Nomadland

Willem de Kooning, Untitled from Self-Portrait in a Convex Mirror, 1984
image_pdf

Por JOSÉ GERALDO COUTO*

Comentário sobre o filme, vencedor do Oscar, dirigido por Chloé Zhao.

A saga da cinquentona Fern (Frances McDormand), que transforma sua van em residência rodante depois que sua cidade literalmente desaparece do mapa, tem o dom de unir duas coisas: um olhar sobre a América contemporânea, com sua crise social, de emprego e moradia, e uma revisão crítica da mitologia do desbravamento, da busca incessante de uma liberdade sem cercas e sem fronteiras. Aliás, três coisas, porque há também, e principalmente, uma reflexão sobre a passagem do tempo e seus efeitos sobre os indivíduos.

Quem viu os filmes anteriores de Chloé Zhao (As canções que meu irmão me ensinou e Domando o destino) sabe como é cara à diretora de origem chinesa a paisagem do Oeste, com suas pradarias, vales, desertos, horizontes sem fim. Mas é uma contemplação tingida de melancolia e lastreada por uma visão crítica da história que se desenvolveu em torno desses locais.

Num diálogo crucial em que parentes questionam a vida nômade de Fern, a irmã da protagonista tenta dourar um pouco a amarga pílula: “O que ela faz não é diferente do que os pioneiros faziam. Acho que Fern é parte de uma tradição americana”.

Só que os desbravadores de dois séculos atrás estavam em busca de um novo mundo pleno de potencialidades, partiam em caravanas para fundar a terra prometida, e as legiões atuais de nômades em suas vans, trailers e motor-homes já não esperam nem sonham com mais nada, só querem viver um dia depois do outro, perto da natureza e longe das dívidas, violências e opressões da vida urbana. É significativo que esses novos nômades morem em seus carros. Sem emprego, sem casa, sem dinheiro e sem família, o que restou foi o automóvel. É o denominador comum, o ponto zero da América.

Claro que isso é uma generalização defeituosa, mas baseada em grande parte no recorte apresentado pelo filme. A maioria dos indivíduos com quem Fern cruza em seu caminho são idosos ou de meia-idade, em geral desempregados, aposentados ou vivendo de empregos temporários, como ela própria, que trabalha de empacotadora, garçonete, balconista, zeladora de acampamento, etc.

Temas contemporâneos e urgentes, como a precarização do emprego, a ausência de um sistema público de previdência e saúde, as dificuldades de moradia e o poder opressivo dos bancos estão presentes com toda a clareza, mas não parece ser essa a única nem a principal motivação da diretora. Seu foco está nos personagens, em especial na protagonista, claro, de quem a câmera não se distancia nem por um momento.

Lacônica, prática, firme, oscilando entre a dureza e o afeto, Fern carrega em si o peso dos anos de batalha, dos sonhos desfeitos, das pedras e perdas do caminho. Seu rosto é um inventário de dores e, em menor grau, de alegrias. Difícil imaginar uma atriz mais talhada para o papel que Frances McDormand.

Em dois dos raros momentos em que se permite baixar a guarda, a personagem deixa que Shakespeare fale por ela: quando encontra uma menina que foi sua aluna e confere que ela ainda se lembra de uma fala poderosa de Macbeth (“Out, out, brief candle…”) e quando cita de cor o célebre soneto 18 (“Shall I compare thee to a summer’s day?”) para que um rapaz mochileiro o transcreva numa carta à namorada. Em ambos os casos, trata-se de reflexões sobre a brevidade da vida. Todo o esforço da protagonista é para que o que foi vivido não se perca, que seja preservado na memória. “Aquilo que é lembrado vive”, diz ela a certa altura.

Os personagens à sua volta são igualmente ricos dessa densidade de existência vivida, com destaque para a solitária Swankie (Charlene Swankie), que aos 75 anos, com uma doença terminal, recusa-se a ir a um hospital, preferindo seguir na estrada, buscando a cada dia junto à natureza momentos de plenitude como os que viveu num penhasco à beira de um lago, onde centenas de andorinhas faziam seus ninhos. A vida é bela para quem está aqui de passagem – e quem não está?

Há um certo espírito de comunidade hippie revivido por esses veteranos da estrada e reforçado pela presença de um líder, Bob Wells (personagem real fazendo seu próprio papel). Com sua longa barba branca e sua expressão carismática, Wells parece um profeta ou um guru, mas um profeta ou guru de pés no chão, sem promessas de redenção e transcendência que não sejam a fraternidade ativa e a vida de cada dia.

É significativo que, em meio a essas estradas desertas, cidades fantasmas, acampamentos empoeirados e horizontes sem fim, vejamos de repente um gigantesco galpão da Amazon, em que Fern e dezenas de outros anônimos empacotam maquinalmente milhares de produtos por dia. É como um pesadelo kafkiano que resume a alienação e desumanização do capitalismo pós-industrial de nossa época. O consumo remoto corporificado em espaço físico.

Chloé Zhao tem a aguda percepção dos espaços e de seu significado ao mesmo tempo humano e cósmico. A paisagem – seja ela um deserto, uma montanha, um labirinto de rochas calcárias ou uma falésia à beira-mar – nunca é mero pano de fundo, mas parece interagir com o estado de espírito dos personagens, falar com eles, e por tabela conosco também. Um plano sintetiza, de certa forma, a sua forma de encarar a natureza. É aquele em que Fern contempla a paisagem através do buraco de uma pedra que lhe foi dada pelo amigo Dave (David Strathairn): o mundo natural emoldurado pelo gesto humano.

Chega a ser surpreendente que essa moça tenha vindo do outro lado do planeta para redescobrir a América (suas contradições, sua história trágica e bela) e revelá-la aos próprios americanos. Mas foi isso, nem mais, nem menos, que Chloé Zhao aprontou.

*José Geraldo Couto é crítico de cinema. Autor, entre outros livros, de André Breton (Brasiliense).

Publicado originalmente no BLOG DO CINEMA

Referência


Nomadland
Estados Unidos, 2020, 108 minutos.
Direção e roteiro: Chloé Zhao.
Elenco: Frances McDormand, Patricia Grier, Gay DeForest, David Strathairn, Melissa Smith.

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES