A crise do contrato social

Imagem: Alexey Demidov
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Por LUIZ MARQUES*

A democracia liberal não conseguiu conter a espiral descendente do contrato social moderno

Na teoria política clássica, a tensão entre a regulação social e a emancipação social tem como fiadores o Estado nacional, o direito e a educação cívica. Em Hobbes, Locke e Rousseau isso se dá por meio do contrato social. Do pacto participam os indivíduos e suas associações. Ficam excluídos do contrato social os que não correspondem aos critérios tácitos de cidadania e também a natureza inumana – o meio ambiente, definido como um recurso econômico espoliável. No consórcio, somente recebem o estatuto de cidadãos os homens brancos e héteros. Mulheres e minorias fora do padrão hegemônico (indígenas, gays) e mesmo as maiorias étnicas (negros, negras) ficam excluídos.

Os grupos políticos que se autodenominam “conservadores”, qual a Ku Klux Klan, filiam-se à matriz patriarcal e colonialista de pensamento e opõem-se com uma indômita radicalidade à universalização do contratualismo, portanto, aos valores da modernidade. Não espanta a denúncia da filha de Olavo de Carvalho, em entrevista à Carta Capital, de que aprendeu a ler apenas aos doze anos quando foi morar com uma tia que, chocada com o descaso paterno, matriculou-a numa escola onde sentava junto de crianças com sete anos. O abandono intelectual do pai, que provoca ojeriza, é consequência de um conservadorismo filosófico levado à prática por convicções discriminadoras in extremis, em nome das tradições. Não deveria ser psicologizado, mas criminalizado.

O movimento feminista pela igualdade de gênero, a luta contra o racismo pela igualdade racial, os grupos LGBTQIA+ em prol da liberdade de orientação sexual e as ações pelo compartilhamento das benesses civilizacionais, entre as populações rurais e urbanas, buscam nos ideais igualitários a base para a sociedade democrática, aberta a sociabilidades alternativas. Tais grupos, nos campos de batalha por direitos, criam a solidariedade dos iguais que encoraja a prosseguir em meio às adversidades.

Como sublinha Boaventura de Sousa Santos, em A gramática do tempo: para uma nova cultura política (Autêntica): “Embora a contratualização se assente numa lógica de inclusão/exclusão, ela só se legitima pela possibilidade de os excluídos – declarados vivos em regime de morte civil – virem a ser incluídos. A lógica operativa do contrato social está em permanente tensão com a sua lógica de legitimação. As possibilidades imensas do contrato coexistem com a sua inerente fragilidade”. Com certeza, o neoliberalismo potencializa e agudiza as contradições até o paroxismo.

 

Reformismo revolucionário

Aqui, importa salientar que a desejada contratualização para “todes” implica bens públicos: governos legítimos amparados na vontade popular através de eleições limpas, bem-estar econômico e social para o povo, segurança e respeito aos human rights e, ainda, uma identidade cultural nacional. O desgoverno no Brasil não contempla nenhum dos requisitos. A combinação do neoconservadorismo (Damares) com o neoliberalismo (Guedes) e o neofascismo (Bolsonaro) rompe os laços com a modernidade e mina os frágeis alicerces da democracia constitucional. Noutros termos, “o fundamentalismo religioso, o libertarianismo e a reciclagem do antigo anticomunismo” provocaram a “reemergência da direita brasileira”, aponta Luis Felipe Miguel, em artigo no livro O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo). Daí a governabilidade iliberal.

Neste contexto, em meio à crise pandêmica e à crise econômica agora acrescida pelo conflito bélico na Ucrânia cujas consequências se farão sentir além da Eurásia, o horizonte fica rebaixado. A luta de classes funciona como instrumento para domesticar, em vez de suplantar o capitalismo. A revisão da reforma trabalhista que precarizou mais o trabalho e generalizou o desemprego na escala de milhões, a retomada de investimentos do Estado na educação, saúde, infraestrutura, moradias populares, inovação tecnológica, etc. – servirão num provável governo Lula para minimizar a exploração e humanizar o capitalismo com viés socialdemocrata: aos moldes da Europa ocidental pós-guerra. Contudo, concertações do jaez têm poucas chances de prosperar, a menos que se articulem com uma perspectiva de superação do sistema – para obter vitórias substantivas.

Nos países centrais, a utopia reduziu-se ao Estado-providência. Nos países periféricos, ao Estado desenvolvimentista. A bandeira do socialismo foi guardada no armário, de onde só saiu em dias de festa, durante o inverno neoliberal. Conforme Thomas Piketty, em Capital e ideologia (Intrínseca), a “sociedade justa é aquela que permite o maior acesso possível aos bens fundamentais e à participação nas várias dimensões da vida social, cultural, econômica, civil e política”. Seu propósito é, em síntese, “organizar as relações socioeconômicas, as relações de propriedade e a distribuição de renda e de patrimônio a fim de possibilitar aos membros menos favorecidos que se beneficiem das mais elevadas condições de vida possíveis”. Para o que é preciso ousar conquistar a justiça.

