Por CARLOS ALVES MÜLLER*
Hélio Gama e Jorge Gallina foram fundamentais para projeto de reconhecida qualidade do jornal Diário do Sul
Com um intervalo de menos de um mês, o Rio Grande do Sul perdeu dois jornalistas excepcionais que eram, também, duas figuras humanas extraordinárias: Hélio Costa Nogueira da Gama Filho e Jorge Fernando Gallina. Perdeu e não sentiu sua falta porque estavam afastados do jornalismo gaúcho, banidos profissionalmente. Eram incomparáveis entre si, mas tinham algumas características comuns: as principais delas uma integridade moral e uma competência profissional que não são abundantes no meio.
Do Hélio Gama se disse que era um exemplar raro de publisher moderno, expressão inglesa que designa o homem de imprensa que conhece todos os setores de um jornal, do jornalismo propriamente dito à circulação, passando pela área industrial etc. Jorge Fernando Gallina não ia tão longe, mas voava muito alto, dominando os aspectos técnicos e estéticos da produção gráfica. A cada edição, a partir de um projeto básico comum, o layout das páginas era leve e atraente, valorizando os textos sem sacrificá-los.
Muitas pessoas talvez não tenham sequer tomado conhecimento do duplo falecimento e dos talentos que desapareciam. Os obituários publicados foram burocráticos e combinaram detalhes pouco relevantes com a absurda omissão da principal realização de ambos, a concepção e publicação do Diário do Sul, uma audaciosa e efêmera tentativa de oferecer ao Rio Grande do Sul um jornal à altura de suas necessidades e anseios. O projeto, quando citado nos necrológios, foi apenas isso, uma citação incidental sem referências a nada substancial.
Em alguma ocasião ouviu-se de profissionais ligados à “grande imprensa” local que o Diário do Sul não sobreviveu porque “era bom demais”. O cinismo mal se esconde por trás dessas palavras que antes de mais nada insultam as dezenas (poucas, mas crescentes) de milhares de leitores que acolheram o jornal e, porque queriam um jornal de qualidade para chamar de seu. Esses leitores eram ao mesmo exigentes e tolerantes.
Exigentes em relação ao conteúdo e tolerantes com algumas falhas – os eventuais atrasos na entrega, por exemplo, porque, diziam, se o lessem à noite, nele ainda haveria informações e análises que não teriam encontrado em outro lugar durante o dia. Mais ainda, a afirmação não deixa de conter duas verdades algo surpreendente: o reconhecimento da qualidade do Diário e a confissão de que a má qualidade dos demais não era fortuita.
O projeto do Diário do Sul era uma ideia antiga do Hélio Gama que ganhou impulso com o colapso da Caldas Júnior em relação ao qual observadores desavisados dos descaminhos da empresa não entendiam como podia quebrar um jornal com várias dezenas de milhares de assinantes. Como se sabe, a massa falida seria vendida nesse meio tempo e o Correio do Povo relançado como um pastiche de sua versão anterior, algo suficiente, porém, para tumultuar o mercado.
Para Hélio Gama e para aqueles a quem ele atraiu para a aventura no melhor sentido da palavra (todos identificados no expediente publicado sempre na página 2), não se tratava de uma utopia. Ou melhor, era no que uma utopia possa ter de algo viável, visível até, mas que se distancia e torna mais desafiante à medida em que nos aproximamos dela. O maior desafio era como erguer uma empresa capitalista sem capital, um problema que não chega a ser original, especialmente no Brasil. Esta foi a principal fonte das dificuldades do nosso empreendimento.
Sem capital, o Diário não tinha parque gráfico próprio. Fora da redação, tudo tinha que ser contratado a terceiros e é evidente que era impossível compor e imprimir um jornal nos concorrentes por razões óbvias e outras nem tanto. Em consequência, o jornal era impresso em Santa Cruz do Sul a 153 km. Sem capital não era possível ter estoque da principal matéria prima, o papel, que às vezes só era obtido pouco antes da impressão da edição do dia seguinte. Sem capital era extremamente difícil enfrentar o duplo abuso de poder econômico dos dois principais concorrentes: venda de publicidade a baixo custo, desde que exclusiva, e circulação subsidiada.
O propósito deste texto, entretanto não é chorar sobre a tinta derramada ou reclamar de uma concorrência que não era lealmente dura e sim fazia o que sabia fazer e era tolerado que fizesse. Como dizia o grande humorista mexicano Cantinflas: “vamos lutar como cavalheiros ou como o que somos realmente?”
A melhor forma de avaliar o projeto do Diário do Sul é lembrar o contexto internacional, brasileiro e estadual daqueles breves dois anos do igualmente chamado breve século XX. O lançamento do Diário estava previsto para o início de 1986. Por várias razões, inclusive as dificuldades já mencionadas, ocorreu somente no final do ano, quando o Plano Cruzado, que tentara reordenar a economia brasileira e trouxera uma transitória expansão do consumo – inclusive de jornais – afundava. Já o fechamento ocorreu no final de 1988, quase coincidindo com a promulgação da nova Constituição.
