Por MARINA RUIVO*
Comentário sobre o romance de Flavio Aguiar
Muitos são os que se voltaram e continuam se voltando a esta personagem e a seus famosos olhos de ressaca, bem como às questões cruciais envolvidas em Dom Casmurro, sobretudo a suspeita de traição e o fato de a história ser contada por apenas um dos envolvidos, o Casmurro do título, recordando-se de sua juventude e de seu amor por Capitu. Como sabemos, é só por meio do olhar dele que a conhecemos.
O escritor Flavio Aguiar retoma a personagem de forma ousada e corajosa, com a segurança de quem tem um conhecimento verdadeiramente enciclopédico e sabe bem o que fazer com ele. Considero sua retomada ousada porque lança Capitu no centro da resolução do enigma de uma narrativa policial – o que, em princípio, nos colocaria para bem longe do romance machadiano. Mas só em princípio, já que o próprio romance de Aguiar nos traz uma chave importante nessa direção, ao mencionar o crítico norte-americano Peter Brooks e sua concepção de que toda boa narrativa traz, em verdade, uma história por debaixo daquela que, aparentemente, é contada, e de que, em consequência, uma das funções do leitor é desvelar essa história que está por baixo, encoberta.
A narrativa policial estaria assim no cerne da ficção, o que significa que até mesmo Dom Casmurro tem algo de narrativa policial, e que nós como leitores somos desafiados a deslindar a história que estaria por detrás de tudo que Bentinho confessa em seu texto. O então casmurrento Bento Santiago procura inclusive, com sua narração, decifrar um enigma, mas tudo o que consegue é jogá-lo para nós, em virtude de sua incapacidade de decifrá-lo por completo, em definitivo, para alcançar a paz que desejaria para sua velhice.
E paz na velhice é tudo o que o protagonista do romance de Flavio Aguiar não deseja. Ao contrário, se em alguns momentos ele até se identifica ao velho Bentinho, sabe que não é casmurro e que não quer reconstruir sua juventude para ocupar o lugar de uma vida vazia, e isso muito embora tencione buscar, na atual Berlim do século XXI, a Berlim libertária dos anos 70. Tudo o que ele vai ter, contudo, vai ser o oposto da rememoração incessante de seu passado, pois se vê mergulhado num presente repleto de ação e perigos, em que sua vida é colocada em risco. Ele é lançado (ou, melhor dizendo, deixa-se ser lançado) como isca no centro de uma investigação policial para desbaratar uma quadrilha internacional que mexe com tudo que é ruim: tráfico de drogas e de pessoas, evasão fiscal, crimes disso e daquilo e que, para completar, é envolvida com neonazistas e provavelmente com velhos sobreviventes do nazismo.
A quadrilha, procurada por uma equipe de vários países, tem um braço que age no Brasil, através do deputado federal Júlio Cina. Por intermédio desse braço brasileiro, o autor consegue levar a narrativa, que já articulava o presente histórico alemão com seu passado ainda ardente e complexo, a articular-se com o presente histórico brasileiro – contemporâneo em sentido estrito, tendo em vista que O legado de Capitu, se passa na sequência da reeleição de Dilma, quando a oposição questionava a validade da eleição e começava a arreganhar seus dentes. É a esse cenário que somos transportados também, o que não deixa de fazer com que o livro, ao falar de nosso passado recentíssimo, fale muito do que estamos vivendo agora, já depois da presidenta deposta.
Mas e onde entra Capitu? Entra porque em meio a tudo isso há um mistério a se decifrar, de cuja solução depende a vida de uma pessoa, um ex-aluno do professor Edmundo Wolf – que é o nome de nosso protagonista. Esse aluno, Arruda, é um jornalista contratado pelo senador Reginaldo Ribeiro, para investigar o mistério envolvido na morte violenta e nunca solucionada da mãe de Ribeiro, muitos anos atrás, e no suicídio de seu pai, pouco tempo depois da morte da esposa. Tanto o senador Ribeiro quanto o deputado Cina são do mesmo partido, mas de tendências rivais, sendo que este vem chantageando aquele com a ameaça de revolver o passado das mortes misteriosas, trazendo-as à tona com novas revelações, que poderiam impedir os projetos políticos do senador, de se lançar candidato a vice-presidente ou até mesmo presidente do País.
O jornalista Arruda, ex-aluno de Wolf, fora contratado para investigar esse passado dos pais do senador Ribeiro, tendo partido para a Porto Alegre natal dos dois políticos. Mas, ao voltar para Brasília, simplesmente desapareceu, pouco depois de haver combinado por telefone uma reunião com o senador. As suspeitas recaíam todas no deputado, mas ninguém sabia onde o jornalista estaria, nem mesmo se ele estaria ainda vivo. Não era possível acionar nenhuma das polícias, por conta das sabidas infiltrações existentes nela, divididas em várias tendências e facções e seus correspondentes múltiplos interesses.
Quem foi então recrutado para decifrar o enigma? O professor Wolf. Afinal, Arruda deixou um recado secreto, antes de desaparecer, direcionado a seu antigo professor. Um recado que envolve Capitu, ou o que Arruda chama de “O legado de Capitu”. É da solução dessa charada – e Arruda trabalha como charadista, para vários jornais internacionais – que depende a vida de seu ex-aluno, bem como a descoberta do mistério envolvido naquelas, além da desmontagem e prisão da quadrilha internacional, que possuía um de seus líderes máximos morando no prédio do professor, em Berlim.
