A cultura emergente nacional-multipolar

Imagem: Dalila Dalprat
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Por LUIS EUSTÁQUIO SOARES*

Uma revolução cultural do Sul-Global é absolutamente necessária. Deve ter como objetivo a descolonização do Ocidente

“Dos invasores eu não quero nem a minha vida!” (José Azueta, México, 21/04/1914).

Preâmbulo

Para iniciar este ensaio, cito os versos a seguir do poema “Cenário”, presente no livro Romanceiro da Inconfidência (1953), da poeta carioca, Cecília Meireles:

“vejo uma forma no ar subir serena:
vaga forma, do tempo desprendida.
É a mão do Alferes, que de longe acena.
Eloquência da simples despedida:
“Adeus! que trabalhar vou para todos!…”

(Esse adeus estremece a minha vida.)” (MEIRELES, 1979, p. 15)

Comparativamente, considerem o fragmento abaixo de Otelo, uma tragédia de Shakespeare, 1º ato, Cena I, escrito trezentos e cinquenta anos antes de Romanceiro da inconfidência:

“O céu é testemunha:
 não me move o dever nem a amizade,
mas, sem o revelar, só o interesse
Se as mostras exteriores de meus atos
 me traduzissem os motivos próprios
do coração em traços manifestos,
carregaria o coração na manga,
para atirá-lo às gralhas. Ficai certo:
não sou o que sou
(SHAKESPEARE, p. 19-20, s/d)).

Antes de analisar a relação que farei entre os dois fragmentos citados, proponho uma interlocução com dois teóricos, a saber: com Raymond Willians, de Tragédia Moderna (2002); e com o intelectual palestino, Edward Said, de Cultura e imperialismo (1993).

Do primeiro, tomo emprestado o seu conceito de tragédia, assim concebido: a tragédia vem antes do acontecimento trágico, o seu efeito, pois é imanente a arranjos institucionais, com suas convenções e experiências, estruturados pelo signo da exclusão e da violência. Por exemplo, o capitalismo é um modo de produção de arranjo estrutural-institucional absolutamente trágico porque nele o capital acumula poder e riqueza às custas do trabalho coletivo e individual, inclusive do trabalho escravizado (não pago) da natureza.

A consequência dessa arquitetura de dominação, para fazer uma referência a um trecho da letra da Internacional Comunista, é a seguinte: o modo de produção capitalista é um trágico “antro estreito”, para burgueses e para operários, com a diferença substantiva relacionada ao fato de que, no âmbito das relações sociais de produção, é sempre a classe trabalhadora que se apresenta como o objeto convencional das experiências trágicas, por ser classe explorada, desumanizada.

Do segundo, com Said de Cultura e imperialismo, a questão central a ser desenvolvida é relativa à existência de uma cultura imperialista, da qual não escapou nem mesmo autores como Shakespeare, por duas razões: (i) pelo fato puro e simples de escrever em língua inglesa, tornou-se um representante do imperialismo britânico em formação, mesmo que não soubesse ou quisesse; (ii) porque, não obstante a qualidade estética de sua produção literária, plasmou em suas peças a estrutura trágica dos impérios oligárquicas ocidentais, projetando-os a um tempo como inconsciente estético e político para a constituição e formação do imperialismo britânico.

No que diz respeito ao ponto ii, exemplar é a peça Hamlet (1599), a mais conhecida e de maior projeção do dramaturgo inglês. Seu enredo trágico gira em torno do assassinato do pai de Hamlet realizado por seu tio, Claudio, a fim de lhe usurpar o trono, em consórcio com ninguém menos que a própria rainha.

Assassinado, o pai se torna o Fantasma, personagem que, no Ato I, Cena V, implora vingança ao filho nos seguintes termos: “Não permitas que o leito real da Dinamarca fique como catre de incesto e de luxúria” (SHAKESPERE, 1992, p. 61), ressaltando no final da passagem esta cobrança afetiva: “Lembra-te de mim” (SHAKESPERE, 1992, p.6).

Se, em interlocução com Sigmund Freud, há, no sonho, o conteúdo manifesto, aquilo que é sonhado; e o conteúdo primário, aquilo que é recalcado e ocultado pelo primeiro, por meio de processos de deslocamento e condensação, defendo a existência de uma arquitetura trágica em Hamlet constituída por dois planos: (a) o edípico e manifesto, marcado pelo apelo afetivo do pai ( lembra-te de mim) ; (b) o do conteúdo primário relativo às guerras de conquista e expansão de reinos, impérios, imperialismos, representado por Fortimbrás, o príncipe da Noruega e os embaixadores da Inglaterra.

