Por JEAN MARC VON DER WEID*
A ponta de lança da massa de manobra do golpe era o seu braço miliciano, os clubes de tiro, onde centenas de milhares de supostos CACs, fortemente armados e municiados, se organizaram para atuar como força auxiliar do golpe, preparados a criação do caos no país.
Escrevi uns sete ou oito artigos sobre as ameaças de golpe nos anos Bolsonazi, perdi a conta. Debati com vários compas que chegaram a me acusar de alarmista. Segundo estes bravos companheiros, um golpe militar seria impossível pois, segundo eles, o imperialismo americano era contrário, assim como a classe dominante, ou a grande imprensa. Depois de um ano de investigações sobre o assalto aos palácios da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro, dia da infâmia, está na hora de se fazer um balanço dos acontecimentos e das suas consequências para o futuro.
O argumento da impossibilidade material de um golpe sem a anuência do imperialismo americano tem um ranço histórico baseado em fatos reais que se sucederam desde o começo do século passado, com a afirmação da chamada “doutrina Monroe”. Enunciada pelo presidente dos Estados Unidos à época, ela defendia o “direito” do império, então em formação, de intervir em qualquer país em sua “esfera de influência”.
Esta definição, formulada inicialmente para os países vizinhos ao sul do Rio Grande na américa Central e no Caribe, foi a base de inúmeras ações militares diretas das FFAA dos EUA. Sem ter sido reformulada formalmente a doutrina foi sendo estendida para o resto do mundo, desde que a primeira Grande Guerra provocou a decadência dos impérios coloniais europeus e se espalhou mais ainda depois da Segunda Guerra Mundial, com o surgimento da Guerra Fria.
Os EUA passaram a assumir o papel de xerifes do mundo, em uma estratégia de contenção da expansão do comunismo. A onipresença do império americano, quer por ações militares diretas como na Indochina, ou indiretas, por ações da CIA, era uma realidade concreta com a qual todas as forças progressistas (e não só os comunistas) tiveram que lidar. No entanto, a onipotência imperial foi derrotada em vários momentos, em plena guerra fria, sendo as mais flagrantes a vitória da revolução cubana, e a derrota militar americana no Vietnam, Camboja e Laos.
Em tempos mais recentes o império se meteu em outras enrascadas, Afeganistão, Síria, Iraque, Nicarágua, Irã, sem ordem cronológica e sem avaliação do grau de desastre em cada caso e sem esgotar os exemplos. O fato notório é que o império já não tem o poder que dispunha no pós-guerra e anos cinquenta/sessenta. Mas o exemplo mais interessante para nós talvez seja o do golpe militar do general Velasco Alvarado no final do ano de 1968, no auge do poder do império. Um golpe nacionalista e populista que expropriou as empresas mineradoras e petroleiras americanas e promoveu uma reforma agrária avançada.
No caso presente, temos uma situação na qual o governo e as forças armadas americanas sinalizaram no público e no privado que não apoiariam uma intervenção militar. A grande imprensa deu o mesmo recado e uma parte do PIB se manifestou na mesma direção. A exceção foi o agronegócio, setor que apoiou abertamente a iniciativa golpista de Bolsonaro. E alguns outros empresários de diversos setores da economia, mas sem um endosso de suas entidades de classe.
O setor político também ficou de fora da empreitada, salvo a importante minoria bolsonarista no Congresso e alguns governadores eleitos na onda fascista de 2018, com destaque para o Ibaneis do DF. Por outro lado, o golpismo campeava entre a oficialidade das três forças, de tenentes a generais, sem falar na vociferante militância golpista dos clubes militares. Completa o quadro a adesão de partes da Polícia Federal e a maioria dos policiais rodoviários federais, além das polícias civis e militares estaduais.
Diz-se que um golpe precisa de apoio popular para triunfar e isto foi verdade em 1964. Então, como agora, as igrejas (católica no passado e evangélica no presente) mobilizaram amplamente suas bases para “deter o comunismo anticristão”. Mas o instrumento de opinião e de mobilização mais poderoso não existia em 1964, as redes sociais da internet. A chamada bolha bolsonarista tinha (e ainda tem) enorme influência na opinião pública, mais do que os canais tradicionais de informação.
