A democracia militante

Dora Longo Bahia. Democracia (projeto para a Avenida Paulista II), 2020 Acrílica, caneta à base de água e aquarela sobre papel 29.7 x 21 cm
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Por PAULO SÉRGIO PINHEIRO*

Após quatro anos de pregação e práticas neofascistas, a sociedade e o Estado terão de definir de que forma a militância poderá ser exercida na defesa da democracia

Uma das mais precisas análises do efetivo funcionamento do regime do Estado Novo no Brasil está em Brazil under Vargas (Russell and Russell, 1942), obra do filósofo e cientista político alemão Karl Loewenstein (1891-1973). É na conclusão desse livro – aliás, dedicado a Thomas Mann e lamentavelmente até hoje não traduzido para o português – que é proposto um conceito inovador, na época, para caracterizar aquela ditadura: “Reduzido aos mais simples termos de análise, o regime de [Getúlio] Vargas não é democrático, nem uma democracia “disciplinada”; não se trata de totalitário nem de fascista; é uma ditadura autoritária, para a qual a teoria constitucional francesa criou o termo régime personnel”. Mais tarde, em 1975, na Conferência Internacional sobre História e Ciências Sociais, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o cientista político Juan Linz, de Yale University, retoma o conceito de autoritarismo para caracterizar o regime da ditadura militar de 1964.

Mas Karl Loewenstein, além de produzir uma influente obra em direito constitucional, em 1937, quando o nazismo estava longe de estar consolidado, criou o termo de “democracia militante”. Em dois seminais artigos, “Militant Democracy and Fundamental Rights” (Democracia Militante e Direitos Fundamentais) I e II, examina de que modo a democracia constitucional é capaz de proteger as liberdades civis e políticas, por meio de limitações das instituições democráticas, para conter o fascismo de então. Para Karl Loewenstein, “a democracia e a tolerância democrática estariam sendo usadas para sua própria destruição. Sob a cobertura dos direitos fundamentais e do Estado de direito, a máquina antidemocrática pode vir a ser construída e posta em marcha legalmente”.

Ele lamenta “o exagerado formalismo do estado de direito que, sob o encantamento da igualdade formal, não julga adequado excluir do jogo os partidos que renegam a existência de suas regras”. Alerta igualmente que a desobediência perante as autoridades constitucionais naturalmente tende a transbordar para a violência, a violência se tornando nova fonte de “emocionalismo disciplinado”, no qual se fundam os regimes fascistas. E cita um exemplo relevante de como uma democracia pereceu, justamente por não ter essa proteção militante: “Na República de Weimar [na Alemanha de 1919 a 1933], a falta de militância contra os movimentos subversivos, mesmo tendo sido claramente reconhecidos como tal, foi ressaltada tanto como um dilema da democracia no pós-guerra, quanto como ilustração e advertência”.

 

O momento presente no Brasil

Por que as reflexões de Karl Loewenstein são relevantes para o momento presente no Brasil? Ao contrário do que se alardeou, as instituições do Estado brasileiro não funcionaram diante da escalada de extrema direita com conteúdo neofascista, liderada pelo presidente da República. Essa desconstrução do Estado de direito contou com a cumplicidade das Forças Armadas e com a inércia, tanto da Procuradoria Geral da República, para processar os crimes de responsabilidade do presidente, quanto do Congresso Nacional, especialmente da Câmara de Deputados, que ignorou mais de uma centena de pedidos de impeachment.

A situação somente não está pior porque as eleições presidenciais derrotaram o líder da extrema direita, graças à anulação, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), dos processos crimes contra o então ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e à sua soltura da iníqua prisão, reavendo seu direito de se candidatar – decisão que foi corroborada, em 2022, pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, que reconheceu a violação de direitos do ex-presidente pelo Estado brasileiro, por negar-lhe acesso a um processo justo e à presunção de inocência.

Porém, o ex post da eleição nos deixa um inusitado cenário de veículos em chamas interditando estradas e milhares de cidadãos orando por intervenção militar nas portas dos quartéis. A autoridade que mais atuou na proteção do Estado de direito e em resistência a esse movimento golpista foi o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com firmeza, ele rebateu os ataques da extrema direita antes, durante e depois das eleições; defendeu as urnas eletrônicas, enfrentou corajosamente a litigância golpista, articulou a atuação das Polícias Militares e da Polícia Rodoviária Federal contra os bloqueios de vias, aplicando multas e congelando ativos de financiadores das badernas.

No dia 12 de dezembro, com a diplomação do presidente eleito, o presidente do TSE não tenderá a atuar de modo tão incisivo quanto atuou durante o último trimestre de 2022. Além dos bloqueios, como lembrou Camila Rocha (Folha de São Paulo, em 3.12.2022), há registros de vandalismo, saques, incêndios, sequestros, a maioria desses casos nos estados de Mato Grosso, Rondônia e Santa Catarina, organizados e financiados por empresários ricos que atentaram contra a democracia, acobertados por generalizada impunidade por parte das autoridades estaduais.

Após a eleição de Luís Inácio Lula da Silva como presidente da República, crimes contra a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (4.5.2021) se sucederam e continuam. Assim, a sociedade e o Estado terão de definir, portanto, de que forma a militância poderá ser exercida, na defesa da democracia, depois da nova era que começará em 1º de janeiro de 2023.

Após quatro anos de pregação e práticas neofascistas, é urgente refletir: o que fazer para que, gradualmente, os brasileiros que caíram nessa esparrela da “intervenção militar” e acreditaram nas bravatas do bolsonarismo possam tornar-se cidadãos republicanos de novo?

*Paulo Sérgio Pinheiro é professor aposentado de ciência política na USP; ex-ministro dos Direitos Humanos; relator especial da ONU para a Síria e membro da Comissão Arns. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras).

 

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