Ora, considerando que primeiro plano se constitui como um “antro estreito’, suas convenções e experiências trágicas são o campo fértil para ocorrências de tragédias baseadas na culpa, no castigo, no ciúme, no engano e autoengano confessionais, limitados pelo triângulo edípico pai, mãe, filho e suas redundâncias não menos edípicas que rodopiam a partir da miragem de um sistema de filiação que replica o pai ( nos substitutos Cláudio, Hamlet, pai e potencial rei), a mãe ( a rainha infiel e sua virtual substituta etária, Ofélia), no futuro de novos herdeiros, considerando a perspectiva do casamento de Hamlet com Ofélia.

Em seus processos intimistas e familistas de deslocamento e condensação, a trama edipianamente vingativa da peça produz seus efeitos trágicos com assassinato involuntário de Polônio, pai de Ofélia, realizado por Hamlet, com o suicídio de Ofélia, com a fúria, em nome da honra, de Laertes, até alcançar o desfecho da trama, no Ato V, com a cena de morticínio em que todos se vingam e se matam, evidenciando o triunfo do segundo plano trágico com a seguinte ordem do quase morto Hamlet a Horácio: “Morro, Horácio; o veneno me domina já quase todo o espírito; não posso viver para saber o que nos chega da Inglaterra. Contudo, profetizo que há de ser escolhido Fortimbras. Meu voto moribundo é também dele” (SHAKESPEARE, 1992, p.400).

O plano edípico da peça, desse modo, funciona como o seu conteúdo manifesto trágico, de modo que o primário não é outro senão este: o reino da Inglaterra expandida, que inclui também Dinamarca e Noruega, será tanto mais vitorioso e imbatível quanto mais for à guerra contra outros impérios e nações, não podendo perder tempo com intrigas palacianas. Suas instituições e convenções estruturalmente trágicas devem estar arregimentadas para ampliar territórios, colonizar, saquear, exterminar e escravizar povos. Não há espaço para aporias metafísicas ao estilo do monólogo Hamlet de “ser ou não, eis a questão”.

Com Raymond Williams, com Said e com Freud, o arranjo trágico da cultura imperial ou imperialista é o conteúdo primário da civilização ocidental, baseado na expansão e na guerra de saqueio e colonização, esse (im)puro ato de violência, como argumentou Franz Fanon em Os condenados da Terra (1961). É nesse sentido que é possível afirmar que Shakespeare foi um dramaturgo do protoimperialismo inglês e se tornou o autor irrepetível e extraordinário que é porque soube expressar singularmente e de forma realista a dialética entre o conteúdo manifesto e o conteúdo primário da tragédia moderna, convergindo, à flor do socius, cultura e política imperialistas anglo-saxônicas em muitos atos e suas múltiplas cenas a um tempo edípicas e bélicas, e sempre trágicas.

Apresentado o cenário teórico de análise, chego ao objetivo deste ensaio: analisar três formas de cultura, a imperialista, com foco no unipolar ultraimperialismo estadunidense; a anti-imperialista, assentada na soberania nacional, necessariamente multipolar; e finalmente a cultura edípica, resultado de manipulação oligárquica e herdeira da formação do patriarcado ocidental, com seu axioma trágico vinculado à criação da propriedade privada, do Estado das relações privadas de produção; e da família monogâmica, efeito não menos neurótico-trágico da privatização patrilinear da sexualidade e da procriação da prole, argumento elaborado em diálogo com o livro As origens da família, da propriedade privada e do Estado (1884), de Friedrich Engels.

Culturas e modos de produção ocidentais

Não é, a cultura, um segmento separado da economia e da política, porque, desse modo, em convergência com Félix Guattari e Suely Rolnik de Micropolítica: cartografia do desejo (1986, 15), será necessariamente uma cultura reacionária, inclusive quando experienciada no interior de uma cultura erudita, popular ou de massa, porque, uma vez separada da totalidade do ser social, torna-se, necessariamente, impotente, facilmente manipulável pela cultura da classe que detém o poder material e, assim, espiritual. Também não se confunde com a sociedade civil, conceituada por Terry Eagleton de Ideia de cultura (2011) como aquilo pelo qual se vive, porque, de igual modo, está também subsumida, segmentada.

Há, sim, culturas (populares, eruditas, de massa, identitarista, de resistência, alternativas, emergentes) e todas elas estão em relação dialética com a cultura dominante de uma época, que é a cultura imanente às formações socioeconômicas situadas no espaço e no tempo; uma cultura da economia política e, assim, das tipologias das relações sociais de produção concretas, reais. A civilização greco-romana engendrou, em processo, uma cultura oligárquica que, com o passar do tempo, tornou-se aristocrática, efeito que não deixa de ser trágico do ócio propiciado pela expansão militarista e pela imposição de relações escravistas de produção.

A chamada cultura erudita em linhas gerais se constituiu como um sistema de prosódia (fala supostamente culta, entonação, ritmo) e gestos que amalgamaram, com o advento da escrita alfabética, o modelo mistificado da cultura letrada.

A formação socioeconômica do reino do capital é a base de um materialismo histórico-cultural da universalização do fetichismo da mercadoria, assim como da economia política da cultura das relações sociais de produção lastreadas nos valores de troca, cuja palavra de ordem, pelo fato mesmo de existir, hegemonicamente, é: ocultar, subsumir, inviabilizar a cultura dos valores de uso da classe trabalhadora e da natureza, essa tragédia das tragédias da civilização burguesa, afetando, com uma infinidade de ocorrências trágicas, toda a humanidade e os ecossistemas do planeta, uma vez que é sempre o trabalho alienado de sua produção social-econômica individual e coletiva que é invisibilizado, incluindo o trabalho da natureza – e trabalho é cultura natural-social.

Finalmente há a cultura da fase imperialista do capital e sobretudo do colonialismo, capitalismo e imperialismo anglo-saxões, dominantes há quatrocentos anos; o inglês, num primeiro momento; e o norte-americano a partir do século XX, principalmente após a 2GM. Essa cultura é inseparável da irracionalidade do capital monopólico e da oligarquia/aristocracia financeira. Seu traço distintivo, em termos de cultura imperialista, está relacionado com a subsunção que realiza das culturas oligárquicas ocidentais precedentes, sendo ao mesmo tempo metacapitalista, metacolonal e meta-greco-romana.

É, pois, uma cultura plástico-mercantil, fundamentalmente revisionista e artificiosa, valendo-se, para tal, tanto dos fluxos de dominação, como o racismo, o machismo, o nazismo, o fascismo, quanto dos fluxos relativos às lutas pela emancipação dos povos, dos fluxos antipatriarcais, antimachistas, da soberania corporal, da autonomia de gênero, porque, com Octavio Ianni de Imperialismo y cultura de la violencia en América Latina (1970), “o imperialismo se exerce por meio das mais variadas técnicas de violência” (IANNI, 1974, p. 96), por ser um “sistema que realiza os estágios mais avançados das estruturas de dominação e apropriação do capitalismo” (IANNI,1974, p.96).

Cultura/cultus do ultraimperialismo estadunidense

Segundo Alfredo Bosi em Dialética da colonização (1992, p. 11), a palavra cultura tem como origem etimológica o “verbo latino colo, cujo particípio passado é cultus e o particípio futuro é culturus”. O primeiro está relacionado ao passado e ao culto, também, dos mortos; o segundo, por sua vez, ao processo real do desenvolvimento da cultura, implicando, dialeticamente, passado, presente e futuro, sobretudo considerando cultura como práxis, como dimensão constituída e constituinte, tendo em vista aquilo pelo qual se luta, como assinalou Antonio Gramsci em Literatura e vida nacional (1950), com a finalidade de afirmar que a literatura nacional, se nova, em termos de culturus, necessita estar relacionada com a luta por uma cultura nacional e popular, implicada com a história do povo, seus desafios em termos de autossuficiência expressiva, inseparável da dimensão econômica e política, cotidianamente.

Precisamente no período de lutas pela independência dos países latino-americanos e se aproveitando dessa efervescência emancipadora, nas primeiras décadas do século XIX, como unidade da contradição, na América Latina há mais de duzentos anos esses desafios têm relação com a seguinte sentença de morte imposta pela Doutrina Monroe de 1823: “As Américas são dos norte-americanos!” Após a 2GM, Harry Truman globalizou-a, numa Grécia arrasada pela guerra, ao declarar “O mundo é dos EUA!” Esse é o cenário do complexo estratégico da dimensão cultural do contemporâneo, razão de ser do valor simbólico dos versos de Romanceiro da Inconfidência de Cecília Meireles “É a mão do Alferes, que de longe acena. Eloquência da simples despedida: Adeus! que trabalhar vou par todos!”

O arranjo institucional e convencional trágico inaugurado pela Doutrina Truman exige dos povos e países foco anti-imperialista, a fim de, como o Alferes Tiradentes de Cecília Meireles, posicionar-se na hora do dia, trabalhando para todos. A luta, pois, pela cultura da soberania nacional há de ser necessariamente anti-imperialista e especialmente antianque, até porque o capitalismo realmente existente, neoliberal, tem a imagem e semelhança do ultraimperialismo estadunidense.

Com isso gostaria de dizer que não se pode falar de capitalismo de forma abstrata, nem de burgueses e trabalhadores. Se o que define o capitalismo é a propriedade privada de meios de produção, para a confecção de bens e serviços fetichizados, com seu primus inter pares, o dinheiro, isso de forma alguma quer dizer que haja um único capitalismo possível. Há, pelo contrário, n possibilidades de culturas trágicas do capital, considerando os limites finitos da Terra no metabolismo com a natureza e a tradição oligárquica ocidental, da qual derivou o Monsieur capital.

O capitalismo que realmente existe, editado a partir da 2GM, é o do fóssil capital-dólar-m-dólar` (dólar, petróleo, dólar), com um pé na indústria cultural da mentira e da intriga sem fim; e o outro no seu complexo industrial-militar, tendo em vista o deslocamento da Revolução Técnico-Científica-Informacional (a Terceira), para a Quarta, relativa aos avanços científicos em torno da nanotecnologia e da engenharia genética, com a projeção compossível de constituição, de fato, do pós-humano, chipado, com cada qual com seu próprio código de barras.

Adjetivei “o capitalismo que realmente existe”, o estadunidense, com particípio passado do verbo editar, editado, no parágrafo precedente, porque queria que se tornasse o gancho para a retomada do diálogo perspectivado com Otelo de Shakespeare, principalmente considerando o alferes Iago, da peça, personagem em tudo distinta do alferes Tiradentes, de Cecília Meireles. Se este é o que diz “trabalhar vou para todos”, no poema heroico-épico da poeta carioca; aquele é o que confessa “não me move nem o dever/nem a amizade”, alertando ao fidalgo Rodrigo, seu interlocutor, “ficai certo:/ não sou o que sou”.

Herdeiro do imperialismo inglês, o ultra (estadunidense) pode ser definido como o Iago ao infinitésimo, completamente cínico, intrigueiro, artificioso, jamais sendo o que diz ser ou faz, usando o dever e a amizade como pretextos editáveis ao infinito porque efetivamente não cumpre acordos e tampouco tem amigos.

Puxando os fios da forma como Raymond Williams define a plasticidade real, em processo, de uma cultura efetivamente dominante, em diálogo com o seu ensaio “Base e superestrutura na teoria da cultura marxista”, a estadunidense atua “no processo social real do qual ela depende” (WILLIAMS, 2005, p. 53) e esse processo incorpora sem cessar os significados, os valores e as experiências de diferentes culturas, absorvendo-as, editando-as, reelaborando-as, como um filme em tempo real, da própria vida confabulada, semelhantemente ao início do IV Ato de Otelo, tendo em vista a passagem a seguir em que Iago incute ciúmes no mouro, Otelo, instigando-o a acreditar que Cássio, seu tenente, seria amante de Desdêmona, sua mulher: “Trabalha, meu veneno! Trabalha! Desse modo é que pegamos os idiotas crédulos. E é assim, também, que muitas damas dignas e castas, sem senão, ficam faladas” (SHAKESPEARE, s/d, p. 108-109).

A hegemonia norte-americana é inseparável da apropriação privada do modo de produção cultural da humanidade, via indústria cultural, articulando-a para que em seu interior, vivendo-a como cultura própria, o trabalho que se realiza na própria vida, porque cultura é a vida, é o trabalho de se envenenar, enredado em sua trama edípica, que nada mais é que tragédia (auto)orquestrada. Foi analisando a cultura como uma dimensão material da vida, a partir do materialismo histórico, que Williams, destituindo a relação mecanicista entre “estrutura determinante e superestrutura determinada”, definiu a cultura como a base porque, para o crítico, “A base é a existência real do homem” (WILLIAMS, 2005, p.47); e o homem é a sua cultura.

Reside nesse aspecto o complexo estratégico do modo de produção cultural do ultraimperialismo estadunidense, ávido e plástico, como Iago, para incorporar as mais diferentes formas de cultura, transformando-as em matéria-prima das novas mercadorias e artefatos culturais laboriosamente configurados, como Cavalos de Troia, para instigar, pelo desejo, as pessoas, seus gêneros, suas etnias, suas religiões, valores, perspectivas, classe, ancestralidades; os povos, a se trabalharem, na dimensão concreta da existência, envenenados por suas intrigas e fake news.

O autor de Tragédia moderna conceituou e analisou dialeticamente, além dos aspectos plásticos da cultura dominante, outras duas formas de cultura: a residual e a emergente. Esta foi por ele descrita como marcada por novos significados, valores, novas práticas; definindo aquela da seguinte maneira: “Por residual quero dizer algumas experiências, significados e valores que não podem ser expressos nos termos da cultura dominante, são, todavia, vividos e praticados como resíduos – tanto culturais quanto sociais- de formações sociais anteriores” (WILLIAMS, 2005, p. 56).

Argumento, a propósito, que a chamada cultura de massa deva ser definida como um mosaico nacional-global de culturas residuais e emergentes incorporadas pela indústria cultural estadunidense, transformando-as em cultus de valores de troca que (trabalha, meu veneno) simulam valores de uso ou comunitários, como é o exemplo do neopentecostalismo na atualidade; e culturus, considerando as segundas, as emergentes, igualmente capturadas pelas relações fetichizadas (trabalha, aqui, também, meu veneno), de tudo que seja legítimo desejo de autonomia corporal, emancipação, cuidado, como é o caso hoje da cultura woke.

De qualquer forma, a cultura dominante do ultraimperialismo ianque é de fato a cultura do conteúdo primário que, como Iago, procura transformar as residuais e emergentes em culturas edípicas ou do conteúdo manifesto (trabalha, meu veneno).

A cultura dominante de EUA conseguiu o seu apogeu durante a Terceira Revolução Industrial, combatendo lado a lado as culturas revolucionárias do eixo socialista, com a vanguarda da URSS e de China. Uma cultura revolucionária é mais que uma cultura emergente, sobretudo se marcada por êxitos históricos, como são o caso da Revolução de Outubro de 1917 e a do Império Celeste de 1949.

Prova-se, por meio dela, outra forma de veneno; o veneno da cultura do conteúdo primário como aquilo pelo qual se luta a partir da racionalidade do trabalho coletivo, em clave descolonizadora, vencendo o jugo dos opressores de seu presente histórico e de todo o passado, embora a vida seja o agora, rumo ao depois; e o eterno retorno da cultura edípica é a única coisa que se repete, com trejeitos estilizados de antiguíssimas novidades.

Do período da Segunda Revolução Industrial, de domínio britânico, para a emergência da Terceira, o mundo se agitou com o surgimento da fase imperialista do capital, o advento da 1GM, como a um tempo conteúdo primário (no lado dos anglo-saxônicos) e dos soviéticos; e conteúdo manifesto no lado dos impérios austro-húngaro, germânico e otomano.

O que se seguiu após foi a intriga britânico-estadunidense (estilo Iago, trabalha, meu veneno) em torno da cultura colonial dos perdedores, berço manipulado do fascismo, do nazismo e do franquismo, levando à 2GM contra sobretudo a cultura revolucionária de URSS que, tendo vencido não sem imensos custos humanos e materiais, teve ato continuo que enfrentar a Primeira Guerra Fria estadunidense, baseada totalmente na incorporada cultura emergente da juventude rebelde, anarquista, supostamente emancipada do peso da tradição e do mundo adulto.

Nesse contexto, os soviéticos não suportaram a pressão. Foram finalmente derrotados pelo golpe de Estado de 1991, com a traição de Gorbachev, motivada pela sedução propagandística da cultura do american way of life. Por outro lado, China também teve que ceder, afastando-se dos soviéticos e se aproximando de EUA – período de hibernação do urso Panda– a partir da década de 70.

