Por MÁRIO MAESTRI*
O avanço chinês e de sua economia capitalista
La Cina è vicina [A China está próxima], filme referencial de Marco Bellocchio, de 1967, abordava o medo da burguesia italiana ao maoísmo, quando se vivia a Revolução Cultural (1965-68), que causou enorme frenesi esquerdista no Bel Paese, sobretudo entre a juventude radicalizada. A Grande Revolução Cultural Proletária ensandeceu multidões de jovens europeus, propondo estranhamente cercar as cidades pelos campos, com destaque para França, Itália e, mais tarde, Portugal. Eles saíam às ruas com o pequeno Livro Vermelho com os pensamentos de Mao Tsé-Tung à mão, o punho levantado e cerrado, gritando ”Viva Marx, Viva Lenin, Viva Stalin, viva Mao Tsé-Tung”.
A revolução de camponeses pobres de pés descalços, vitoriosa em 1949, muito logo encantou e galvanizou importantes parcelas de esquerda mundial, já que foi vista como alternativa à política de colaboração de classes do pós-stalinismo (1956), então na direção do primeiro Estado de economia nacionalizada e planejada que se consolidara no mundo. A proposta de revolução por etapas, com respeito inicial à dita “burguesia nacionalista”, encantava também frações da esquerda reformista. A revolução chinesa tornou-se fonte de inspiração para movimentos maoístas sobretudo em países rurais. No seio do trotskismo, sobretudo a Revolução Cultural despertou avaliações esperançosas, como as dos sempre apressados Ernest Mandel (1923-95) e Livio Maitan (1923-2004), que haviam feito o mesmo quando, em 1948, da ruptura da Iugoslávia com a URSS, sem nada terem aprendido.
A restauração capitalista na China, política oficial do PCC desde fins de 1978, precedeu de pouco mais de dez anos a dissolução da URSS e dos “países do socialismo real”, em 1989-1991. Sucesso histórico referencial que fez retroceder enormemente o mundo do trabalho, suas organizações, partidos, programas, ideologia etc., diante da contra-revolução capitalista triunfante. A China, apontada como mega-exportadora de bugigangas e super-exploradora de trabalhadores, perdeu inicialmente prestígio e interesse sobretudo aos olhos da esquerda.
A semi-despreocupação geral com a China se modificou à medida que o Dragão Oriental, que apenas fungava fumaça semi-adormecido, despertou como grande exportador de produtos tecnológicos e de capitais e insaciável importador de matérias-primas. Para surpresa geral, a China se levantava como nação imperialista que exportava agora também capitais e serviços e condicionava os investimentos estrangeiros no país, exigindo com destaque a transferência de tecnologias, o que era e é um seu direito. Para o assombro de muitos, a China disputava com os USA a “cancha reta” da primeira economia capitalista mundial. Em busca de alta rentabilidade para suas inversões na China, o capital imperialista ocidental chocara o ovo do dragão. A China agora estava vicina ao mundo, como um todo.
O confronto USA-China no Brasil
Nas duas últimas décadas, a nova China está cada vez mais próxima também do Brasil. Entretanto, no país descoberto por Cabral, ao contrário da Itália quando da Revolução Cultural, em vez de assustar, ela faz a alegria de importantes setores do pequeno, do médio e do grande capital, ao comprar e ao investir em territórios brasileiros. Tornou-se a “menina dos olhos” dos empresários da sojicultura, da mineração, da energia e dos players, atravessadores, lobistas, políticos e todos os envolvidos na liquidação a preço de banana podre das grandes propriedades públicas nacionais. A China faz igualmente a alegria de propagandistas e ideólogos defensores da benignidade dos capitais do “Império do Meio” investidos no mundo e no Brasil.
Das grandes nações imperialistas, a China foi a última a desembarcar, de mala e cuia, nesta que ja foi a terra dos Papagaios. A partir de 2004, quando da primeira administração federal petista (2002-2005), as exportações de matérias-primas para a China decolaram, avolumando-se em 2011, para, após estabilização e regressão relativas, explodirem, alcançando 67,7 bilhões de dólares em 2020. Seis anos mais tarde, quando da primeira administração de Dilma Rousseff, viveu-se verdadeiro ano da “Descoberta chinesa do Brasil”, com importantes investimentos de capitais chineses no país, no valor de US$ 13 bilhões, através de 12 “projetos”. Essas entradas de capitais sucederam-se, um pouco em forma de “dente de serra”, sem intenção de abandonar o rico campo de caça sul-americano. O que desagradou, e muito, a águia imperialista, de bico envelhecido, já engalfinhada com o jovem dragão de fome pantagruélica, expelindo fogo pelas narinas.
