País aos trapos

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Por GUSTAVO FELIPE OLESKO*

O presidente atualmente no cargo representa um país aos trapos, um país essencialmente lúmpen, um Brasil que tem séculos de rentismo em sua medula

Consta no artigo 1º dos princípios fundamentais da Constituição da República da Itália: “A Itália é uma república Democrática, baseada no trabalho”[i]. A assembleia constituinte que resultou neste documento durou de 2 de julho de 1946 até 31 de janeiro de 1948. Dos 556 deputados da assembleia, 219 eram de esquerda, os quais 104 do Partido Comunista Italiano (PCI) e outros 115 do Partido Socialista Italiano (PSI).

A inserção, ainda que simbólica, de que a coisa pública democrática que constrói o Estado de um país tem por base o trabalho implica diversos desdobramentos e sentidos. Sua presença logo no início da carta magna daquele país mostra a força que a esquerda italiana detinha após o fim da Segunda Guerra Mundial e pode explicar também a magnitude que o país teria nas lutas operárias em plena Guerra Fria, como seria visto no “outono quente” de 1969.

Ainda com tudo isto presente hoje, 2020, ambos os partidos não existem mais. O PCI definhou sob a liderança de reformistas, tendo como ponto máximo a declaração do secretário geral, Occhetto, de que o comunismo tinha acabado, isso tudo em 1989, num processo que leva a sua dissolução em 1991.

O PSI teve um final mais trágico: envolvido até o pescoço em tramas corruptas que perpassavam sua alta cúpula, tendo sido um dos alvos principais da Manipulite (operação Mãos Limpas).  Esta operação levou, inclusive, ao suicídio de três deputados do PSI. Em 1994 o partido é dissolvido após dois anos de agonizante história.

Na esteira da Manipulite, Berlusconi assume como primeiro ministro em 1994, ficando menos de um ano no cargo. Retorna, em 2001, ficando até 2006 e, novamente, de 2008 até 2011. Neste ínterim, a esquerda assumiu o cargo algumas vezes, mas com um programa totalmente distinto dos ideários de PSI e PCI. Berlusconi foi e ainda é um símbolo do neofascismo europeu, um pregador que chegou um pouco antes do que seus discípulos político-intelectuais como Jair Messias, Trump, Modi, Orban, Erdogan e afins.

Grosso modo podemos entender que a destruição da esquerda italiana levou o país à beira do fascismo ou, como gostam de citar os grandes meios de comunicação, ao “Populismo de direita”. O Brasil seguiu o roteiro à risca e com toques de realismo fantástico latino: protestos de 2013 nascidos na esquerda são tomados pela direita; operação lava-jato persegue com apoio da mídia o maior partido de esquerda do país; golpe contra a presidente eleita; e ascensão da extrema direita ao poder. A história se repete, primeiro como tragédia e depois como farsa[ii] já diria Marx. Ainda, Marx já havia versado sobre isto ao analisar a situação de Luis Bonaparte, presidente de 1848 a 1851 e posteriormente Imperador da França até 1870 através de um golpe de Estado. Este é o ponto central da trama.

Bonaparte não era quem a burguesia francesa almejava colocar no poder, mas sim Louis Phillipe. Este, sim, um representante da moral burguesa, de seus costumes, sua “refinada” cultura, seu racionalismo e ilustração. Quem assume via golpe e moderniza o país com ferro e fogo é Bonaparte. Para Marx “precisamente por ser um boêmio, um príncipe lúmpen proletário, levava vantagem sobre o burguês vil porque podia conduzir a luta por meios vis”, luta esta de aumento do poderio do capital sobre a França.

É o que faz e o que representou na Itália Berlusconi e é o que faz e representa no Brasil o presidente atualmente no cargo. Representa um país aos trapos, um país essencialmente lúmpen, um Brasil que tem séculos de rentismo em sua medula e que com a reprimarização econômica jogou e ainda joga massas de trabalhadores e trabalhadoras na informalidade, no bico, no “trabalhar hoje para comer amanhã”. É a perfeita massa aos farrapos: uma plebe trabalhadora sem consciência alguma de classe, destruída, fraturada, e que sobrevive dos restos podres que a também podre burguesia lhe fornece. Quem manda hoje no Brasil é a aristocracia financeira, lumpen como Marx já destacava[iii] e com apoio da massa do lumpenproletariado.

André Gunder-Frank em obra importantíssima, mas desconhecida no Brasil, já versava sobre as bases de uma lumpenburguesia latina. Quais sejam: a estrutura colonial de relações de violência e domínio, além do modelo de exportação; a estrutura agrária nunca tocada (vide a ausência de reformas agrárias no continente, excetuando o México e Cuba) baseada no tripé grande latifúndio, produção para exportação e mão-de-obra escrava (atualizada para a peonagem e depois para o proto assalariamento como no casos dos bóias-frias); o Imperialismo e as relações de domínio das elites no continente; e o nacionalismo lumpenburguês, tosco em essência, que busca construir um ideal nunca tangível de progresso através da dependência e subserviência aos grandes impérios.

Essas características descritas por Gunder-Frank são caras ao Brasil, o país da concentração de renda e do latifúndio, o qual ainda por cima é improdutivo. Frise-se que a improdutividade deste modelo não é mera irracionalidade. Ao contrário, é sim uma racionalidade da elite, a qual produz capital na circulação do dinheiro em especulação, dinheiro este obtido via hipoteca das referidas propriedades[iv].