A história nem sempre se repete, entretanto, como farsa da tragédia corriqueira, quando a revolução emerge das crises ocasionadas com a emergência de novas forças produtivas. China e Rússia (ex-URSS) recuperam o terreno perdido pela derrota no contexto da Primeira Guerra Fria, disputando o alvorecer da Quarta Revolução Industrial, com a vanguarda militar de Moscou e econômico-tecnológica de Pequim.

A cultura multipolar se tornou emergente e disputa o porvir a partir da luta pela soberania nacional plena, com base no processo de substituição de importações e no intercâmbio entre países do Sul Global, com o destaque para o Brics +, para a Organização de Cooperação de Shangai e para a União Econômica Euroasiática.

A cultura emergente da Quarta Revolução Industrial está, obviamente, em disputa. O lado ocidental-unipolar, liderado por EUA, está em desvantagem econômico-militar. Entretanto, não se pode subestimar o Iago-ianque, que alcançou a hegemonia global a partir da 2GM por meio do domínio do meio de produção cultural e, assim, da captura das culturas residuais, emergentes e até revolucionárias dos povos, reeditando-as de modo contrarrevolucionário e integralmente revisionista.

Nesse contexto, ainda detém duas vantagens acumuladas no interior do materialismo histórico da Terceira Revolução Industrial, sobretudo considerando a sua especialidade, a saber: editar e reeditar, ao sabor dos ventos da história, estilos de vida dominantemente, hoje, reacionários, como aqueles que dizem respeito ao retorno remasterizado do neofascismo e do neonazismo, no lado da cultura residual da década de 30 do passado século; e do lado da incorporação da cultura emergente, chamada de woke, reelaborando-as ( trabalha, meu veneno) e contraponteando-as em tempo real, por meio do domínio de plataformas de fake news do Vale do Silício, sobretudo considerando a GAFA, acrônimo de Google, Amazon, Facebook, Appel, com a vanguarda da colonização do espaço protagonizada pela SpaceX, de Musk, com seis mil satélites em órbita e outros seis mil a caminho, seguido mais atrás pelo dono da Amazon, Jeff Bezos, conforme analisou Silva Ribeiro no excelente artigo Los terrícolas llegaron ya.

A segunda vantagem está diretamente relacionada com a primeira: a colonização material da cultura, essa dimensão concreta da vida, seu desejo, no âmbito mesmo dos seres, remanejando-os na interface entre o mundo físico, digital e biológico, sempre confabulando contra os povos, contra a vida, no estilo guerra de espectro completo, que inclui também o avanço sem precedentes da guerra biológica, como tem evidenciado o Ministério de Defesa Russo a respeito das mais sinistras e diversificadas experiências científicas no plano da bioguerra, eixo a partir do qual se pretende descartar a classe trabalhadora mundial, substituindo-a pela robótica, a inteligência artificial e pela conexão in/out dos humanos à Internet das coisas, para não dizer internet planetária, uma espécie de geointernt da virtualização e digitalização de espectro completo, online; em nuvem atômica.

Cultura revolucionária do Sul Global versus cultus à morte

O Sul Global necessita, a propósito, ser mais efetivamente propositivo no âmbito da batalha cultural no interior da IV Revolução industrial. O complexo estratégico da dimensão cultural dos povos deve entrar em ação de modo não apenas defensivo, como tem sido o caso da Rússia hoje, com a valorização de sua cultura residual anterior ao período soviético, mas principalmente emergente e mesmo revolucionária. É preciso sempre estar na hora do dia, como à sua época esteve Mao Tsé-Tung liderando a ousada Revolução Cultural chinesa de 1966-1976, em tudo incomparável com a virada cultural de Maio de 68 francês-europeu, que, na verdade, não passou de uma revolução colorida contra França do general Charles de Gaulle, que acumulava estoques de ouro com objetivo de abandonar a ditadura do sistema dólar-ouro de Bretton Woods.

