Caminhos da escrita

Imagem: Antonio Lizárraga
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Por REYNALDO DAMAZIO*

Comentário das relações entre oficinas de criação e literatura

Não há fórmulas mágicas ou modelos infalíveis para fazer literatura de qualidade. A própria ideia de qualidade aqui é tão subjetiva e historicamente determinada, incerta e mutante, que já renderia muito pano para teorias. Além disso, ensinar literatura, sua história, gêneros, estilos, é muito diferente de ensinar a escrever literatura, prosa ou poesia. Aquilo que se convencionou chamar de escrita criativa, para fins tanto didáticos como mercadológicos, na verdade é sempre um desafio, uma aposta, um risco, ou um experimento com a linguagem. Escritores e escritoras testam e distorcem o material de que dispõem para chegar a resultados novos, inusitados e às vezes surpreendentes. Ninguém cria a partir do nada, nem é tão original quanto imagina, ou gostaria. Cria-se a partir do que se lê e do que a leitura provoca na imaginação do leitor, ou em sua consciência da linguagem, suas limitações e potencialidades.

As oficinas de criação literária são ambientes férteis para a troca de experiências de leitura e escrita, momento de aprendizado e de revisão da própria postura diante do texto e do projeto literário almejado: são como laboratórios, como um tabuleiro de jogos, um teatro vivo em que a palavra é o personagem central. Muita gente, no entanto, ainda confunde essas oficinas e workshops com cursinho para escrever romances, contos e poemas bem resolvidos, que agradem este ou aquele público e que obtenham reconhecimento, seja lá o que for isso.

Quando decidiu abandonar o trabalho e viver de forma modesta, quase como um eremita, dedicado à escrita de haicais, o poeta japonês Matsuô Bashô (século XVII) recebia em sua casa ou viajava para encontrar-se com discípulos e falar de poesia, ler e discutir poemas, escrever. Teve dezenas de alunos e trocou correspondência com eles. Muitas de suas ideias renovadoras da estrutura do haicai foram debatidas e aprimoradas nesses encontros. Inúmeros poetas se formaram ali e novas tendências poéticas surgiram, ou foram revistas criticamente. A própria escrita de Bashô se transformou, explorando outros rumos, ritmos, temas.

O famoso ensaio do poeta russo Vladimir Maiakóvski “Como fazer versos”, de 1926, vale por muitas oficinas de criação e pode muito bem ser usado como instigante material de apoio. Logo no início do texto, o esclarecimento: “eu não forneço nenhuma regra para que uma pessoa se torne poeta, para que escreva versos. E, em geral, tais regras não existem. Damos o nome de poeta justamente à pessoa que cria essas regras poéticas” (na tradução de Boris Schnaiderman). Claro que o poeta, em seguida, discorre sobre a relação do escritor do presente com a tradição, a partir de um ponto crítico de releitura do passado e também do presente. Mais adiante, Maiakóvski afirma que “a criação de regras não constitui em si a finalidade da poesia, senão o poeta se tornará um escolástico, que se exercitará na formulação de regras para objetivos e teses inexistentes ou desnecessários”.

Essa luta do poeta com a tradição e com o que se consolida como modelo estético vale também para a prosa. Ao inventar o romance moderno, Cervantes não dispunha de uma cartilha do gênero, mas teve que desconstruir as narrativas que o antecederam e desbravar um território desconhecido, criando os próprios mecanismos de sua ficção: o andamento da trama, o ritmo, a tensão permanente entre drama e comédia, diálogos precisos e ferinos, desenho dos personagens, ambientação, oscilação entre vozes descritiva e digressiva, mistura de realismo e fantasia, razão e delírio. Dom Quixote e Sancho Pança se tornaram grandes paradigmas, como o rei Édipo de Sófocles, a serem reelaborados em chave ficcional e tempos diversos.

Em um dos muitos diálogos registrados na oficina de roteiro na Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, em Cuba, o escritor colombiano Gabriel García Márquez discutia com os alunos a construção de uma cena na praia e a entrada dos personagens, quando um dos participantes propõe que o “homem vê a moça limpando peixes, cortando a cabeça dos peixes”. Nesse momento, Márquez intervém: “ou de crianças?”. O aluno fica desconcertado: “como é?”. E o autor de Cem anos de solidão provoca: “está faltando loucura nessa história. É isso que quero dizer. Vocês estão muito sérios”. A proposta, então, se desdobra e avança com a contribuição de outros participantes da turma até fecharem a sequência. Márquez não tentou impor suas ideias, mas provocar nos alunos as soluções criativas possíveis naquele texto.

A melhor e mais eficiente ferramenta para oficinas de escrita criativa ainda é a leitura crítica e exaustiva, debatida, compartilhada entre autores e alunos. No divertido e biográfico livro Sobre a escrita – a arte em memórias, Stephen King anota de modo claro e certeiro: “se você quer ser escritor, existem duas coisas a fazer, acima de todas as outras: ler muito e escrever muito. Que eu saiba, não há como fugir dessas duas coisas, não há atalho”. Não se trata, obviamente, de leitura devocional, mas de um exercício permanente de formação. Ler para entrar no universo imaginado por escritores e escritoras, para participar do jogo de linguagem proposto, para experimentar modos próprios, ou variantes, de escrita e reescrita da tradição, ou mesmo das tendências do presente. A escrita que se nutre de outras escritas, num processo labiríntico e borgiano.

Outro elemento essencial das oficinas de escrita criativa é a possibilidade de trocar experiências com outros autores e leitores, espiar a carpintaria do processo criativo. Ray Bradbury conta, no volume de ensaios e depoimentos O zen e a arte da escrita, que começou a escrever para valer aos 20 anos, fazendo diariamente listas de palavras em torno das quais ia compondo personagens e experimentando combinações, que logo se tornavam contos. Esse é só um exemplo de bastidor precioso, que pode nos ajudar a entender como um escritor traça o seu caminho, desenvolve seu método e sua voz. Afinal, diz Bradbury, nada se perde nesse trajeto: “de uma curiosidade sempre perambulante por todas as artes, do rádio ruim ao bom teatro, da rima das canções de ninar à sinfonia, do brinquedo selvagem ao Castelo de Kafka”.

*Reynaldo Damazio é editor, crítico e autor, entre outros livros, de Movimentos portáteis (Kotter, 2020).

 

 

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