E a máquina do chamado “gabinete do ódio” agiu desde o início do governo do energúmeno para clamar por um golpe militar que desse plenos poderes ao presidente. A ponta de lança desta massa de manobra era o seu braço miliciano, os clubes de tiro, onde centenas de milhares de supostos CACs, fortemente armados e municiados, se organizaram para atuar como força auxiliar do golpe, preparados para interromper rodovias, destruir linhas de transmissão de energia e outros alvos para a criação do caos no país.
Jair Bolsonaro orquestrou este processo, açulando os diferentes atores, com o objetivo de pressionar as Forças Armadas para intervirem na ordem institucional. Como muita gente está dizendo agora, faltou muito pouco para não haver o golpe.
Porque não houve o golpe? Acho que o golpe poderia ter sido dado sem o apoio do imperialismo ou da maioria do PIB (até porque esta maioria nunca teve qualquer identidade sólida com os princípios democráticos) ou da maioria da grande mídia. Como dizia Mao Tse Tung, o poder está na boca do fuzil e a imensa maioria das pessoas armadas no país era favorável ao golpe. Para completar, o bolsonarismo golpista tinha mais capacidade de mobilização de massas do que os democratas e a esquerda.
O que travou o golpe foi, inicialmente, uma questão de avaliação política ou de indecisão política da cúpula do golpismo. Depois das provocações do 7 de setembro de 2021 e da dura reação do Supremo, Bolsonaro não viu condições para provocar a intervenção militar naquele momento. Apesar do apoio da “bolha”, expresso em grandes manifestações, estas estiveram muito longe do que ele esperava. Segundo alguns informantes, ele previa um milhão em Brasília e outro tanto no Rio de Janeiro e foi aplaudido nos seus delírios por apenas 10 e 5% dos manifestantes esperados. Talvez tenha sido o seu teto de apoio mobilizado ou ele não tenha avaliado o quanto seu comportamento na pandemia o tinha desgastado.
O fato é que Jair Bolsonaro recuou e fez um acordo com Arthur Lira e o Centrão, visando ganhar tempo para se recuperar. O energúmeno entrou em 2022 apostando cada vez mais na vitória nas eleições ou (no que eu chamei de estratégia de bola ou búlica) na denúncia de suposta fraude eleitoral, para o caso de derrota. Gastou mais de meio trilhão em benesses tentando comprar o voto dos mais pobres e teve um relativo sucesso, contra todas as expectativas. Chegou atrás de Lula no primeiro turno, depois que este deu um show de mobilização levando milhões às ruas na sua campanha, mas ainda tinha chances de levar o segundo turno.
O já famoso vídeo da reunião golpista no palácio mostra as divergências na cúpula, com uns pedindo o golpe antes do segundo turno e outros acreditando na vitória eleitoral. Enquanto isso, os esforços por desmoralizar as urnas eletrônicas continuaram, com a colaboração do exército. A derrota no segundo turno foi no fotochart, e Lula tem que agradecer a atual ministra do planejamento, Simone Tebet, pelos dois milhões de votos que fizeram a diferença. Ganhou mais o antibolsonarismo do que o lulismo, embora Lula e, sobretudo o PT, não tenham assimilado esta lição.
Com Jair Bolsonaro não reconhecendo a derrota, a sua base de apoio ficou em pé de guerra, com os mais fanáticos acampados à frente dos quartéis, com uma evidente simpatia dos militares, que chegaram a lançar manifestos de apoio assinados pelos comandantes das três forças. O que faltou para o golpe ser dado? Segundo as informações abertas recentemente ao público pela Polícia Federal, os comandantes das três forças se dividiram, com o da marinha apoiando o golpe, o da aeronáutica fingindo de morto e o do exército, depois de prolongada pendura no muro, se opondo. “O golpe representa 20 dias de euforia e 20 anos de problemas”, teria dito o general Freire.
Não me lembro se a palavra era “problemas” ou “angústias”, mas não importa. Não é uma declaração em defesa da democracia, claramente. É apenas o temor de que o golpe não daria certo depois da euforia inicial. Mas o fato é que o comandante em chefe do exército não se dispôs a apoiar o golpe, mas também não se dispôs a denunciá-lo.
E o que se passou com os comandantes de tropa? Os generais do alto comando tinham realizado uma reunião, creio que entre os dois turnos, e filtrou a notícia de que três dos comandantes de tropa tinham se colocado contra o golpe e começaram a ser hostilizados pela máquina do gabinete do ódio. “Melancias”, verdes por fora e vermelhos por dentro, foi o mote da campanha. O atual comandante do exército, Tomás Paiva, era um dos fustigados. Mas e os outros? Fica-se com a impressão de que o resto dos generais (8 ou 9) era a favor do golpe e pelo menos um deles comandava uma unidade chave para um golpe, o Comando Militar do Planalto.
