O referendo na Venezuela

Carla Barchini, Frágil, Técnica mista sobre madeira, 106 x 156 cm, 2018
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Por ANISIO PIRES*

No domingo, 3 de dezembro, mais de 10 milhões de venezuelanos e venezuelanas votaram afirmativamente no Referendo Consultivo para o qual foram convocados.

O motivo? Reafirmar a histórica reclamação da Venezuela sobre um território, o Esequibo, o qual fazia parte de suas fronteiras no momento de declarar sua independência da Espanha.

Um tribunal montado pela Inglaterra e os EUA decidiu em 1899 que esse território deveria passar a mãos da antiga Guiana Britânica, fraude histórica sobre a qual seus herdeiros da República Cooperativa da Guiana vêm se apoiando para não buscar uma resolução pacífica e negociada desse despojo histórico.

Para que dentro e fora da Venezuela se entendam as causas políticas e históricas desta controvérsia, resumiremos aqui uns 200 anos de história, nos valendo de vários dos argumentos com os quais se fez consciência e se convidou o povo venezuelano para votar.

O artigo 71 da Constituição venezuelana é muito claro: “As matérias de especial transcendência nacional poderão ser submetidas a referendo consultivo”.

Por que o referendo do dia 3 de dezembro é de especial transcendência? Porque o povo da Venezuela foi chamado a reafirmar que o território localizado à esquerda do Rio Esequibo (assinalado em vermelho) lhe pertence desde sua independência em 1811. Estamos falando de um espaço de 159.542 Km² com incalculáveis riquezas que a atual República Cooperativa da Guiana (ex-colônia inglesa comprada dos holandeses), pretende roubar da Venezuela com apoio dos EUA através da petroleira Exxon Mobil.

O mapa em verde é o da Capitania Geral da Venezuela criada em 1777 pela coroa espanhola. Como é possível ver, o referido mapa inclui de maneira inequívoca o território Esequibo. Ao declarar sua independência no dia 5 de julho de 1811, o território da nova república da Venezuela que nascia, passava a ser o mesmo dessa capitania de acordo com o preceito jurídico internacional do uti possidetis iuris, que “(…) reconhece e aceita como fronteiras internacionais, na data da sucessão colonial, tanto as antigas delimitações administrativas estabelecidas dentro de um mesmo império colonial como as fronteiras já fixadas entre colônias pertencentes a dois impérios coloniais distintos”.

Por sorte, a verdade histórica para além de indiscutíveis interpretações jurídicas consegue ser teimosamente mais precisa. A chamada “Gran Colombia” que uniu as atuais repúblicas da Colômbia, Equador, Panamá e Venezuela, foi criada em 1819, juntando primeiro a Nova Granada (Colômbia) e a Venezuela. Sua primeira Constituição, a chamada “Lei Fundamental da União dos povos da Colômbia” de 30 de agosto de 1821, diz claramente: “O território da Colômbia é o mesmo que compreendiam o antigo vice-reinado da Nova Granada e a Capitania Geral da Venezuela”.

Em 1823, estando já integrada pelos quatro países antes mencionados ou seus equivalentes territoriais, a Gran Colombia aprovava a Lei Orgânica para a criação de sua Marinha, em cujo Artigo 1º se lê, com todas as letras: “Os limites marítimos da República da Colômbia são no mar atlântico ao oriente a boca do rio Esequibo que a divide da Guiana Holandesa, e ao ocidente a do rio Culebras que a separa da Nicarágua, e no pacífico ao Norte a ponta de Punica que a divide da Guatemala, e ao Sul a desembocadura do rio Tumbes no mar que a separa do Peru.

Em 1824, a Inglaterra reconheceu o governo da Gran Colombia sem questionar nem um milímetro de seus limites territoriais. Desde esta época até o despojo territorial em 1899, não houve fato real que explicasse ou “justificasse” esse roubo. Por exemplo, sabe-se que de maneira injusta a Bolívia perdeu sua saída ao oceano Pacífico ao se enfrentar com o Chile na chamada Guerra do Pacífico (1879-1883). Na Venezuela não ocorreu absolutamente nada nem remotamente parecido. A tentativa de roubar esse território se materializou pela via de uma fraude jurídica.

Já em 1822, um pouco antes que a Inglaterra reconhecesse o Estado da Gran Colombia e suas fronteiras, o ministro do Exterior, José Rafael Revenga, por instruções de Bolívar, teve que protestar ante a Inglaterra pelas contínuas invasões de colonos ingleses ao território venezuelano: “Os colonos de Demerara e Berbice têm usurpado uma grande porção de terra que segundo aqueles nos pertence do lado oeste do Rio Esequibo. É absolutamente indispensável que ditos colonos ou se coloquem sob jurisdição e obediência de nossas leis, ou se retirem a suas antigas possessões”.

Com o fim da Gran Colombia em 1831, a Venezuela como república separada e, portanto, menos forte para enfrentar as agressões inglesas, seguiu sofrendo violações ao seu território Esequibo, ao ponto de romper relações diplomáticas com a Inglaterra em 1887.

A oportunidade foi aproveitada pelos EUA que desde suas ambições imperiais e a Doutrina Monroe (“América para os americanos”) contou com uma oligarquia venezuelana ingênua e de poucas luzes, a qual obrigou a aceitar mediante pressões a nomeação de um tribunal arbitral que se encarregaria de determinar a linha divisória entre a Venezuela e a Guiana Britânica sem a participação de nenhum venezuelano. O tribunal esteve integrado por cinco membros: dois estadunidenses em representação da Venezuela, dois ingleses pela parte britânica e um quinto árbitro russo que era amigo pessoal da rainha da Inglaterra. Mais “justo e equilibrado” não se poderia pedir.

