Por EDUARDO J. VIOR*
Agindo juntos, os países do “continente do futuro” estão aproveitando a luta global por recursos energéticos e minerais para afirmar seu protagonismo
O golpe que na quarta-feira, 26 de julho, derrubou o presidente pró-ocidental do Níger põe fim ao domínio francês em mais um país do Sahel. Em dois anos, houve golpes no Mali e em Burkina Faso, que expulsaram as tropas francesas e clamaram pelo apoio da Rússia. Ao mesmo tempo, em São Petersburgo, antiga Leningrado, se realizava a Cúpula entre a Rússia e a União Africana, confirmando a rapidez com que a África está se afastando do Ocidente. Agindo juntos, os países do “continente do futuro” estão aproveitando a luta global por recursos energéticos e minerais para afirmar seu protagonismo.
Na noite de quinta-feira, várias centenas de manifestantes se reuniram na Place de la Concertation, no coração de Niamey, capital do Níger, para celebrar a “sua” vitória, a do exército no poder, e dar vivas à Rússia e à Companhia Wagner. Na manhã anterior, um grupo de soldados uniformizados havia anunciado, em rede nacional, a derrubada do presidente eleito em 2021, Mohamed Bazoum.
O coronel sênior Amadou Abdramane, chefe do Estado-Maior e porta-voz dos golpistas, anunciou então o fechamento das fronteiras e o estabelecimento do toque de recolher. Ademais, em comunicado divulgado quinta-feira ao meio-dia, este comandante informou que as Forças Armadas do país haviam se unido à revolta, visando “preservar a integridade física do presidente” e evitar “derramamento de sangue” entre possíveis facções militares diferentes.
Por seu lado, na sexta-feira, 28 de julho, o general Abdourahman Tchiani, chefe da guarda presidencial, que mantém detido na sua residência o presidente Mohamed Bazoum, apresentou-se na televisão pública, na qualidade de presidente do Conselho Nacional de Segurança Pública (CNSP), para prestar contas dos motivos das suas ações.
Não obstante, a situação do presidente Mohamed Bazoum, que até o momento ainda não renunciou, continua sendo confusa e incerta. Uma delegação da Comunidade dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), liderada pelo presidente do Benin, Patrice Talon, viajou a Niamey na quinta-feira para exercer uma mediação, mas, da parte dos golpistas, parece haver pouca disposição para a busca de um entendimento.
O golpe foi imediatamente condenado no Ocidente. O secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, declarou que a parceria com o Níger dependeria da continuidade da “governança democrática”. Por sua parte, a Rússia pediu que o conflito fosse resolvido pacificamente.
Durante seus dois anos e meio de governo, Mohamed Bazoum reforçou a aliança estratégica do Níger com os países ocidentais. País de trânsito de emigrantes para o Mediterrâneo, sua colaboração para contê-los foi elogiada pelos dirigentes europeus. Atualmente, o país abriga vários acampamentos de migrantes retornados da vizinha e anarquizada Líbia. Também foi um parceiro militar confiável, que deu abrigo a 1.500 soldados franceses expulsos do Mali em 2022, como também a uma base norte-americana de drones avaliada em 100 milhões de dólares. Com efeito, os golpes nos vizinhos Mali (2021) e Burkina Faso (2022) levaram ao poder juntas militares que se voltaram para a Rússia e expulsaram as tropas ocidentais. Daí que a perda do Níger seja uma catástrofe para o antigo predomínio da OTAN no Sahel.
Como seus vizinhos, o Níger, com 26 milhões de habitantes e um dos países mais pobres do mundo, enfrenta a ameaça jihadista criada pela CIA. Na região de Diffa, fronteira oriental com o Chade, são frequentes as incursões e ataques do Estado Islâmico da África Ocidental (EIAO), enquanto que a oeste a ameaça vem do Estado Islâmico do Sahel (ISIS). A incapacidade ou mesmo má vontade das forças do Ocidente para derrotar o terrorismo, além da falta de equipamento e treinamento dos soldados locais, que morrem às centenas, estão na origem da instabilidade política em que vive toda a região. Agora a paciência acabou, e a eficiência da Wagner Private Military Company (CMP) russa desperta mais confiança.
