Por ANDRÉ CASTRO*
A igreja evangélica, novo sujeito político, que transita entre a vida política periférica e o centro nacional, não carrega mais os honrados projetos progressistas de contenção de danos
Os 1.7% que demoraram a ser contados na divulgação oficial do resultado das eleições à presidência do Brasil em 2023 parecem ter nos salvado de um pesadelo que não fora previsto. As eleições do fim do mundo, disse um crítico. Na campanha do presidente eleito era notável uma nova preocupação: os evangélicos. Esse grupo social parecia ser um aliado do facínora em 2018; portanto era necessário pensar politicamente esse grupo que já chega a 30% da população.
A campanha foi diferente, havia eventos de Lula com lideranças evangélicas, panfletagem em igrejas; dizem as más línguas que formaram um núcleo na campanha somente focado neles. O agora presidente fez até uma versão 2.0 da “carta aos brasileiros”, mas agora endereçada aos evangélicos; tentava provar que não era um perigo, assim como teve que fazer com os banqueiros nos anos 2000.
Curioso que o presidente sempre contou que teve sua formação política dentro de outra comunidade religiosa, as famosas Comunidades Eclesiais de Bases (CEBs). Seu surgimento como figura pública está intimamente ligado com o fortalecimento daquilo que o cientista político Eder Sader chama de “novos sujeitos políticos”; no caso, as Comunidades eclesiais de bases, os novos sindicatos e os partidos de esquerda formavam um sujeito político no país. Esse novo sujeito tinha como forma uma defesa dos interesses desses trabalhadores que foram viver nas periferias no cenário político nacional. São famosas as histórias de núcleos do PT que surgiram em Comunidades Eclesiais de Bases, e a relação de figuras notáveis da Teologia da Libertação com o projeto petista.
É na expectativa de encontrar essa dinâmica política, na qual lideranças de bairros se organizam e dão força para um projeto a nível institucional, enquanto, por outro lado os projetos institucionais fortalecem as lutas de base, que Gabriel Feltran começa a pesquisar o bairro de Sapopemba na periferia da cidade de São Paulo. O que ele percebe, contudo, é que esse horizonte de análise que encontra naqueles três sujeitos políticos os personagens que intermediam a vida pública periférica com a cena política nacional já não eram mais visíveis no começo dos anos 2000. Sua investigação apresenta o surgimento de outra coisa: o mundo do crime. Outro pesquisador, Tiarajú Pablo, parece ter encontrado algo semelhante quando comenta que o que se vive nas periferias de São Paulo hoje é as igrejas evangélicas, o mundo do crime e os movimentos culturais.
O que os nossos pesquisadores parecem perceber é que aquela dinâmica política que há pouco comentamos, onde o atual presidente se formou politicamente e nela ganhou força nacional, já não acontece. Por outro lado, novos sujeitos políticos começaram a surgir. Um desses sujeitos foi a igreja evangélica, que há tempos crescia, mas no final dos anos 1980 começa a ganhar oficialmente um estatuto de sujeito político nacional, já influenciando inclusive a própria Constituição de 1988.
Nos anos 1990, Ricardo Mariano já percebeu que esses evangélicos tinham um projeto político fundamentado nas suas leituras da Bíblia e que sonhavam em se eleger nacionalmente. Curioso que Gabriel Feltran não tenha percebido, mas isso corresponde ao mesmo período que o de sua pesquisa, quando a “bancada evangélica” ainda era base do primeiro governo Lula. Voltando às pesquisas em periferias, desde os anos 90 diversos pesquisadores têm notado como o “ser evangélico” é um marcador de diferença; para os crentes existem a igreja e o mundo, e nessa divisão eles fundamentam sua vida.
Ao que parece, o fundo material que dava sustentação ao projeto democrático popular, a saber, as expectativas da plena integração no mundo do trabalho, deram em água junto com o mundo do trabalho. Os sujeitos políticos que tinham como lema de unidade a ideia de que “somos todos companheiros de luta” parecem ter aberto as portas para essas comunidades em que todos se conhecem pelo nome e se chamam de irmãos.
