaria em perda de autenticidade. É compreensível que se todos fossem ao Teatro de Arena e depois esticassem no Redondo ou fossem ouvir MPB na Galeria Metrópole, nos anos 1960, isso apareça em muitos depoimentos.

No terço final do livro, que aborda o período da ditadura, aprofunda-se a ramificação dos anseios (ou divisionismo, como diria um velho integrante do Partidão). O movimento gay (ainda não havia a sigla LGBT e suas derivações), a Jovem Guarda criando um novo público e novos locais de afluência da juventude paulista (Rua Augusta), as mulheres se destacando em várias áreas e reivindicando mais, o movimento negro estimulado pelo contato televisivo com o mundo (Panteras Negras, Mohammed Ali, Angela Davis), e Guerra do Vietnã, Maio de 68, Flower Power, Woodstock, Tropicália, Che Guevara, Araguaia, censura, cassações, ditadura.

Lucia Gama insere alguns parágrafos de situação histórica, norteando as falas. Fica claro que os vários sentidos possíveis da construção de uma história oral, vivenciada pelos personagens, criam múltiplas camadas de percepção. Em um cenário turbulento, vozes isoladas revelam dilemas existenciais, políticos, sexuais, éticos, estéticos e comportamentais.

Para quem conhece a geografia e a história de São Paulo, o livro permite várias recordações, principalmente se viveu ali no período abarcado. Há teatros e bares que ainda persistem. Mais melancólica é a situação de quem busca as livrarias ou cinemas citados, todos vitimados pela “força da grana que ergue e destrói coisas belas”.

E, para quem não conhece, o livro é uma boa oportunidade de entender como a maior metrópole do país rivalizou com a capital federal nos anos enfocados, tornando-se epicentro de movimentos culturais e sociais que ainda mostram suas marcas, ainda que fragmentadas, no Brasil do século XXI.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Referência


Lúcia Helena Gama. Eram a consolação: sociabilidade e cultura em São Paulo nos anos 1960 e 1970. São Paulo, Edições Sesc, 2023, 496 págs. [https://amzn.to/3twxXQy]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marilia Pacheco Fiorillo Rodrigo de Faria Fernão Pessoa Ramos Tarso Genro André Singer João Paulo Ayub Fonseca Anselm Jappe Alexandre de Freitas Barbosa Luiz Roberto Alves Osvaldo Coggiola Paulo Capel Narvai Gabriel Cohn Priscila Figueiredo Otaviano Helene Michael Roberts Armando Boito Leonardo Avritzer Luís Fernando Vitagliano Remy José Fontana Marcos Silva Liszt Vieira José Machado Moita Neto Mariarosaria Fabris José Luís Fiori João Carlos Salles Eliziário Andrade Francisco Fernandes Ladeira Tadeu Valadares Ricardo Abramovay Francisco de Oliveira Barros Júnior Maria Rita Kehl Claudio Katz Francisco Pereira de Farias Plínio de Arruda Sampaio Jr. Bernardo Ricupero Rubens Pinto Lyra Ricardo Fabbrini Mário Maestri José Micaelson Lacerda Morais Marcelo Guimarães Lima Carla Teixeira Atilio A. Boron Alysson Leandro Mascaro Eleonora Albano Paulo Nogueira Batista Jr Boaventura de Sousa Santos Antonino Infranca João Sette Whitaker Ferreira Ronaldo Tadeu de Souza Alexandre de Lima Castro Tranjan Valerio Arcary Marjorie C. Marona Luiz Eduardo Soares Andrew Korybko Sandra Bitencourt Antônio Sales Rios Neto Chico Whitaker Michel Goulart da Silva José Geraldo Couto Eugênio Bucci José Dirceu João Adolfo Hansen Samuel Kilsztajn Eugênio Trivinho Sergio Amadeu da Silveira Luciano Nascimento Leonardo Sacramento Andrés del Río Ari Marcelo Solon Walnice Nogueira Galvão Celso Favaretto Vinício Carrilho Martinez Dênis de Moraes Annateresa Fabris Leda Maria Paulani Celso Frederico Milton Pinheiro Paulo Martins Salem Nasser Julian Rodrigues Fernando Nogueira da Costa Heraldo Campos Gilberto Maringoni Alexandre Aragão de Albuquerque Jorge Branco Manuel Domingos Neto José Costa Júnior Renato Dagnino Érico Andrade Berenice Bento Airton Paschoa Denilson Cordeiro Caio Bugiato Tales Ab'Sáber Ronald León Núñez Luiz Bernardo Pericás Daniel Afonso da Silva Gilberto Lopes Henry Burnett Carlos Tautz Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Flávio R. Kothe Thomas Piketty Marcus Ianoni Jorge Luiz Souto Maior Ricardo Musse Eduardo Borges Antonio Martins Ladislau Dowbor Everaldo de Oliveira Andrade Bruno Fabricio Alcebino da Silva Benicio Viero Schmidt Jean Marc Von Der Weid Lorenzo Vitral Daniel Brazil Luiz Werneck Vianna André Márcio Neves Soares Vanderlei Tenório Vladimir Safatle João Feres Júnior Lucas Fiaschetti Estevez Fábio Konder Comparato Leonardo Boff Henri Acselrad José Raimundo Trindade Ricardo Antunes Michael Löwy Afrânio Catani Eleutério F. S. Prado Lincoln Secco Daniel Costa Marcelo Módolo Rafael R. Ioris Luis Felipe Miguel Gerson Almeida Juarez Guimarães Matheus Silveira de Souza Luiz Marques Bruno Machado Dennis Oliveira Kátia Gerab Baggio Ronald Rocha Slavoj Žižek Elias Jabbour João Lanari Bo Luiz Carlos Bresser-Pereira Marilena Chauí Bento Prado Jr. Jean Pierre Chauvin Marcos Aurélio da Silva Yuri Martins-Fontes Manchetômetro Igor Felippe Santos Flávio Aguiar João Carlos Loebens Paulo Sérgio Pinheiro Luiz Renato Martins Alexandre Juliete Rosa Paulo Fernandes Silveira Chico Alencar

NOVAS PUBLICAÇÕES