O confronto inter-imperialista USA-China, exacerbado quando da administração do republicano Donald Trump (2017-2021) e radicalizado pelo democrata Joe Biden, se instalou no Brasil, passando a determinar também nossa economia e política. O furor comprador chinês de empresas no Brasil eclodira ao concluir-se a primeira gestão federal petista e irrigara fortemente a segunda. Um dos objetivos do Golpe de 2016, impulsionado pela administração democrata Barack Obama, era barrar o avanço chinês no Brasil e na América Latina. Orientação seguida com obediência canina sobretudo pelo segundo presidente golpista.
Entretanto, nesse momento, o grande capital chinês, já com sólidas raízes entranhadas na economia brasileira, conquistara importantes posições na própria base de sustentação do golpismo e da administração Bolsonaro. A recente abertura para a Huawei, quando do leilão do 5G, em novembro de 2021, registrou os limites da pressão estadunidense sobre os grandes capitais nacionais e internacionais instalados no Brasil, parceiros de negócios da China no que se refere a equipamentos e redes para telecomunicação.
O dragão de Pequim – decifra-me ou te devoro!
As metamorfoses da República Popular da China, desde a vitória da Revolução na guerra civil (1946-49), sob a direção do Partido Comunista, e seu impressionante desenvolvimento nas últimas décadas, já em plena restauração capitalista, causaram grande interesse e fluvial literatura analítica no mundo. As razões são múltiplas: uma revolução marxista realizada por camponeses, em 1949, sem a intervenção do proletariado urbano; uma construção socialista que se manteve fiel ao receituário da burocracia da URSS, até a estrondosa quebra de pratos dos anos 1950 entre Mao e Khrushchev; o desastre econômico, político e humano do Grande Salto Adiante (1958-60) promovido pelo maoísmo; a retumbante e colorida Grande Revolução Cultural Proletária, de universitários ensandecidos, sob a direção da facção maoísta do PCC, e sem a participação do proletariado que lhe deu o nome.
O “Grande Salto” e a “Revolução Cultural”, duas iniciativas da direção maoísta, constituíram verdadeiros e poderosos “tiros no pé”. A primeira, minou a autoridade do maoísmo e de sua versão socialista burocrática, abrindo espaço para o fortalecimento de direção pró-mercantil no PCC. A segunda, convulsionou o país e sua economia, ao defenestrar a facção pró-burguesa, entregando totalmente a direção do Comitê Central a Mao e à facção maoísta.
Não avançando qualquer modificação na ordem social e econômica, ala permitiu a consolidação e o avanço dos segmentos sociais e políticos restauracionistas. O Grande Salto e a Revolução Cultural terminaram fortalecendo a imensa economia pequeno-mercantil que dominava a sociedade chinesa, em contradição indissolúvel com o esforço de construção de uma ordem socialista. Ou seja, em oposição ao movimento pela construção de uma sociedade apoiada na propriedade pública dos meios de produção e no planejamento geral da economia. Iniciativa que tinha como desdobramento necessário o retrocesso crescente e extinção da grande propriedade privada e das determinações anárquicas do mercado, disciplinadas essas últimas pelo planejamento social centralizado.
Aqueles dois imensos fracassos e o fortalecimento da produção mercantil na China foram seguidos da surpreendente viagem de Nixon à China, em 1972, que estabeleceu a aliança do “Império do Meio” com os USA, seu até então arqui-inimigo, em um viés anti-URSS. Uma convergência querida e impulsionada por Mao Tsé-Tung. A aliança antinatural e o abandono-traição imediato dos movimentos armados camponeses marxistas-leninistas apoiados por Pequim golpearam duramente o maoísta internacional, que em parte se aconchegou transitoriamente à sombra de Enver Hoxha (1908-85), exótico burocrata-mor da Albânia que povoou o país miserável com dezenas de milhares de micro-bunkers de cimento armado. Tudo para que o minúsculo bastião vermelho albanês resistisse à invasão de exércitos imperialistas ou revisionistas chegados do “deserto dos tártaros” transferido agora aos Bálcãs.