Uma diferença notável é que esse novo sujeito político, que transita entre a vida política periférica e o centro nacional, não carrega mais os honrados projetos progressistas de contenção de danos; a saber, os famosos projetos públicos de distribuição de renda para públicos alvo. Na realidade, como bem se sabe, o projeto político encabeçado pelo ex-capitão é de destruição do Brasil. E se os velhos companheiros que davam corpo às Comunidades eclesiais de bases viam na sua própria luta a presença do Messias, os novos irmãos pentecostais encontram nas desgraças presentes da desintegração social de um capitalismo em crise estrutural os princípios das dores do retorno de Jesus, e assim veem no fim do mundo a sua redenção.
Voltando às eleições do fim do mundo, o que não se vê é aquilo que já deu força para o Partido dos Trabalhadores, o que Hugo Assmann chamou de densidade histórica das palavras. No caso do teólogo citado, as palavras que se amontoavam sob o termo Teologia da Libertação tinham como referente um sujeito político, aquele comentado por Eder Sader. Ou seja, a Teologia da Libertação tinha relevância porque suas palavras representavam signos e símbolos que foram produzidos dentro de uma experiência comunitária de luta, e não por alguma imaginação individual.
No caso, a luta que permeia a sobrevivência dentro do processo de modernização era vivida enquanto experiência religiosa comunitária. Ao que parece, é isso que vivem os irmãos pentecostais hoje. Quando um pastor famoso fala em defesa do seu candidato, ou quando Michelle Bolsonaro afirma que está limpando os demônios do Planalto contra a esquerda, há toda uma comunidade que se identifica como irmãos e lida com a política como uma mera parte da sua vida, compreendida como um todo em termos que chamamos de religiosos.
Quando os pastores progressistas convidados por Lula falam, não há nenhuma comunidade por trás deles. Há no máximo pequenas comunidades locais que são reminiscências das contradições das igrejas conservadoras, mas que numericamente e simbolicamente não significam nada a nível nacional, representam na realidade certa faixa ilustrada da classe média que cresceu sendo evangélica, mas não se identifica mais com os rumos dessa comunidade. Para os 70% dos evangélicos que estão com Jair Bolsonaro, figuras como Henrique Vieira nem são cristãos; não por acaso a sua agenda pública tem mais livrarias e universidades do que igrejas, porque seu público não está nas igrejas. E isso não é um erro de Henrique Vieira, mas uma demonstração das dinâmicas do campo evangélico.
Os ilustrados intérpretes do pentecostalismo apostam que se trata de uma instrumentalização da religião pela extrema direita; curioso que assim também falavam os críticos à Teologia da Libertação. Os motivos para que essa nova comunidade tenha virado à direita se encontram na sua própria estrutura hierárquica, como vem demonstrando Bruno Reikdal. As lideranças, pastores e presidentes brancos de classe média, organizam seu conservadorismo de um modo que chega aos ouvidos dos irmãos pentecostais, uma maioria de mulheres negras e periféricas, como uma crítica radical ao atual estado das coisas, uma grande crítica ao que chamam de mundo.
Assim, desde 1992, irmãos vão às ruas para dizer que Jesus é a salvação para o Brasil. As Marchas para Jesus, que acontecem todo ano, reduzem as jornadas de junho ao estatuto de baderna desorganizada. São milhões de brasileiros que saem de suas casas, em todos os rincões do país, anunciando a redenção nacional. Focados nas palavras dos grandes pastores midiáticos, nossos intérpretes deixam de lado a comunidade que vai às ruas porque acredita naquilo.
A eleição de Jair Bolsonaro foi apenas mais um capítulo dessa história, que até agora teve seu último momento no dia 25 de fevereiro, mas parece não ficar por aí. Aos interessados em construir uma alternativa radical à esquerda, torna-se urgente compreender que comunidade é essa na qual o Brasil está sendo decidido, pois somente dentro dela poderá brotar algo novo que nos tire desse vale de lágrimas.
*André Castro é mestrando em ciências da religião na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).
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