Uma revolução cultural do Sul-Global é, assim, absolutamente necessária. Deve ter como objetivo a descolonização do Ocidente, sobretudo do sistema edípico (trabalha, meu veneno) da dominação cultural estadunidense, que produziu uma esquerda pequeno-burguesa, de dedo em riste, antimarxista e pró-imperialista; uma cultura de massa trágica, que banaliza e infantiliza os povos; um sistema de ensino sem chão nacional, assim como uma estrutura universitária dependente e de costas para os desafios inadiáveis de seus verdadeiros financiadores, os povos, replicando teorias demagógicas e divisionistas; sem contar a disseminação de fundamentalismos religiosos que têm intoxicado parte significativa da humanidade, tornando-a adepta de obscurantismos pré-modernos, paradoxalmente conectados à GAFA, disparando psicopatias bíblicas sionistas e retornos a terras prometidas, fora da história e, desse modo, arcádicas e vulneráveis aos caprichos do soberano da vez, como bem descreveu Cecília Meireles no poema intitulado “Romance XX ou Do país da Arcádia: “O país da Arcádia/jaz dentro de um leque:/existe ou se acaba/conforme o decrete/a Dona que o entreabra/ a Sorte que o feche” (MEIRELES,1979,63).

É preciso, assim, para uma efetiva luta por uma cultura revolucionária nacional-multipolar, abandonar “o país da Arcádia”, que, em termos deste ensaio, é o país do conteúdo manifesto elaborado pela cultura dominante do ultraimperialismo estadunidense, dividindo-se, para melhor nos dividir, em cultura woke pseudoemergente e cultura neofascista. Essas duas culturas são opostos que se atraem; um arranjo de valores, instituições e significados absolutamente trágicos por dois motivos inseparáveis: (i) são duas culturas (trabalha, meu veneno) edípicas que se alimentam e retroalimentam fomentando o ódio entre seus tramados militantes; (ii) servem, quanto mais se agitam e trabalham ( com o veneno do Iago ianque) para combater, em tempo real, a luta por uma cultura popular nacional-multipolar, sem a qual a imagem do leque dos versos citados de Romanceiro da inconfidência, em que o “país da Arcádia” jaz, será o jazigo ou fossa comum de uma cultura, a do ultraimperialismo, que não mais consegue ser emergente, culturus, por ter se tornado cultus à morte da humanidade.

E essa cultura nacional-multipolar revolucionária, como cultura emergente, como culturus, não pode abandonar o cultus à épica de um Cunhambebe, um Zumbi dos Palmares, uma Dandara, um Chico-Rei, uma Chica da Silva, um Tiradentes, um Francisco Julião, um Frei Tito, uma Bete Mendes, um Chico Mendes e tantas outras e outros cujos adeuses devem estremecer os desafios da alma de nosso presente nacional-multipolar, a caminho do socialismo dos povos.

*Luis Eustáquio Soares é professor titular do Departamento de Letras da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Referências


BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1994

EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. Tradução Sandra Castello Branco. São Paulo: Unesp, 2005

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Leandro Konder. Rio de Janeiro: 1984.

FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Trad. Lígia Fonseca Ferreira e Regina Salgado Campos. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografia do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986

IANNI, Octavio. Imperialismo y cultura de la violencia en América Latina.Trad. Claudia Coombani y José Thiago Cintra. Ciudad de México: Xiglo XXI, 1974.

LENIN, Vladimir Ilytch. Imperialismo, etapa superior do capitalismo. São Paulo: Global, 1979.

MEIRELES, Cecília. Romanceiro da inconfidência. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 1979.

SAID, EDWARD. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottmann. São Paulo. Companhia das Letras, 1993.]

SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Trad. Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2016.

FREUD, Sigmund. Revisão da teoria dos sonhos. In: FREUD, Sigmund. Novas conferências introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos (1932-1936). Tradução Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 17-38. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 22)

SHKESPEARE, William. Otelo. Trad. Carlos Alberto Nunes. Obras Completas. V. XIV. São Paulo: Melhoramentos, 1958

SHAKESPEARE, William. Hamlet: Prince of Denmark. The Folger Shakespeare. Ed. Barbara Mowat, Paul Wrstine, Michael Poston and Rebecca Niles. Folger Shakespeare [ 3 junho]. https://folger-main-site assets.s3.amazonaws.com/uploads/2022/11/hamlet_PDF_FolgerShakespeare.pdf

WILLIAMS, Raymond. Cultura e materialismo. Trad. André Glaser. São Paulo: Unesp, 2011.

WILLIAMS, Raymond. Tragédia Moderna. Tradução: Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002


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