A morte do “Grande Timoneiro”, em 1976, e a reorientação explicita para a economia de mercado e para o capital internacional, comandada por Deng Xiao-Ping, em fins de 1978, foi o desdobramento lógico do impulso mercantil-capitalista das décadas anteriores. Definitivamente, a consolidação do movimento de restauração capitalista não surgiu de decisão monocrática de Deng Xiao-Ping ou de outros personagens iluminados, como propõem a historiografia chinesa e muito sinófilos, no Brasil e no mundo. A restauração capitalista nasceu de derrota histórica da revolução socialista, objetivada através de uma dura e surda luta de classes. Derrota dos trabalhadores que jamais puderam construir uma direção própria que os emancipasse dos freios da burocracia maoísta.
O despertar do dragão – das bugigangas ao 5G
No contexto da restauração capitalista, a China empreendeu um acelerado processo de industrialização, apoiado em capitais privados mundiais e nacionais. Ele deu-se através do mega movimento de privatizações; da super-exploração de centenas de milhões de trabalhadores; do fim da planificação central e regional da economia, substituída pelo tacão do mercado. Segundo dados oficiais, entre 1998 e 2002, mais de 26 milhões de trabalhadores de unidades produtivas estatais haviam sido demitidos, perdendo os direitos que detinham. Em 2005, apenas 15% das pequenas e médias empresas estatais não tinham sido reestruturadas ou privatizadas. A restauração capitalista partejou uma burguesia nacional chinesa de enormes dimensões e rapacidade, por um lado, e um mega-proletariado, duramente explorado e controlado, por outro.
A restauração capitalista e a construção de mega economia de mercado deram-se apoiadas na enorme afluência de capitais internacionais; na frutificação dos capitais, sobretudo rurais, amealhados e entesourados nas décadas anteriores; no investimento das indenizações, muitas vezes significativas, dos “burgueses patriotas”, após 1949; na repatriação de capitais da riquíssima emigração chinesa, com fortíssimas contradições com o socialismo. Um padrão de desenvolvimento que tem feito avançar relativa e incessantemente o capital privado em relação ao estatal, que passou a ocupar em boa parte os ramos da produção de menor rentabilidade. Em 2021, a China (com Hong Kong) contava com em torno de mil super-bilionários, na frente dos USA, que ocupavam a segunda posição, com pouco menos de 700.
A incorporação inicial da China na divisão internacional da produção capitalista, como produtora e exportadora de mercadorias de baixa tecnologia, foi favorecida e apoiada pela administração democrata de Bill Clinton (1993-2001). Ela produzia lucros fantásticos para o grande capital internacional, com destaque para o estadunidense, super-explorando os trabalhadores e os recursos chineses e se esbaldando no mercado amazônico oriental. A acumulação de capital na China se desdobrou naturalmente na produção de bens crescentemente refinados, favorecida pela absorção semi-forçada — e legal — da tecnologia internacional.
Um processo que levou, em forma inexorável, à conformação e à super-acumulação de capitais monopólicos públicos e privados chineses, obrigados, agora, por sua natureza, a exportar capitais, e não mais apenas mercadorias. Esse processo de produção e acumulação de capitais circunscreveu o nascimento e a consolidação de poderoso capital monopólico que consubstanciou o caráter indiscutivelmente imperialista do país, no sentido leninista do termo.
Uma nação assume caráter imperialista quando seu Estado passa a ser determinado em forma essencial ou substancial pelos capitais monopólicos, forçados, por sua natureza, a exportar capitais — através de empréstimos, de compra de ativos no exterior, de joint-ventures, de fundação de empresas, etc. A dimensão do capital monopólico permite o super-lucro, que o alimenta, através da submissão de capitais de menor dimensão. Ele se expande em forma incessante, necessitando a colonização de novos territórios, para valorizar seus mega-capitais, como necessitamos do ar para respirar. Se não o fizer, sucumbe. O caráter imperialista de um país não depende necessariamente do comportamento violento ou pacífico das ações de uma nação — intervenções militares, etc.
A Suíça, a Holanda, a Itália, o Japão são nações imperialistas, subordinadas ao capital estadunidense, que não invadiram ninguém nas últimas décadas. O Plano Marshall (1947-51) foi subordinação soft da economia e da sociedade europeia pelo imperialismo estadunidense. A “Nova Rota da Seda” [Belt and Road Initiative] é uma espécie de Plano Marshall mundial com olhos de amêndoas. Procura criar um mundo econômico onde todas as estradas levem agora a Pequim, e não mais a Nova Iorque, a Roma imperial no século XX.