Internacionalmente, a turbulência era intensa. Os Estados Unidos eram governados por Ronald Reagan em seu segundo mandato e com sua beligerância hollywoodiana. A Grã-Bretanha estava sob a autoridade da similar Margareth Thatcher. Juntos, lideraram a ascensão das políticas econômicas neoliberais.
Na contramão, em maio de 1988, François Mitterrand, um ex-membro da resistência ao nazismo e primeiro socialista a presidir a França desde a Segunda Guerra mundial, era reeleito. Na União Soviética, Mikhail Sergeevitch Gorbatchov, pretendendo regenerar o comunismo, encaminhou-o para sua implosão na Europa. Na China, Deng Xiaoping conduzia o Império do Meio por mares nunca dantes navegados pelo Grande Timoneiro Mao Tsé-Tung.
Eram “tempos interessantes” e as agências noticiosas dominantes (AP, UPI, AFP) e os jornais que as tinham como as principais fontes de informação do exterior ficavam devendo enquanto os leitores do Diário tinham acesso a notícias e análises de alguns dos melhores veículos jornalísticos do mundo (The New York Times, Washington Post, Le Monde, Asahi Sumbum, El País, Clarín, Inter Press Service, além das revistas Foreign Affairs, Business Week e Rolling Stones, entre outros), tudo traduzido e editado por uma equipe que sabia o que fazia.
O Brasil, que tivera frustrado o sonho de voltar às eleições diretas para presidente da República, convivia mal com o governo errático de José Sarney, mas entre 01 de fevereiro de 1987 e 5 de outubro de 1988, pouco menos que o período em que o Diário circulou, acompanhou os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. Seus 559 membros não eram exatamente brasileiros de ilibada conduta, incluindo biônicos e centrões, mas indiscutivelmente superiores aos parlamentares de legislaturas posteriores. Seu presidente, Ulysses Guimarães, nos brindou com uma de suas frases memoráveis ao apresentar a nova Carta: “temos ódio e nojo à ditadura”. Em outra, menos conhecida, diria: “Se você acha ruim este Congresso, espere o próximo”. Era um profeta.
A nova Constituição constituía, se me permitem a quase redundância, um novo Brasil. Pelo menos do ponto de vista formal. E, como se constataria ao longo dos 30 anos transcorridos desde então, estava longe de ter a robustez desejável. Mais de 350 dispositivos dependiam de leis ordinárias a serem elaboradas para que tivessem plena vigência (20 anos depois, ainda faltariam 51); para não falar das 132 emendas introduzidas até o momento em que este texto é escrito.
O Brasil não é apenas um país hostil para com os amadores, além de profissionais, exige cidadãos bem-informados, que eram aqueles que o Diário procurava merecer como leitores. Por isso, montou uma sucursal em Brasília, durante a Constituinte – era nada mais que um punhado de bravos, liderados por um veterano do (Centro)Oeste e composto por jovens guerreiros do jornalismo que brilham até hoje.
Na economia, basta lembrar que entre 1986 e 1994 o Brasil trocou de padrão monetário cinco vezes, duas entre fevereiro de 1986 e janeiro de 1989. Não por acaso havia quem considerasse um mês longo prazo. Não bastava informação factual. Era preciso separar o joio do trigo e não por fora o trigo. O Diário não brigava com a notícia, com o factual, mas não se satisfazia com ela. Procurava dar aos leitores os contextos e as expectativas razoáveis em relação aos fatos noticiados. Além disso, não estando vinculado a outros interesses econômicos (imobiliários, agroindustriais etc.) podia posicionar-se editorialmente apenas em função dos princípios enunciados em seu primeiro número: a defesa intransigente da democracia, o apoio à economia de mercado regulada, a proteção dos direitos humanos, a redução das desigualdades sociais e a promoção da cultura.
Os gaúchos sempre se gabaram de sua singularidade em relação ao resto do Brasil, visto com o país amigo (nem sempre) mais próximo. Em algumas ocasiões isso foi levado ao paroxismo. Foi o que aconteceu quando a Assembleia Legislativa, por iniciativa do líder do governo, declarou o presidente José Sarney persona non grata no Estado. Isso o Diário não pode informar porque havia deixado de circular poucos meses antes. Mas noticiou criteriosamente as agruras do governador Pedro Simon, eleito em novembro de 1986.