O Níger é um importante exportador de minério de urânio para a indústria nuclear francesa. A república africana ocupa o oitavo lugar na produção mundial do mineral, pouco menos que a Rússia. A França produz 70% de sua eletricidade por meio de usinas nucleares, o que significa que detém a maior proporção mundial de energia nuclear na conta da produção de eletricidade. Isso se dá por meio de 56 reatores que, ao mesmo tempo, lhe permitem ser o maior exportador de eletricidade do mundo. Por conta da energia nuclear de produção barata, a indústria francesa acaba levando uma considerável vantagem competitiva. Tais êxitos só foram possíveis porque a nação controla a produção de urânio do Níger.
Em 1957, pouco antes de o país africano conquistar sua independência, geólogos descobriram ali ricas jazidas de urânio. Apesar de ser um dos países mais pobres do mundo, o Níger possui a quinta maior reserva mundial de urânio em exploração. Ao mesmo tempo, como grande parte do seu território faz parte do deserto do Saara, o país luta constantemente contra a desertificação e as secas. Além disso, desde que a intervenção anglo-francesa derrubou Muammar Kadafi na Líbia, esse país norte-africano tornou-se refém das máfias de todo tipo de tráfico — inclusive humano (até mesmo de escravos) —, com o terrorismo islâmico espalhando-se por todo o Saara e o Sahel (a vasta faixa semidesértica que se estende da Mauritânia ao Sudão), graças à mui suspeita incapacidade da França e de seus aliados ocidentais em combatê-lo.
Durante 60 anos, a França conduziu uma política neocolonial que controla suas ex-colônias por meio do franco africano (muitas ex-possessões francesas usam o chamado franco CFA, antes lastreado no franco francês, e agora no euro), pelo francês como língua franca e por suas forças expedicionárias. Isso lhe permitiu reduzir significativamente o custo de operação das jazidas de urânio no Níger. Ainda que este país produza apenas 5% do urânio mundial, sua participação nas importações francesas do mineral oscila entre 30% e 45%, dependendo do ano. Sem esse suprimento, Paris estaria em uma perigosa emergência. Em outras palavras, sem o Níger, a soberania energética da França está seriamente ameaçada.
Não é casualidade que o golpe tenha ocorrido na mesma ocasião da cúpula Rússia-África, realizada nos dias 27 e 28 deste mês em São Petersburgo. Participaram da conferência 49 delegações de 53 países africanos. Já antes da reunião, o presidente russo Vladimir Putin havia anunciado que se firmaria uma declaração global e um Plano de Ação do Fórum de Parceria Rússia-África com vigência até 2026.
Em declarações ao serviço de teledifusão russo para o exterior (a RT ‒ Russia Today), Madaraka Nyerere, filho do lendário ativista anticolonial e primeiro presidente da Tanzânia, Julius Nyerere, defendeu que a única forma realista da África se desenvolver é a de unir-se, e o caminho para tal cooperação passa pela incorporação de mais nações africanas ao BRICS+. Os países africanos não foram a São Petersburgo a título individual, mas como membros de uma organização já consolidada, a União Africana.
Por todo o continente, observam-se disputas intensas entre a China e a Rússia, de um lado, e o Ocidente coletivo, por outro. O recente golpe no Níger não é mais que parte desse processo. Os africanos tiveram más experiências com o colonialismo e o neocolonialismo europeus, e buscam agora livrar-se de toda dependência externa. Aproveitam então o conflito mundial para ganhar espaço, e atuam concertadamente para aumentar seu poder de barganha.
A África está se unindo, sacudindo a poeira do neocolonialismo ocidental, desenvolvendo sua conectividade, atuando em conjunto nos fóruns internacionais e reivindicando um lugar na nova governança mundial. Enquanto isso, a América Latina tem sido incapaz de adotar posições comuns em muitas questões relevantes. Sequer cogitou participar em conjunto na próxima Cúpula do BRICS a realizar-se África do Sul. Nem mesmo a Argentina, especialmente convidada pelo Brasil, participará do encontro. Enquanto a África acorda rugindo, a América Latina dorme.
*Eduardo J. Vior, sociólogo e jornalista, é professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Buenos Aires (UBA).
Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.
Publicado originalmente na Agencia Télam
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