O nascimento e endurecimento do conflito China-USA
A China se transformou na “fábrica do mundo”, como foram a Inglaterra e os USA, e em mega compradora mundial de matérias-primas e exportadora de capitais. Recebeu o apoio do capital globalizado, enquanto integrou em forma subordinada a divisão internacional da produção capitalista. Entretanto, de nação aberta aos capitais estrangeiros, com o forte apoio dos USA, passou a produzir mercadorias e serviços tecnológicos e a exportar capitais. Endureceu igualmente a exigência de transferência de tecnologia por parte das empresas globalizadas estabelecidas no país. O que é um direito reconhecido internacionalmente. De sócia minoritária do capital internacional, passou a disputar um amplo e crescente lugar ao sol, através do mundo, passando a refestelar-se em praias onde se bronzeavam exclusivamente seus antigos parceiros maiores.
A superação da relação de dependência da economia capitalista chinesa, em relação ao capital imperialista mundial, ensejou resposta, ainda que tardia, do imperialismo ianque, representando igualmente seus aliados-súditos. O confronto inter-imperialista China-USA expressa uma disputa incontornável pelo domínio de espaço vital, no sentido lato do termo. Mutadis mutandis, ele repete o conflito entra a França e a Inglaterra, no século 18 e inícios do século 19; da Alemanha contra a França-Inglaterra-USA, na duas guerras mundiais. A mesma disputa que levou os USA a substituírem pacificamente a Inglaterra no domínio da economia mundial, no século XX. Ou a cortar as asas do Japão, em 1985, exigindo valorização do yen que pôs fim a um dinamismo que ameaçava a supremacia ianque. (Acordos do Plaza, em Nova Iorque). Inglaterra e Japão aceitaram a submissão já que eram incapazes de qualquer resistência militar. O que não é o caso da China.
Os USA vivem atualmente da rapina permitida pela supremacia imperialista. Acumulam monstruosos déficits fiscais e comerciais. Gastam mais do que arrecadam e importam além do que exportam. Jogando a cartada da globalização, dezenas de milhares de empresas ianques abandonaram o país, desindustrializando-o. Os USA seguem vivendo sobretudo da hegemonia financeira que o dólar lhes garante como moeda mundial de troca e de refúgio. Praticamente todas as trocas comerciais, pagamentos, etc., internacionais se servem nessa moeda. As reservas das nações, bancárias e mesmo individuais realizam-se prioritariamente em dólares. Os USA literalmente emitem moeda papel e a trocam por valores reais. O envelhecimento do aparato produtivo estadunidense e a desindustrialização relativa do país circunscrevem sua decadência manufatureira.
A hegemonia industrial da China e seu avanço nos setores tecnológicos, em que ainda se encontra atrasada em relação ao imperialismo estadunidense e seus aliados, estreitam a janela de tempo em que os USA podem usar sua atual superioridade sobretudo militar, financeira e diplomática para fazer retroceder-desorganizar o Estado chinês. Movimento a ser realizado através de todos os tipos de pressões, com destaque para possíveis conflitos militares localizados, que podem se transformar em confronto gerais. USA e nações súcubas empreendem a mesma ação contra a Rússia de Putin, procurando retorná-la aos tempos de Iéltsin, o que tem consolidado a aliança China-Rússia.
Comunismo de mentirinha
Reagindo a essa ofensiva geral do imperialismo estadunidense, a China investe nas tecnologias estratégicas em que se encontra atrasada; impõe controle sobre mega-monopólios chineses que tendem a se autonomizar em relações aos interesses gerais da economia do pais; potencia suas forças armadas, construindo porta-aviões, arma por excelência das nações imperialistas; investe na produção nacional de mercadorias e bens estratégicos importadas — programa “Made in China 2025”. Esboça ensaio de construção de circuito financeiro internacional alternativo ao dólar, o que lhe motivaria um golpe duríssimo. O lançamento do yuan digital, atualmente em curso, se alcançar sucesso global, permitirá que o mega-comércio chinês abandone o dólar como moeda de troca e de referência.