É assim que no dia 3 de outubro de 1899 na cidade de Paris esse tribunal “imparcial” aprova o mal chamado “Laudo Arbitral de Paris” no qual se desconhecem os direitos históricos da Venezuela sobre o Esequibo.

Quatro dias depois, em 7 de outubro, o presidente da Venezuela, Ignácio Andrade, protestou contra o Laudo Arbitral, no que seria a primeira de reiteradas reclamações que a Venezuela faria no que restava do século XIX, mais todas as que se sucederiam durante a primeira metade do século XX, atravessando duas guerras mundiais.

Todas essas convulsões que atravessou a humanidade, mais os efeitos do tempo, pareceram diluir a reclamação venezuelana até que apareceu em 1949 uma grande revelação. Rivalizando com os melhores roteiros dos filmes de suspense, um protagonista dos fatos, com conhecimento de causa, revela ao mundo que o Laudo Arbitral de Paris tinha sido uma montagem construída pela Inglaterra e os EUA, tal e qual a Venezuela vinha denunciando desde o primeiro momento.

Em 1949, a título póstumo e por vontade expressa de seu autor, The American Journal of International Law (Vol. 43, Nº 3, New York julho 1949, pp. 523-530) publica um Memorando de 1944 feito pelo advogado estadunidense Severo Mallet-Prevost,[1] que foi o nomeado pelos EUA para defender a parte venezuelana no mal chamado “Laudo Arbitral de Paris”. Nesse Memorando, Mallet revela irregularidades que demostravam que o Laudo fora viciado. Entre outras anomalias, relata que o juiz da parte britânica, Lord Collins, que se mostrava crítico “`as pretensões” de seu país e dava a impressão de estar se inclinando “para o lado da Venezuela”, mudou de parecer um tempo depois de ser visitado pelo árbitro russo Fiodor Martens.

Escreveu: “me convenci então, e sigo acreditando, que durante a visita de Martens a Inglaterra se tinha feito pressão, de um modo ou de outro, sobre Collins, a fim de que seguisse aquele caminho”. Mallet-Prevost conclui então que a decisão adotada “foi injusta e despojou [a Venezuela] de um território muito extenso e importante, sobre o qual a Grã-Bretanha não tinha, na minha opinião, a menor sombra de direito”.

Descoberta a farsa na qual os EUA permaneceram calculadamente em silêncio, os ingleses seguiram sem admitir a fraude montada. A coroa britânica “agora nua”, já não tinha argumentos para evadir o assunto e alguma coisa tinha que fazer. Aproveitando, contra sua vontade, os ventos descolonizadores que começavam a soprar forte nos anos 1960, a Inglaterra em vésperas de conceder a independência à Guiana Britânica, assina com a Venezuela em 1966 o chamado “Acordo de Genebra”, único instrumento válido que Venezuela reconhece para resolver a controvérsia territorial.

Foi assinado pelos representantes da Inglaterra e da Venezuela, mas também pela autoridade colonial de Guiana que pouco tempo depois de receber a independência, herda a responsabilidade sobre esse assunto. Este acordo contém duas ideias centrais. A primeira: “o Laudo arbitral de 1899 sobre a fronteira entre a Venezuela e a Guiana Britânica é nulo e sem efeito”. A segunda: “qualquer controvérsia pendente entre Venezuela, por uma parte, e Reino Unido e Guiana Britânica pela outra (…) deve, por conseguinte, ser amistosamente resolvida em forma que resulte aceitável para ambas as partes”.

A Venezuela tem mais de um século de paciente luta tentando encontrar uma solução pacífica a essa controvérsia, antes com a Inglaterra e agora com a irmã República Cooperativa de Guiana. Suas autoridades, salvo honrosas exceções, têm adotado uma postura de herança colonialista, negando-se a dialogar de forma amistosa para encontrar uma solução. É por isso que a Assembleia Nacional da Venezuela, de maneira unânime e no uso de suas prerrogativas constitucionais, aprovou a realização do Referendo Consultivo para o dia 3 de dezembro, não como uma repentina atitude agressiva e beligerante contra Guiana, que é o que repete falsamente a mídia internacional, mas ao contrário, como uma reposta pacífica e muito pensada em função das contínuas violações do direito internacional por parte da República Cooperativa da Guiana.

Suas autoridades vêm se subordinando desde 2015 a certos acordos colonialistas com a multinacional Exxon Mobil e a pactos pouco soberanos com o governo dos EUA, permitindo de maneira provocadora e perigosa incursões de tropas do Comando Sul dos Estados Unidos em seu território, ameaçando em realizar também movimentos no território reclamado pela Venezuela. Guiana se comporta, segundo suas declarações e ações, como se não existisse o Acordo de Genebra e dando a entender, as vezes de maneira explícita, que essa controvérsia já foi resolvida com o Laudo Arbitral de Paris, cujo caráter nulo e sem efeito é indiscutível.

Desde crianças, meninas e meninos aprendem que o Sol nasce no Leste e se oculta pelo Oeste. É por isso que a várias décadas atrás o poeta venezuelano Andrés Eloy Blanco, autor do famoso poema-canção “Píntame angelitos negros”, cunhou uma frase surgida de sua sensibilidade e amor por sua pátria Venezuela, uma frase que hoje, amanhã e sempre entonaremos todos os venezuelanos e venezuelanas: ¡El sol de Venezuela nace en el Esequibo! (O sol da Venezuela nasce no Esequibo!)

*Anisio Pires é professor de sociología na Universidade Bolivariana de Venezuela (UBV).

Nota

[1] https://misionverdad.com/venezuela/el-documento-que-denuncia-los-vicios-y-nulidad-del-laudo-arbitral-de-paris

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