A eleição de 2018 mostrou como há outra face desta realidade, que é igualmente dura: o crescimento vertiginoso do lumpenproletariado nacional. As diversas greves dos anos 1980 são cada vez mais raras, uma vez que a divisão internacional do trabalho fez com que o país perdesse indústrias constantemente. Desde 1985, passando de aproximadamente 27% do PIB para ridículos e provavelmente sobrestimados 11%, em apenas 30 anos. As greves de hoje ocorrem, normalmente, no setor público, sejam universidades, empresas ou autarquias. Por isso o exercício constante da mídia em demonizar o funcionalismo. Os trabalhadores de carteira assinada da indústria do ABCD paulista, por exemplo, tornaram-se um resquício. E a ordem de pensamento foi invertida: não são estes trabalhadores aos farrapos que ganham pouco, que não tem direitos, que são super explorados, é o funcionalismo público que possuí direitos demais, ganha muito e vive na “mamata”.

O lumpenproletariado não fica somente no trabalho urbano. Faz-se presente também nas forças armadas e nas polícias, braços de apoio fortíssimos da atual presidência. Servem exatamente como serviam as forças de repressão de Bonaparte na França, são tropas formadas de lumpens, que conseguem ter uma vida um pouco menos miserável graças a seu trabalho sujo e brutal de repressão justamente contra seus pares, outros lumpens.

Isso tudo posto, dá a argamassa que mantém o projeto bonapartista de poder do clã que hoje está no poder: a aristocracia financeira, parasitas rentistas; e um lumpemproletariado explorado, sem educação e sem segurança, lançados nos braços daqueles que se dizem donos poder absoluto, em contato “direto” com estes, repressor das injustiças da “bandidada”; ainda há a força motriz das forças de repressão, formatadas a partir do lumpen. Tudo isto foi construído ao largo de mais de 30 anos de democracia e foi abastecido, finalmente, com o combustível do ódio da mídia, tendo como instrumento central a lava-jato (a mesma que hoje perdeu sua utilidade e foi “terminada” pelo presidente).

E a esquerda brasileira nisso tudo? Onde está? O que come? O que veste? Alguns pontos são importantes. Primeiro é pensar o que é esquerda. As várias vertentes da esquerda sempre se acusam de serem “mais esquerda” que as outras. Para facilitar tratarei de todas essas vertentes como do mesmo espectro político, indo desde trotskystas até os neostalinistas, passando pelos ecologistas e chegando até os pós-modernos identitaristas.

Segundo ponto é relacionado sobre as fontes de informação dessa esquerda, ainda muito, quem sabe mais, presa a gaiola da universidade pública. Mergulhados em informação, a jovem esquerda, na realidade, não é capaz de analisar criticamente o volume de dados que a acomete. Acabam por aceitar qualquer crítico parcial do atual governo como seu “camarada[v]”. Liberais nos costumes como Prioli se tornaram idolatrados pela esquerda. Um equívoco primário, haja vista que esta é uma típica liberal na economia e nos costumes. Podemos ampliar isto ainda ao debate político partidário, que se funda muitas vezes em informações de youtubers e afins e não em livros, artigos ou grandes pensadores.

Terceiro ponto é o da nova tendência neostalinista da esquerda brasileira. Ancorada em debates toscos, acabam por fazer uma grande confusão para angariar seguidores. Criaram em torno de Losurdo, filósofo de importância mas hoje superestimado, o novo cânone da esquerda. É um problema grave em torno de modas, seja de autores, conceitos, etc., não restando lugar para o contraditório, para o debate sadio e construtivo.

Para não perder tempo do leitor e dar audiência para essas figuras, que defendem ou tentam pormenorizar os crimes de Stalin, assim negando serem stalinistas ou neosstalinistas, resumo o que estes fazem: Geschichtenscheissenschlopff, merda a-histórica, como diria Thompson[vi].

Tais influenciadores fazem um “trabalho” que vai contra toda a história factual e fundam seus discursos no uso de belas retóricas, mas sem fundamentação material. Angariam seguidores com “manuais de leitura” de Marx e são considerados experts em todas as mais distintas áreas de pesquisa, análise e luta política. Um tipo Frankenstein que fala desde campesinato, passando por ecologia, tocando na especulação imobiliária, apresentando a política partidária nacional e terminando com o famoso saber educacional (sem nunca terem pisado numa sala de aula a não ser em estágios obrigatórios de docência, quando o fazem).

Enfim, enquanto o Brasil fica nas mãos dos trapos, a esquerda brinca de stalinismo, dando mais munição para os líderes bonapartistas e medo no lumpenproletariado. O patrimônio nacional é expropriado e vendido, as liberdades são cerceadas, a educação ainda mais sucateada, o serviço público levado à lenta morte por inanição e o povo massacrado pelo desemprego, fome, violência, medo e repressão.

*Gustavo Felipe Olesko é doutor em Geografia Humana pela USP.

Notas


[i] CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA ITALIANA. EDIÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA. SenatodellaRepubblica, 2018. Disponível em:

https://www.senato.it/application/xmanager/projects/leg18/file/repository/relazioni/libreria/novita/XVII/COST_PORTOGHESE.pdf

[ii]MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

[iii]MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. Boitempo editorial, 2015

[iv]GUNDER FRANK, André. Lumpen-burguesia. Lumpen-desenvolvimento. Porto: Portucarlense Editora, 1971.

[v] Camarada vem do latim camarata, aquele que divide a câmara, o quarto. Camaradas eram então os soldados que dormiam juntos em certo cômodo e assim partilhavam das mesmas ideias.

[vi]THOMPSON, Edward Palmer. A Miséria da Teoria ou um Planetário de Erros: uma crítica do pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.p. 121-122

 

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