Essa reação, em defesa do capital monopólico chinês, realiza-se sob o comando do PCC, que mantendo a sigla e algumas referências simbólicas, comandou a restauração capitalista na China. A mesma metamorfose foi conhecida na URSS, onde a restauração capitalista foi também comandada desde o interior de um Partido Bolchevique que mantinha apenas laços simbólicos com a organização marxista revolucionária que assaltara o poder, em 1917, vencera a Guerra Civil, em (1918-21) mas sucumbira nas mãos da burocracia estalinista e pós-estalinista, em meados dos anos 1920. Hoje, o PCC é um partido nacional-capitalista, que expressa prioritariamente o capital monopólico chinês. Entretanto, para manter sua hegemonia sobre a China, e defender o Estado nacional, é obrigado a assegurar o crescimento das condições médias de existência da população chinesa. Se não o fizer, será apeado do poder, eventualmente no contexto de grandes convulsões sociais e desorganização nacional do país.
A pugna USA-China no Brasil
A China debutou no Brasil, primeiro, como mega compradora de matérias-primas e, logo, como grande investidora de capitais. Um avanço que, como vimos, motivou forte campanha do imperialismo estadunidense para no mínimo dificultar a penetração do capital chinês em um país que considera, ao igual que para o resto do continente, como espaço semi-privado de intervenção. Um dos objetivos do golpe de 2016 foi barrar o importante ativismo no país dos capitais do “Império do Meio”. O segundo governo golpista se desdobrou nessa orientação, despreocupado com as decorrências do sua sinofobia no que diz respeito aos capitais nacionais e internacionais investidos no Brasil, como também assinalado.
Tem-se destacado o risco do semi-monopólio de que a China goza no Brasil como importadora de produtos primários, com destaque para a soja em grão, o minério de ferro e o petróleo —80% das exportações. Governos e produtores propõem comumente uma dependência quase estrutural, de caráter semi-eterno, do comprador ao vendedor, ou seja, da China ao Brasil. Entretanto, mesmo o desvio parcial das compras realizadas no Brasil causaria fortes sequelas a uma economia crescentemente dependente das exportações primárias. O semi-monopólio comprador determina forte capacidade de pressão chinesa sobre o governo, a economia e a sociedade brasileira.
Ao contrário das exportações, os investimentos diretos de capitais chineses no Brasil recebem menor atenção dos analistas, sobretudo quanto ao seu volume e perfil, também de sentidos fortemente patológicos. O despertar do interesse do capital monopólico chinês pelo Brasil, como destino de investimentos, deu-se, em torno de 2002-4, no início da primeira administração petista, com crescimento contínuo e explosão, em 2010, durante a primeira administração Dilma Rousseff, com investimento de US$ 13 bilhões de dólares, através de apenas 12 “projetos”. A seguir, os investimentos se manteriam com maior moderação. (CARIELLO, 2021, p. 10-14.)
Nos últimos treze anos, o grande capital chinês investiu em torno de 66,1 bilhões de dólares, através de 176 “empreendimentos” concretizados — pouco menos de 50% das aplicações totais chinesas na América do Sul. Nesse processo, a China transformou-se no segundo “principal investidor, em termo de estoque, entre 2003 e o terceiro semestre de 2019”, abocanhando 30,9% das aplicações realizadas no Brasil — 0,3% atrás dos USA. (CARIELLO, 2021, p. 10, 17 et pas.)
Os investimentos externos de capitais se dão sob a forma de fusões e aquisições; joint ventures e os chamados greenfields. A fusão é a associação de capitais externos e internos no país. A aquisição constitui a simples compra de empreendimentos estabelecidos no Brasil. A joint venture é parceria de capitais externo e internos no lançamento de empreendimentos nacionais. E, finalmente, greenfield é o estabelecimento de novos empreendimentos pelo capital. Dos 66,1 bilhões de dólares chineses que entraram no país nos últimos anos, 46,3 bilhões — 70% — foram através de “fusões ou aquisições, por meio da compra total ou parcial de empresas brasileiras ou estrangeiras em operação no país. Desse valor, o setor de eletricidade teve a participação mais relevante, com fatia de 41%”. Os empreendimentos greenfields foram responsáveis por 24% e as joint ventures, por apenas por 6%. (CARIELLO, 2021, p. 10, 11, 17, 29, et pas.)