O professor Wolf, portanto, está no centro dos episódios, sendo de se destacar que, construindo-se como um romance policial, O legado de Capitu não criou um tipo de personagem que é tão usual nessa ficção, o detetive ou investigador. O que temos é um antigo professor universitário, aposentado, especialista em romances policiais, que, com seus conhecimentos literários, pode solucionar o enigma e salvar a vida de um antigo aluno. Esta escolha de Flavio me pareceu não só original, como perfeita. Afinal, o que seria melhor, ao escrever um romance policial que dialoga com uma das maiores obras de nossa literatura, e com uma de suas personagens mais enigmáticas, do que um personagem que é um crítico literário, ou seja, um especialista em literatura, e que terá de resolver tudo com seus conhecimentos sobre literatura? Jogada de mestre.
Claro que Wolf terá ajuda. E essa ajuda parte dos lugares mais inesperados também. A começar pela figura que lhe traz todo o problema: Aroeira, um antigo policial que jogou bola com Wolf na juventude de ambos, em Porto Alegre, sob a batuta de outro professor de literatura, o Paco, militante das esquerdas como quase todos que se reuniam em volta da bola no campinho em questão, atrás do colégio Júlio de Castilhos.
Mas, misteriosamente, Paco havia aceitado a presença de Aroeira e vários outros policias para jogar no time contrário, e isso em tempos de ditadura. Agora, Aroeira ressurge dizendo-se agente da Abin, nossa agência de inteligência que sucedeu ao SNI. Ou seja, apesar desse agente ter o nome de uma canção de Geraldo Vandré que fala de luta do povo contra os patrões, Aroeira esteve desde sempre do outro lado. Mas será que os lados são tão nítidos assim?
Mais do que a ajuda de Aroeira, que é quem lhe põe na roda da confusão, Wolf terá o auxílio da polícia alemã (também com suas várias rixas internas, originadas ainda da antiga divisão entre Alemanha Ocidental e Oriental) e de mais várias polícias e órgãos de inteligência internacionais. Dentre esses homens todos, uma boa surpresa para Wolf: uma linda mulher, Zuleika, que se apaixona por ele (e vice-versa) e que não era exatamente membro de nenhum daqueles serviços secretos, mas apenas uma tradutora e ex-professora de português para estrangeiros. Alguém, em consequência, do universo da linguagem.
Temos ainda no romance outro ingrediente: o protagonista não tem o nome de seu autor, mas tem seu sobrenome do meio, o incomum Wolf. E o prenome do protagonista é nada mais que Edmundo, como o de Edmond Dantès, o famoso conde de Monte Cristo. E, como seu inspirador, vê-se no meio de aventuras por diversos territórios, passando por Berlim, São Paulo, Brasília, Porto Alegre e Paris. Edmundo é de Porto Alegre, como Flavio, mora em Berlim, como Flavio, mas pela segunda vez, pois se exilou lá durante a ditadura lá, diferentemente de Flavio, que ficou no Brasil, ainda que, como seu criador, não tenha participado da luta armada.
Diferentemente do escritor, porém, Edmundo era especialista em romances policiais. Porém tinha um colega na mesma universidade que Flávio lecionou por anos, a USP, e este colega sim era especializado em literatura brasileira como o autor. Seu nome? Flávio Aguiar. É apenas um personagem mencionado no romance, mas que compõe esse jogo de espelhos presente em O legado de Capitu, em que uma coisa espelha a outra sem que se consiga direito saber a resposta. Se é que ela há, se é que é possível chegar até ela. Em nossa realidade política, por exemplo, há alguma verdade definitiva? Há alguma resolução de nossos enigmas? Flávio fala de nosso destino como povo, como nação, interrogando, por meio de um intricado jogo de suspense e mistério, quem somos e como tudo é tão fluido em nossa realidade.
O romance se encerra (quase) como um happy end, como é parte da convenção do gênero policial, mas há um indício de enigma que não se resolve e que será retomado pelo autor, como dizem as suas palavras finais: “Continua no próximo romance”. Excelente para nós, que terminamos o livro querendo mesmo muito mais. Como boa narrativa policial que é, O legado de Capitu faz que não queiramos largar de suas páginas virtuais, lendo as suas três partes numa rapidez devoradora. E faz ainda que se instaure aquela espécie de segunda percepção diante da realidade que a boa ficção de mistério traz, aquela que faz que desconfiemos de nossa realidade, nos múltiplos sentidos dessa palavra, e sintamos certo receio de qualquer estalido leve na calada da noite. Confesso que em alguns momentos optei por acender as luzes de casa.
*Marina Ruivo é pesquisadora de pós-doutorado em literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autora, entre outros livros, de Geração armada: literatura e resistência em Angola e no Brasil (Alameda).
Publicado originalmente no portal Carta Maior.
Referência
Flavio Aguiar. O legado de Capitu. São Paulo, co-edição Boitempo/e-galáxia.