Por FRANCISCO FERNANDES LADEIRA*
A cobertura da eleição na Rússia por parte dos grupos de comunicação no Brasil se caracteriza por abrir mão em fazer jornalismo e apenas replicar os interesses das grandes potências ocidentais
Desde o Repórter Esso, transmitido pela primeira vez no início dos anos 1940, os noticiários internacionais dos maiores grupos de comunicação do Brasil se caracterizam, essencialmente, por replicar os interesses das grandes potências imperialistas, sobretudo dos Estados Unidos.
Assim, ao longo das décadas, temos assistido/lido/ouvido e acessado editoriais, matérias e artigos de opinião que, sem exceção, representam positivamente Washington e aliados. Em contrapartida, qualquer ator geopolítico que contrarie minimamente os ditames imperialistas será sumariamente caluniado ou, não raro, alvo de fake news. Não há espaço para o contraditório. Trata-se da prática jornalística conhecida como double standard. Em bom português: dois pesos, duas medidas.
Este exemplo de (mau) jornalismo pôde ser constatado na repercussão midiática da eleição presidencial russa, finalizada neste domingo (17 de março), com o atual mandatário do país, Vladimir Putin, eleito para seu quinto mandato, com ampla maioria dos votos.
Independentemente das contradições de Vladimir Putin, que está muito distante de ser um político progressista, é preciso entender sua representação midiática não a partir de sua personalidade controversa, mas de sua posição no xadrez geopolítico global.
Com Vladimir Putin no poder, a Rússia alcançou o posto de potência global, capaz de fazer frente ao domínio do (decadente) Ocidente, haja vista, por exemplo, a incapacidade apresentada pelas potências imperialistas para armar o exército ucraniano na guerra por procuração contra Moscou. Não por acaso, em sua primeira aparição pública após vencer a eleição, Vladimir Putin agradeceu aos eleitores e disse que seu país não será “intimidado” nem “suprimido”.
Portanto, usando um termo que está na moda entre o jornalismo conservador, podemos dizer que o presidente russo é persona non grata nos noticiários internacionais.
De acordo com os grandes veículos de imprensa, a avassaladora vitória de Putin (quase 90% dos votos) ocorreu porque todos os concorrentes na eleição presidencial eram aliados do Kremlin e, por outro lado, os potenciais concorrentes da oposição estão presos, mortos ou foram impedidos de se candidatar.
No entanto, essa mesma mídia, “fiscal de democracia na Rússia”, no melhor estilo double standard, participou ativamente da farsa que levou Lula à prisão, para que o petista não fosse candidato (e possivelmente eleito) para a presidência da República em 2018. O resultado, como tragicamente sabemos, foram quatro anos de desgoverno de Jair Bolsonaro.
Já os potencias adversários de Vladimir Putin, mencionados nos GloboNews Internacional da vida, só são populares nos noticiários da imprensa ocidental. Na realidade concreta, não possuem a mínima capacidade de mobilização das massas.
Também foi bastante destacado nos noticiários que Vladimir Putin, caso cumpra todo o seu novo mandato, será “o líder da Rússia mais longevo desde Stalin”, com três décadas no poder. Desse modo, no jornalismo de adjetivação da imprensa, ele é rotulado como “autocrata”.
Por outro lado, nos discursos da mídia hegemônica, Angela Merkel, Chanceler da Alemanha entre 2005 e 2021, sempre foi representada positivamente, seja como “grande democrata”, “líder prática” ou “conciliadora”; jamais foi chamada de “ditadora”.
Além do mais, desde 1852, todos os presidentes da midiaticamente intitulada “maior democracia do planeta”, os Estados Unidos da América, são de apenas dois partidos, praticamente com os mesmos ideais, em defesa dos interesses orgânicos do grande capital. Ou seja, “alternância de poder” passou longe. Porém, nunca vamos ouvir/ler/assistir nos noticiários internacionais alguma menção à “ditadura americana”.
Por falar nisso, a mesma imprensa que denuncia a perseguição do “regime do Kremlin” a opositores e vozes críticas, se cala quando o assunto é a perseguição do governo estadunidense a Edward Snowden e Julian Assange, entre outros indivíduos que expuseram ao mundo alguns dos podres de Washington. Sobre essa questão, em 2013, articulistas do programa Manhattan Connection, então na GloboNews, chegaram a afirmar que a presidenta Dilma Rousseff estaria “fazendo um alarde desnecessário” ao criticar a prática de espionagem de suas conversas feita pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos. Haja viralatismo!
Como não poderia deixar de ser, alguns articulistas levantaram a clássica acusação de fraude na eleição presidencial russa. Nesse sentido, lembrando Arnaldo Cezar Coelho, nos manuais de redação da grande imprensa, a regra é clara: eleito um candidato favorável ao imperialismo, pleito democrático; vencedor um de nossos adversários; processo eleitoral fraudulento.
Evidentemente, o simples fato de se opor a dominação imperialista não significa que devemos negligenciar as idiossincrasias de Vladimir Putin, a influência ideológica em seu governo de figuras como Alexandr Dugin ou apresentar a Rússia como a nova União Soviética. Se agíssemos assim, estaríamos apenas invertendo o maniqueísmo midiático. Algumas das críticas feitas à Rússia nos discursos geopolíticos da mídia seriam até interessantes, se a mesma régua fosse aplicada a Estados Unidos e companhia. Como sabemos, não é o caso.
Enfim, não há muito o que se esperar de veículos de comunicação que apoiam genocídios, flertam com o fascismo quando necessário e, em nome da subserviência ao imperialismo, contribuem para sabotar o desenvolvimento de seu próprio país.
*Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em geografia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de A ideologia dos noticiários internacionais (CRV). [https://amzn.to/49F468W]
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