De 2007 a 2020, os mega-investimentos chineses se concentraram no “setor de energia elétrica –(…)–, seguido por extração de petróleo e gás (28%), extração de minerais metálicos (7%), indústria manufatureira (6%), obras de infraestrutura (5%), agricultura, pecuária e serviços relacionados (3%) e atividades de serviços financeiros (2%).” As grandes empresas públicas chinesas, com destaque para as estatais State Grid Corporation e China Three Gorges, com as macro-decisões tomadas em Pequim, controlam hoje, no mínimo, o “equivalente a 10% do total nacional” de transmissão e distribuição de energia elétrica do Brasil. A grosso modo, tratou-se de transferência de propriedade de empresas públicas e privadas nacionais, com controle nacional ou não, para o domínio do capital monopólico chinês. Movimento que constituiu parte da radical desnacionalização e internacionalização da economia brasileira. A compra e o controle de empresas rentáveis, a baixo preço, são o padrão imperialista preferido sobretudo quando de loteamento de um país. Realidade impulsionada pelas administrações federais passadas, inclusive as petistas.
Quanto à sua qualidade, os investimentos chineses se dão sobretudo com aportes unitários vultuosos, em empresas estratégicas instaladas de alta rentabilidade, através da transferência de controle das mesmas. Realidade agravada no caso chinês pelo fato de que 82% dos investimentos foram feitos por apenas dezesseis das chamadas “estatais centrais” do Império do Meio, subordinadas ao Conselho de Estado daquela nação, através da Comissão de Supervisão e Administração de Ativos Estatais da China, SOEs, com aumento do lucro líquido em 29,8% em 2021. Não se trata de inversões privadas externas de controle atomizado, mas de vultuosas aquisições centralizadas realizadas pelo governo chinês.
Outra questão pouco lembrada, determinante para a autonomia nacional brasileira, é que os investimentos chineses cobrem hoje 23 dos 27 estados da federação, com destaque para São Paulo (31%), Minas Gerais (8%), Bahia (7,1%), Rio de Janeiro (6,7%), Goiás (5,4%), Pará (4,6%). (CARIELLO, 2021, p.10 et pas.). Não encontramos estimativas da repercussão dos investimentos chineses no relativo à destruição do emprego, devido às privatizações, licenciamento, empobrecimento nacional pela exportação de dividendos, royalties, etc. Também o imperialismo chinês é vetor de produção da miséria nacional. O capital chinês aplicado no Brasil, com centro de decisão centralizado na China, sobretudo pelo governo central, possui uma capacidade de interferência econômica e política espraiada através de praticamente todo o país. Tinha razão Bolsonaro ao denunciar que a “China não estava comprando no Brasil, mas estava comprando o Brasil”. Só que queria e quer reservar esse direito aos USA!
China – um debate de foice e facão
No Brasil, o novo interesse analítico pela China dividiu-se, a grosso modo, em duas vertentes. Uma acadêmica, interessada em analisar, sobretudo do ponto de vista econômico, o nascimento e desenvolvimento da China como grande potência. Busca-se, em boa parte, compreender o processo para melhor nele se inserir. Trata-se de vertente, em nenhum caso despida de determinações ideológicas, mas que produz trabalhos de valor, fundamentais para uma leitura crítica da realidade chinesa, em geral, e suas relações com o Brasil, em especial.
A segunda vertente, mais pobre em conteúdo, organizou-se em torno do problema político posto hoje pela China. Através de diversas interpretações, ela dividiu-se particularmente em torno da defesa ou da impugnação da proposta de “transição do sistema centralmente planificado para a economia de mercado com característica chinesas”. Economia de mercado, dita de sentido socialista, proposta como uma NEP de cem anos, que antecederia uma futura transição ao socialismo, em data imponderável. Nela, prevalecem as narrativas político- ideológicas.
As raízes político-ideológicas dessa vertente são claras. Com a vitória histórica da contra-revolução capitalista, assinalada pela dissolução da URSS, em 1991, o mundo do trabalho retrocedeu e apequenou-se como alternativa à crise mundial em que submergiu a humanidade. A maré conservadora ensejou a retração das visões nascidas do trabalho e fortaleceu as paridas pelo capital. Nessa onda conservadora surfou a defesa da restauração capitalista na China como uma nova modalidade de longuíssima transição em direção ao socialismo, através do mercado e do capital, a ser seguida doravante pela esquerda.