Outro personagem chave não comandava tropas, mas as coordenava, na confusa hierarquia do exército. Trata-se do general Theóphilo, que coordenava as unidades de elite operacionais, inclusive o batalhão para o qual o coronel Mauro Cid estava nomeado e prestes a assumir quando houve o badernaço do dia 8 de janeiro. Estas tropas operacionais são conhecidas como os “kids pretos” e representam a elite de combate, o equivalente dos seals americanos. Se é fato que elas não foram mobilizadas oficialmente, também é fato de que o general Theóphilo reuniu um número indeterminado de oficiais destas unidades em Brasília. Muitos comentaristas suspeitaram de uma intervenção de gente treinada, usando capuzes (balaclavas ou passamontanhas), tanto na ação contra o STE e a polícia federal no dia da diplomação de Lula, como nos atos do dia 8 de janeiro. Teriam sido os kids pretos?
Com a divisão no alto comando do exército e entre os comandantes das três forças, uma reunião de oficiais superiores do exército cometeu um ato de indisciplina explícita, divulgando uma carta assinada e dirigida ao seu comandante, general Freire Gomes, instando-o a “intervir”, senha para o golpe. Não deu resultado, mas mostra que a oficialidade que comandava a tropa destinada a realizar a operação golpista estava disposta a “virar a mesa”. E o general comandante sob o qual as unidades mais importantes estavam subordinadas, o general Arruda, do Comando Militar do Planalto, estava na mesma linha.
Aparentemente, as condições para o golpe, do ponto de vista operacional, estavam dadas, mesmo sem o apoio do general Freire Gomes, mas contando com a sua neutralização, já que se manteve em silêncio nestes dias tensos. Uma vez dada a ordem de marcha, Brasília e todas as instituições da República estariam sob controle, inclusive com a prisão do presidente do TSE, Lula e seus ministros. O Congresso seria colocado diante de um fato consumado e solicitado a votar o Estado de Sítio. Alguém acha que o voto seria contrário? Mas não houve ordem de marcha, Jair Bolsonaro não assinou o decreto preparado por seus assessores e por ele “aprimorado”.
O energúmeno não ousou pagar para ver se os três generais “melancias” engoliriam a manobra ou se declarariam em estado de rebelião contra uma ordem anticonstitucional. Na lógica da alta contaminação bolsonarista entre os oficiais de nível médio, brigadeiros, coronéis e majores e inferiores, capitães e tenentes, os generais de quatro estrelas que não aderiram ao golpe seriam paralisados ou mesmo destituídos pelos seus subordinados.
É curioso que Jair Bolsonaro não tenha tentado o seu golpe quando ainda estava no governo e era, formalmente, o comandante em chefe das Forças Armadas. As minutas do decreto golpista só faziam sentido enquanto ele estava no poder, mas as conversas surpreendidas em celulares mostram uma fúria impotente da cúpula golpista, Augusto Heleno, Braga Neto e outros. Estas conversas também apontam para um fato importantíssimo: “de general de divisão para baixo todos estão a favor (do golpe)”. Um general do alto comando (Theóphilo), pelo menos, foi pego cobrando de Bolsonaro que assumisse a ordem do golpe. Na fervura política à frente dos quartéis os ensandecidos pediam a intervenção dos coronéis com os quais estavam lidando há semanas ou meses. Mas a ordem não saiu. Jair Bolsonaro enfiou a viola no saco e foi bater um papo com o Pateta na Disney.
Acovardaram-se? Alguns dizem que foi só uma tática enquanto se preparava a tomada violenta dos prédios públicos na praça dos Três Poderes. Pode ser, mas deve-se convir que as coisas ficaram bem mais difíceis para os golpistas depois da posse de Lula, apesar de todo o aparato das Forças Armadas ter continuado intocado, com todo o seu bolsonarismo e golpismo. O ato do dia 8 é um segundo golpe, ou uma rearticulação do primeiro em novas condições. A meta passou a ser provocar o caos para cobrar uma GLO em Brasília, colocando o executivo sob uma incomoda vigilância armada hostil. Tudo isto vai ter que ser esclarecido pela PF, porque não está nada claro o desenrolar possível desta trama golpista. Há quem diga que os generais passaram de uma posição de afastar Lula para uma de negociar com ele em posição de força.