Ainda eram tempos da Varig (até porque a Panair já deixara de existir, absorvida pela própria Varig). Era gaúcha a maior empresa de aviação da América Latina. Como ela, em diversos setores, companhias com sede e controle acionário no Rio Grande do Sul eram líderes nos respectivos mercados. A “desgauchização” da economia estadual ainda não se intensificara, mas uma espécie de ciclone extratropical (como mais tarde se chamariam as tempestades) já fazia grandes estragos. Em 1985, o Banco Central iniciou a intervenção e posterior liquidação do Banco Sulbrasileiro (o maior banco privado do Estado) e, na sequência, de outras, digamos, “instituições” financeiras regionais como Habitasul e Maisonnave.
O Banrisul, o BRDE e a Caixa Econômica Estadual estavam praticamente paralisados (e quebrados) porque “O governo anterior (Jair Soares) premido pelas necessidades, e infringindo as regras bancárias do país, havia comprometido cerca de 70% da capacidade de crédito dos bancos oficiais do Estado”, como relatou o professor de economia Argemiro Brum num livro publicado ainda em 1988. Não foi a única herança maldita de Jair Soares. Ainda conforme Argemiro Brum, ao assumir Pedro Simon, “cerca de 65% da dívida da administração direta (Tesouro) e mais da metade da dívida da administração indireta (estatais) estava vencida ou venceria no decorrer do ano de 1987”.
Não se pode esquecer que Jair Soares, fiel servidor da ditadura, em 1982 foi o primeiro governador eleito desde o também conservador empedernido Ildo Meneghetti, 20 anos antes. Mas a eleição era em turno único e ele foi declarado vencedor com apenas 38,16% dos votos (pouco mais de 22 mil votos que Pedro Simon e pouco mais de 500 mil de Alceu Collares – Olívio Dutra, do PT teve 50 mil). Venceu em apenas 114 dos então 244 municípios, entre os quais não estavam Porto Alegre e outras cidades importantes. Politicamente, era um governo frágil e contestado e economicamente inepto portanto.
O mundo e o Brasil não eram fáceis de entender e quanto ao Rio Grande do Sul, bem… digamos que os gaúchos tinham muito que discutir sobre sua relação. Para isso era preciso farta informação fidedigna e análise, não exatamente num divã. Isso significava que a mesmice jornalística das décadas anteriores, que evitava temas difíceis, preferia distribuir elogios fáceis e fornecera diversos quadros para os governos autoritários em todos os níveis, estava muito aquém das necessidades.
O Diário e seus leitores sabiam distinguir cultura de entretenimento, uma personalidade notável de uma celebridade frívola, sabiam que num jornal de qualidade havia lugar para as notícias sobre esportes e até sobre criminalidade, sem concessão à vulgaridade, com textos igualmente sóbrios e bem escritos. A essas necessidades o Diário se propôs a atender e atendeu enquanto pode. Não por acaso, rapidamente acumulou prêmios de reportagem.
As “matérias”, como se diz no jargão profissional, elaboradas segundo a orientação de editores competentes, eram acompanhadas por fotos e ilustrações produzidas por um pequeno núcleo de autênticos artistas, que não as concebiam como meras imagens sobre os temas abordados e sim, muitas vezes jogando com luz e sombra, ângulos e perspectivas originais, eram uma forma visual de revelar algo sobre pessoas e fatos que os textos não tinham como expor.
Dito isto caro leitor, se a ideia de que o Diário do Sul deixou de circular porque era “bom demais” continua a ressoar no seu pensamento, como no meu, proponho-lhe um raciocínio. Compare o mundo, o Brasil e o Rio Grande do Sul de então e seus expoentes na política, na economia na cultura com os equivalentes atuais. Não, não vamos resvalar pela nostalgia e pela idealização do passado. Com facilidade constataremos que naqueles havia uma complexidade, uma espécie de destemor incomparável com a atual mediocridade. Como diz o ditado, “para amostra basta um botão”, basta um exemplo: Ulysses Guimarães x Arthur Lira.
Agora compare a breve experiência do Diário do Sul com a atual mídia impressa gaúcha. Sim, sem falsa modéstia podemos dizer que o Diário do Sul tinha vários problemas, mas era muito bom! Seus concorrentes, contudo, já eram o que são hoje, agora ainda mais pobres.
Hélio Gama e Jorge Galina não morreram fora do jornalismo gaúcho porque quiseram. Suas almas gentis e ousadas estão sintetizadas na última frase de um depoimento do Hélio Gama há mais de 20 anos: “Me chamam de aventureiro, mas uma coisa é certa: eu nunca jogo às brincas”. Não perguntei ao Hélio, ao Gallina, nem à incomparável redação do Diário que avaliação fariam hoje daquela façanha.
Tenho certeza de que, com um sorriso maroto concordariam com Darcy Ribeiro quando disse: “Fracassei em tudo o que tentei na vida… Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.” Provavelmente todos fariam uma objeção: “Não fracassamos em tudo o que tentamos. Não fracassamos no Diário.”
*Carlos Alves Müller, jornalista, é doutor em ciências sociais pela UnB.
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