No Brasil, o menino-propaganda dessa transição foi o italiano Domenico Losurdo, marxista-leninista que seguiu a direção chinesa quando ela se abraçou com o imperialismo estadunidense, em 1971 — acordo Nixon-Mao. Na época, o professor italiano propôs aliança da esquerda e dos trabalhadores com o imperialismo estadunidense, com a Democracia Cristã, com o partido fascista e com o exército italiano. Tudo para fazer frente à um proposta iminente invasão da Itália pela … URSS, apoiada pelo PCI. Quase foi linchado!
Segundo Losurdo, o renascimento do programa e do movimento socialista daria-se sob o signo de um neo-estalinismo. Este último propõe o reino do mercado, das inversões capitalistas e da exploração dos trabalhadores, isto é, a “via chinesa” do socialismo de “mercado”, que se afirma de “sucesso” comprovado. Losurdo e esta proposta são defendidos pelo PCdoB e têm larga influência no PCB.
O debate sobre o caráter “capitalista” ou “socialista” da China acirrou-se, no Brasil e no mundo, com a ofensiva do imperialismo estadunidense contra o “Império do Meio”, a partir da administração Donald Trump, iniciativa radicalizada por Joe Biden, como vimos. No novo contexto, as interpretações sobre a China dividiram-se em torno de algumas questões essenciais. Há os que defendem uma China não imperialista, neo-socialista, promotora de desenvolvimento harmônico econômico e social mundial e bastião da luta contra a hegemonia do imperialismo ianque e de seus aliados-súditos. Uma China que investiria seus capitais no exterior praticamente com objetivos filantrópicos. O geógrafo Elias Jabour é o principal defensor dessa leitura piedosa sobre a ação da China no mundo, que propõe apoio incondicional ao Dragão chinês.
Há os que, mesmo defendendo o caráter capitalista, impugnam a proposta de um imperialismo chinês, devido à ainda grande dimensão do setor público da economia daquele país; ao atraso de algumas de suas regiões; à inserção recente da China como exportadora de capitais, etc. Afirma-se, até mesmo, que a China conheceria “imperialismo em construção”, de futuro ainda indefinido. Em geral, os defensores desta posição destacam uma eventual importância da nação oriental na luta contra a hegemonia mundial dos USA. De certo modo, levantam a bandeira branca para a ação do capital chinês no mundo, e propõem ataque ao “quartel-general” ianque.
Temos os que defendem a neutralidade do mundo do trabalho no confronto inter-imperialista ianque e chinês, no estilo “que se matem, não temos nada a ver com esse arranca-rabo”, ele não nos diz respeito. Trata-se de visão que desconhece a ofensiva imperialista internacional contra aquela nação, ao igual do que o realizado quando dos ataques ianques ao Afeganistão, ao Iraque, à Líbia, à Venezuela, a Cuba. Justificam a negativa de defender a independência nacional daquelas nações devido aos governos autoritários e burocráticos dos referidos países. No frigir dos ovos, apoiam a ação imperialista estadunidense.
A defesa da China, como nação, contra o atual ataque ianque, sem olvidar a ação deletéria do capitalismo e imperialismo chineses, no interior do país e no exterior, constitui posição minoritária, que compartimos. Concordamos com aqueles que apontam a transformação da China como grande exportadora de capitais, o que a tornou nação imperialista, no sentido leninista do termo. Sem acarretar necessariamente o uso de medidas de forças, desnecessárias nesse momento e impossíveis de serem aplicadas, em forma geral, sob a ainda atual hegemonia, mesmo decrescente, do imperialismo estadunidense.
Debate secundário, mas não menos importante, é travado sobre a inevitabilidade e proximidade temporal do confronto militar USA-China. Realidade sobre a qual podemos apenas explicitar as possíveis tendências dominantes, que, ao nosso entender, apontam para graves conflitos armados locais promovidos pelos USA e pela OTAN contra a Rússia e a China, nos próximos tempos.[1]
*Mário Maestri é historiador. Autor, entre outros livros, de Revolução e contra-revolução no Brasil: 1500-2019 (FCM Editora).
Apresentação do ensaio O despertar do dragão: nascimento e consolidação do imperialismo chinês. (1949-2021). O Conflito USA-China no Mundo e no Brasil. Porto Alegre, FCM Editora, 2021. 142 págs.
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Nota
[1] Agradecemos a leitura da linguista Florence Carboni.