Na Suécia

Imagem: Valéria Possos
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Por FELIPE MARUF QUINTAS*

A social-democracia sueca não foi só distributivista, foi também nacionalista e desenvolvimentista

A Suécia é bastante conhecida nos debates políticos brasileiros como referência em igualdade social, progressismo de costumes e cultura pop. É bastante incomum, porém, o país ser associado a uma das suas principais características, o elevado grau de desenvolvimento industrial e tecnológico.

Com efeito, o país, apesar de ter uma população menor que a da cidade de São Paulo, possui uma estrutura industrial doméstica extremamente diversificada, controlada por grandes empresas e marcas nacionais, quase todas privadas. Muitas delas são internacionalmente conhecidas, como a Volvo e Scania (veículos), Electrolux (eletrodomésticos), Ericsson (telecomunicações), SAAB (aeroespacial e defesa), Atlas Copco e Sandvik (equipamentos industriais), Bofors (material bélico), Husqvarna (equipamentos de jardinagem e manejo florestal), IKEA (móveis), Tetra Pak (embalagens), entre várias outras.

Em estimativa de 2017, 33% do PIB sueco correspondem ao setor industrial, acima de outros tradicionais países industriais europeus, como Alemanha (30%), Áustria (28,4%), Suíça (25,6%), Bélgica (22,7%), Reino Unido (20,2%) e França (19,5%)[1]. Em 2018, a Suécia era o país europeu que mais investia em P&D proporcionalmente ao PIB, e o 4º do mundo, atrás de Israel, da Coréia do Sul e de Taiwan[2].

Produzem-se, na Suécia, por empresas e marcas nacionais: aviões, carros, caminhões, tratores, guindastes, escavadeiras, belonaves e iates (incluindo suas respectivas peças e sistemas), equipamentos ferroviários, aços, papéis, embalagens, fármacos, armas, eletrônicos, semicondutores, robôs, satélites, eletrodomésticos, relógios, aparelhos e dispositivos de telefonia, máquinas agrícolas, aparelhos de jardinagem e de manejo florestal, ferramentas manuais, compressores e rolamentos industriais, turbinas hidrelétricas, prensas hidráulicas, instrumentos de perfuração de rochas, derivados de petróleo, equipamentos médicos de alta complexidade como máquinas de radiocirurgia e tubos de ressonância, móveis, instrumentos musicais, instrumentos de pesca etc.

Entretanto, muitos setores industriais deixaram de existir no final do século XX, em um processo de reestruturação produtiva que marcou o fim do período social democrata e o avanço de práticas neoliberais. Na década de 1970, quando a Suécia vivia os últimos momentos do regime social-democrata, o país, por meio da joint-venture ASEA-ATOM (entre a empresa privada nacional de material elétrico ASEA e a estatal Atomenergi, ambas extintas hoje), era o único europeu a dominar todos os ramos da indústria atômica civil e construir usinas nucleares sem qualquer licenciamento tecnológico dos EUA. Entre 1972 e 1985, a ASEA-ATOM construiu nove usinas nucleares, sendo que apenas quatro permanecem ativas, operadas pela estatal Vattenfall. A Suécia também foi responsável, do início do século XX até 1975, por cerca de 10% da produção mundial de navios. Uma grande crise nos anos 1980/90 devastou o setor, um dos mais pujantes que a Suécia já teve, e hoje o país especializa-se na produção de belonaves (navios militares) pela divisão naval da SAAB[3].

Um outro aspecto interessante, também, é o fato de nenhuma mineradora estrangeira operar na Suécia, apesar do país ser um dos mais ricos em minérios da Europa[4]. Isso se explica por uma lei do século XIX que proibia a participação estrangeira na mineração. Apesar de abolida no início da década de 1990, a consolidação das empresas nacionais afastou possíveis interessados do exterior. A LKAB e a empresa privada nacional Boliden controlam a maior parte do setor mineiro sueco, o que assegura o pleno controle interno sobre os recursos naturais e alta capacidade de aproveitamento industrial dentro do país.

Longe de ser meramente “regulador”, como propugnado pelos arautos da “governança” neoliberal, o Estado sueco possui uma grande estrutura empresarial e de provisão de serviços, o que lhe permite elevada capacidade de coordenação econômica e de mobilização estratégica de recursos, impactando positivamente no desempenho produtivo do país. O Estado, por meio das suas empresas, agências e institutos, atua como parceiro do setor privado, criando as condições para que esse se desenvolva. No total, o Estado sueco possui 49 empresas estatais “multinacionais”, à frente da França (45), da Coréia do Sul (32) e muito à frente do Brasil (12)[5].