É difícil catalogar as políticas, acima listadas, em um reformismo com vistas a maquiar a dominação do capital, conquanto não proponham a alegórica tomada do Palácio do Planalto. Há virtude na empatia com o sofrimento das pessoas e humanismo nas ações institucionais que combatem a miséria e a pobreza, a desigualdade de gênero e de “raças”, a intolerância e a repressão policial para coibir as diferenças, promovendo a ascensão social das classes subalternizadas para qualificar a existência em sociedade. As reformas não se contrapõem às revoluções. Lucien Goldmann condensou ambas na expressão “reformismo revolucionário”, para preencher o vácuo de estratégias nas fileiras anticapitalistas e contornar as inflexões messiânicas na interpretação da história. O inimigo da utopia socialista é a carência de direitos, nunca foi a consciência do direito a ter direitos.

 

A herança do fascismo social

É correto afirmar que o ápice da legitimidade do Estado reside na conversão, sempre problemática, do tensionamento entre democracia e capitalismo num círculo virtuoso em que ambos prosperam, sem sacrificar a primeira no altar da acumulação. Não obstante, se espalham variantes da extrema-direita anunciando a crise do contrato social em uma espécie de ciberdistopia. “As redes sociais são importantes no processo de mudanças; mas são, antes de tudo, caixa de ressonância dos fenômenos que geram estados de opinião: não o revés. Fenômenos que podem ser produto de estímulos, muitos deles indiretos, que superpõem distintos modelos de controle político, criminal e militar que foram ignorados, aceitos e tolerados pelos atores sociais”, segundo Francisco Veiga et alli, em Patriotas indignados: sobre la ultraderecha en la posguerra fria (Alianza). Sem o medo despertado pelo abalo nas estruturas do sexismo, do racismo e da homofobia as fakes news bolsonaristas sobre absurdas “mamadeiras de piroca” não teriam audiência.

Os valores associados à modernidade permanecem (liberdade, igualdade, solidariedade, autonomia individual, justiça social), mas sob o bombardeio de significados simbólicos díspares nas “narrativas” com enunciações que relativizam a autoridade da ciência, do conhecimento e do bom senso. Hoje, hordas negacionistas fazem fogueiras com as máscaras sanitárias para proclamar a “liberdade” de cada indivíduo à revelia da saúde pública e das recomendações da OMS e da Fiocruz, quando não invadem hospitais para afrontar as equipes de enfermagem e os pacientes. A arena pública virou um deus-nos-acuda, em que não são argumentos que contam, senão crenças subjetivas.

Duas questões (complementares) concorrem para a grave crise de garantias contratuais: (a) O pré-contratualismo, que bloqueia o caminho de agrupamentos sociais para usufruir direitos de cidadania, a exemplo do direito ao primeiro emprego e; (b) O pós-contratualismo, que confisca direitos adquiridos, como Temer e Bolsonaro fizeram ao cancelar programas sociais dos governos Lula e Dilma.

Numa e noutra hipóteses, cidadãos são jogados de volta ao estado de natureza hobbesiano com o carimbo de lumpen-cidadania, legando de herança uma subclasse de excluídos. Na designação de Jessé Souza, uma “ralé” que reside em zonas afastadas, sem emprego fixo e formação profissional, em famílias monoparentais chefiadas por mulheres guerreiras apesar de dependentes da assistência social, e com tendência às lides criminosas para suprir a sobrevivência. Impossível mudar o status quo sem que adiram.

As formatações do fascismo atual não repetem experiências de 1920-1930. O “fascismo social”, entre nós, pode assumir traços do apartheid, com uma cartografia urbana que separa ricos e pobres; paraestatal, sob coação e regulação fora das instâncias legais (a cargo de milícias); contratual, onde a parte mais fraca está submetida ao poder de outra mais forte; financeiro, sob comando de investidores ao abrigo de intervenções democráticas no cassino das Bolsas de Valores. Neste emaranhado de horrores, há que fazer “a reinvenção solidária e participativa do Estado”, assinala o autor de A gramática do tempo. O Ato Pela Terra, em Brasília, foi quiçá o embrião de promissoras interseccionalidades.

 

Pelo socialismo participativo

As lutas futuras precisam ultrapassar os marcos da grande vitória conquistada pelo neoliberalismo, ao longo de duas gerações de hegemonia (desde 1980) – que acondicionou o espírito da utopia no reino das necessidades, longe da liberdade.

A democracia liberal não conseguiu conter a espiral descendente do contrato social moderno, que despotencializou a emancipação por largo período. Suas limitações ficaram escancaradas em modalidades de descontratualizações impulsionadas pelo sinistro comboio neoconservador, neoliberal e neofascista. A democracia necessita da participação cidadã para encaminhar as tarefas que a representação não realizou.

Com uma plataforma em defesa de um mundo ecologicamente preservado e socialmente justo, o governo progressista liderado por Lula terá oportunidade de expandir o paradigma contratualista para o conjunto das brasileiras e dos brasileiros, em toda a sua diversidade, avançando nas lutas que propugnam a igualitarização de direitos, sem tratar a natureza como uma simples mercadoria. O aquecimento global não é uma metáfora. É uma realidade que ronda a própria sobrevivência da humanidade e do planeta.

Novas formas de sociabilidade política desafiam a legião de lutadores sociais e políticos com as sementes do socialismo participativo para o controle público do Estado. É hora de tirar as bandeiras vermelhas do armário e colocar o bloco na rua.

*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

 

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