Durante a intentona do dia 8, os comandos militares mostraram mais ousadia do que durante a articulação do complô golpista em novembro. Peitaram o ministro da Justiça e a volúvel polícia militar do DF, que pela manhã e tarde assistia, bonachona, o quebra-quebra e de noite estava pronta para prender os manifestantes. O comandante militar do Planalto, um dos que estariam dispostos a apoiar um gesto golpista de Jair Bolsonaro, colocou seus tanques defendendo os manifestantes acampados. Ao que parece era uma opção extrema para salvar parentes de militares que estavam nesta massa a ser presa. Negociou-se o adiamento das prisões para o dia seguinte, permitindo-se que os protegidos fossem retirados, deixando-se a massa de manobra para ser detida e processada.
A recusa da GLO por Lula, a frente antigolpista dos representantes de todos os três poderes (inclusive o ubíquo Lira), o clamor nacional e internacional contra a intentona e a firmeza do STF foram decisivos para colocar o golpismo na defensiva. Mas há uma grande dúvida neste desenlace. Quem são os responsáveis? Como vão ser punidos? A resposta a estas questões definirá o futuro da democracia no Brasil.
Os inquéritos da PF e do STF estão fazendo a sua parte na devassa do golpismo. Temia-se que ficassem na arraia miúda, no gado ensandecido que foi massa de manobra no 8 de janeiro, mas o último operativo realizado começou a chegar nos graúdos, inclusive militares. E já surgem indicações de que vão chegar nos megafinanciadores deste processo subversivo, notadamente os empresários e entidades do agronegócio. Políticos que se misturaram com os golpistas também começam a aparecer nas investigações. Tudo isso indica uma vontade de ir fundo na erradicação do mal, mas continua a apreensão, entre os democratas e republicanos, sobre a extensão desta cirurgia.
A chave do problema está no grau de profundidade das investigações nas Forças Armadas. Na Polícia Militar de Brasília, a cúpula do comando em janeiro de 2023 está sendo processada e pode ser condenada em breve. Mas há dúvidas sobre até aonde irá a responsabilização dos infratores nas três forças.
A posição do Exército, pela palavra do seu comandante, general Tomás Paiva, busca “separar a instituição dos delinquentes”. Em outras palavras, admite-se que se processem e condenem, eventualmente, os oficiais de vários níveis, inclusive generais de quatro estrelas, tanto da reserva como da ativa, mas está sendo armada uma narrativa que separa os “ativos” dos “passivos”. Ativos são os Braga Netos, Garniers, Helenos, entre outros bem identificados na última operação e o próprio Bolsonaro, é claro. Passivos são o general Freire Gomes e o brigadeiro Batista Júnior, “que resistiram à proposta de golpe”. Segundo o general Tomás até o general Theóphilo estaria nesta categoria, apesar de ter convocado uma reunião conspiratória de oficiais dos agora famosos “kids pretos”.
Não se tem detalhes desta reunião nem de seus desdobramentos, mas o argumento de que o general em questão não tem controle operacional sobre a tropa é bem fajuto. Mauro Cid também não tinha comando operacional sobre tropas e ninguém duvida da sua responsabilidade. A posição do Exército parece ser a de que os “passivos”, erigidos quase em heróis defensores da democracia por não terem aderido ao golpe, não tem culpa no cartório.
O fato inegável é que foram muitos os oficiais superiores que souberam e discutiram a proposta de golpe, inclusive todo o Alto Comando do exército e, provavelmente, os Altos Comandos das outras forças, já que seria de todo improvável que os comandantes se posicionassem (pró ou contra o golpe) sem saber qual a posição de sua retaguarda imediata.
Saber do golpe, discuti-lo e, sendo contrário, calar, também é crime, embora menos grave do que o dos que aderiram à intentona. Nem discuto aqui as motivações dos ditos “passivos”, e o que vazou não mostra uma defesa da ordem constitucional, mas uma avaliação pessimista com os resultados do golpe.
Um outro nível de delinquência é encontrado na postura dos comandantes dos quartéis que abrigaram e apoiaram os civis acampados por meses a fio. Alguns deles fizeram discursos aos insurretos que se aglomeravam nas suas portas. Como vão ser tratados estes coronéis? Serão investigados e processados?