A Suécia possui empresas 100% estatais como a SEK (banco de desenvolvimento com foco em grandes empresas exportadoras), LKAB (mineração e equipamentos de mineração, maior produtora de ferro da Europa), Vattenfall (eletricidade, 6ª maior companhia elétrica da Europa em venda de energia[6]), SJ (ferrovias), Rymdbolaget (espacial), Svevia (construção civil) e Sveaskog (indústria florestal). O país possui forte integração física com seus vizinhos escandinavos por meio de empresas estatais compartilhadas, como a empresa postal PostNord e a de linhas aéreas SAS. Mesmo o programa de privatizações do governo de centro-direita de Carl Bildt (1991-1993), que transferiu ao setor privado cerca de 35 empresas estatais, não liquidou absolutamente o controle estatal em empresas estratégicas. O Estado sueco manteve-se como o maior acionista da empresa de telecomunicações Telia (antiga estatal Televerket), com 39,5% das ações atualmente, e o segundo maior acionista da siderúrgica SSAB, com 7,88% das ações hoje.

Um dos maiores projetos em curso com a participação de empresas estatais é o HYBRIT, trabalho conjunto entre a SSAB, a LKAB e a Vattenfall para desenvolver o primeiro processo do mundo de fabricação siderúrgica livre de combustíveis fósseis. O objetivo é iniciar a construção de uma planta-modelo em 2023, com previsão de conclusão em 2025[7].

As agências estatais também cumprem importante função no desenvolvimento da indústria nacional. Destaca-se, particularmente, a Vinnova, criada em 2001 para financiar inovações tecnológicas de modo a incrementar a liderança do país em setores de ponta, como biotecnologia, aeroespacial, internet das coisas (IoT), sistemas eletrônicos, industrialização do grafeno e aplicação de materiais metálicos. Vale mencionar também a Agência de Pesquisas Geológicas (SGU), criada em 1858, que fornece importantes serviços de pesquisa, assistência técnica e financiamento às mineradoras suecas.

O Estado sueco também possui centros tecnológicos de renome internacional, como o Instituto Real de Tecnologia (KTH) e o Instituto Karolinska, e exerce controle sobre o Instituto Tecnológico Chalmers. Esses institutos foram criados no início do século XIX e, desde então, servem de incubadora para vários técnicos, cientistas, inventores e empresários, dentre eles muitos ganhadores do Prêmio Nobel. Em 1997, foi criada a empresa estatal RISE – Research Institutes of Sweden, com o intuito de colaborar com as empresas e universidades no avanço científico e tecnológico do país.

Cabe mencionar também que a rede hospitalar pública, construída ao longo do século XX, além da evidente função social, serviu e serve também como colaboradora da indústria farmacêutica e médica, tendo contribuído para a formação e o desenvolvimento de grandes empresas como a Astra (atualmente AstraZeneca) e a Gambro (incorporada em 2013 à norte-americana Baxter), uma das primeiras fabricantes mundiais de máquinas de hemodiálise, ainda na década de 1960.

A estrutura desenvolvimentista do Estado sueco não é recente nem surgiu com a social-democracia, que governou o país ininterruptamente de 1932 a 1976. Remonta ao Império Sueco (1611-1718), uma das maiores potências militares da época, e perpassou os séculos seguintes, incluindo o século XX. Combinaram-se investimentos públicos em infraestrutura e educação, abolição de restrições ao comércio interno, subsídios e incentivos à criação de novas indústrias, tarifas protecionistas e restrições ao capital estrangeiro, proibindo-o em certos setores como financeiro, mineração e imobiliário. O Estado desenvolvimentista assegurou, desse modo, as condições para o florescimento do capital nacional, seguindo a clássica formulação de Ragnar Nurkse, notabilizada no Brasil por Barbosa Lima Sobrinho, de que “o capital se faz em casa”.

Portanto, ao contrário das mitologias correntes, a revolução industrial sueca, entre o final do século XIX e o início do século XX, não se deu em contexto de laissez-faire, assim como a social-democracia, longe de ter sido meramente distributivista, foi também bastante desenvolvimentista, dentro de uma concepção nacionalista. A história bem sucedida do desenvolvimentismo sueco levou, no século XX, à criação de um Estado de bem estar social onde havia pleno emprego e uma estrutura industrial bastante sofisticada, em um contexto de quase inexistência de investimentos estrangeiros dentro do país. Essa trajetória será explicada no próximo artigo.

*Felipe Maruf Quintas é doutorando em ciência política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Publicado originalmente no site A Revolução Industrial Brasileira.

 

Notas


[1] https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/fields/214.html

[2] https://data.oecd.org/rd/gross-domestic-spending-on-r-d.htm

[3] A história do auge e do declínio das indústrias nuclear e naval na Suécia está bem contada nos livros The Age of Social Democracy (2011), de Francis Sejersted, e An Economic History of Modern Sweden (2012), de Lennart Schön.

[4] https://www.sgu.se/en/mining-inspectorate/mines/mines-in-sweden/

[5] https://unctad.org/system/files/official-document/wir2017_en.pdf

[6] https://www.statista.com/statistics/267066/largest-european-electric-utilities-based-on-power-sales/

[7] https://im-mining.com/2020/06/02/ssab-lkab-vattenfall-plot-hybrit-pilot-production-pathway/

 

 

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