E aqui é preciso registrar que, enquanto o comandante do exército procura salvar o máximo de oficiais delinquentes, os órgãos que investigam e julgam militares que não cumprem o seu dever constitucional e disciplinar, as Promotorias e Auditorias Militares e o Superior Tribunal Militar estão caladinhos, como se todo este alvoroço não envolvesse grande número de oficiais de vários níveis.
E qual o comportamento de Lula neste processo? Lembremos sempre que o presidente da República é o comandante em chefe das Forças Armadas. Jair Bolsonaro usou este poder sem vacilar, limpando comandos das três forças e o ministro da Defesa quando achou que não estavam suficientemente obedientes aos seus intentos golpistas. Lula engoliu um sapo atrás do outro desde a sua posse, nomeando um pau mandado dos militares para ministro da Defesa, não mexendo no GSI e na ABIN, repletos de agentes bolsonaristas que participaram dos eventos do 8/1 e só tirou o general Arruda do comando do exército depois que ele peitou o governo no caso da nomeação do coronel Mauro Cid, apesar de toda a óbvia ligação do mesmo com os atos subversivos.
Mesmo este “enfrentamento” foi bastante suave e a nomeação do novo comandante seguiu o caminho de menor atrito que foi a escolha do oficial general mais graduado, o general Tomás. Talvez tenha sido sorte do Lula que este general tenha adotado uma postura chamada pela imprensa de legalista, mas o histórico do general Tomás está longe de gerar confiança e segurança na sua posição. Lembremos que ele foi o primeiro oficial graduado a promover a candidatura de Bolsonaro à presidência, ao permitir, em claro arrepio aos preceitos militares, que o energúmeno se lançasse em uma cerimônia de graduação de oficiais na AMAN, já em 2014.
Admito que Lula tinha poucas alternativas ao optar pelo general Tomás. Afinal, o bolsonarismo dominou a quase totalidade da oficialidade, não só por ideologia (muitos se inscreveram nos cursos de Olavo de Carvalho), mas também por interesse, já que Bolsonaro abriu a torneira de benesses para os da ativa e os da reserva.
Lula engoliu um sapo cururu dos mais cascudos com o enfrentamento de seu ministro da Justiça e o interventor na segurança de Brasília com o oficial comandante do QG do Exército em Brasília no dia 8/1, com direito a mobilização de tanques em defesa dos delinquentes que voltavam da depredação na Praça dos Três Poderes. Seu ministro da Defesa tomava a defesa…dos insurrectos. E o pano ficou puído de tanto ser passado.
Neste episódio, o sinal dado pelo governo para as Forças Armadas, pegas em flagrante delito de conspiração, foi de acuamento. Quando o general Arruda forçou a mão, defendendo a nomeação do coronel Cid contra a vontade de Lula, o caldo entornou e quem perdeu foi o general, sem que houvesse qualquer reação dos quartéis. Este fato mostrou que o esquema golpista estava mais acuado ainda do que o Lula, e sem força para reagir. Mesmo assim, não houve limpeza de área nos altos comandos, apesar da óbvia cumplicidade da maioria.
Entendo muito bem o cuidado do Lula. Afinal de contas, nada garante que os generais de divisão que podem ser alçados ao nível mais alto vão representar qualquer avanço em termos de segurança institucional. A única coisa em defesa de uma limpeza mais drástica é o fato essencial do exercício do poder de mando. Uma limpeza daria um recado para toda a oficialidade: não tentem outra aventura porque as consequências serão severas. Este gesto não faria amigos entre os oficiais, mas apontaria para o princípio da obediência devida e o caminho do profissionalismo. Algo assim como um recado do tipo: me odeiem, mas me obedeçam.
E fica em aberto uma questão de fundo: qual o papel desejável para as Forças Armadas brasileiras no mundo moderno? Nossa posição atual é herdeira da guerra fria e subordinada aos interesses dos Estados Unidos. A doutrina militar não foi discutida e atualizada, nem pelas forças armadas nem pela sociedade. Temos Forças Armadas caríssimas para as condições econômicas do país, mas despreparadas quer para a clássica missão de defesa das fronteiras, quer para enfrentar os novos inimigos internos, as forças milicianas e as do narcotráfico. Cada vez que os militares intervieram em GLOs, como no Rio de Janeiro em 2018 ou mais tarde na Amazônia, a ação foi um desastre explícito ou uma total inoperância. Está na hora de rediscutir este papel dos militares, aproveitando que estão, ainda, na defensiva.
*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).
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