Por DANIEL BRAZIL*
Um filme que pode ganhar dimensões ciclópicas (e profiláticas), se for suficientemente divulgado
Não é raro ler ou ouvir, em diversas mídias, a expressão “ovo da serpente”, com o sentido de algo maligno que está sendo gestado ou chocado. Pode ser uma referência ao passado recente da Ucrânia, pode ser ao presente do Brasil. O sentido está inexoravelmente ligado ao surgimento do nazismo, por causa de um filme de Ingmar Bergman, lançado em 1977: O ovo da serpente.
Os amantes do teatro sabem que a expressão foi não foi criada pelo genial cineasta sueco, mas extraída de uma fala shakespeariana, da peça Julio César. Quem a enuncia é Brutus, o contraponto ético e político de César, que acaba por apunhalá-lo. “Pense nele como um ovo de serpente que eclodiria; como sua espécie se tornaria perniciosa, deve ser morto na casca”.
O drama elisabetano promove um conflito entre dois antagonistas que no fundo muito se assemelham. Secundados por personagens igualmente marcantes (Marco Antonio, Cassio, Pórcia, Calpúnia), a peça desvenda aos poucos a complexidade moral dos personagens, que tentam equilibrar suas ações com qualidades (idealismo, força, nobreza, ascendência sobre os pares) e defeitos (fraquezas, indecisões, covardia e dilemas éticos).
Bergman, grande entusiasta do teatro, aproveitou a deixa de Shakespeare para criar o seu filme mais explicitamente político. Produzido por Dino de Laurentis, numa coprodução alemã e estadunidense, a ação se situa em Berlim, novembro de 1923. Devastada pela Primeira Guerra, com uma hiperinflação corroendo a economia, desemprego crescente e uma crise política incontornável, a república de Weimar agoniza.
O filme acompanha alguns dias da vida de um artista circense judeu norte-americano, Abel (vivido por David Carradine), após encontrar o irmão Max morto no quarto da pensão onde moram. A revelação do suicídio, logo no início do filme, é uma aula de concisão dramática, um plano-sequência onde Abel sai de uma comemoração festiva, sobe uma escada e se depara como irmão morto na cama com um tiro na boca.
Abel vai procurar a ex-mulher do irmão, Manuela (a musa bergmaniana Liv Ulmann), que trabalha num bordel. Pouco depois arruma um emprego numa clínica, onde estão sendo feitas experiências com pacientes. O pano de fundo de toda a trama é o clima desesperado onde está sendo chocada a serpente nazista.
Não podemos classificar o filme de Bergman como uma metáfora, mas como um relato histórico com a intenção, talvez didática, de iluminar a maior tragédia europeia do século XX. Os cinéfilos bergmanianos, acostumados aos silêncios existenciais e introspectivos, recheados de citações subliminares dos clássicos gregos e (talvez) nórdicos, não gostaram do enredo. Criticaram o ator americano, a produção roliudiana, a trama ostensivamente política.
É a Guernica de Bergman. Também alguns críticos de arte torceram o nariz para a denúncia da guerra explicitada no mural de Pablo Picasso. Não era inovadora, em relação à obra anterior do artista, abdicava das cores exuberantes das obras fundadoras do Cubismo, primas-irmãs do Fauvismo, utilizava apenas tons de bege, cinza, branco e preto, para acentuar a dramaticidade pictórica. Mas quem se importa com críticos de arte, quando o futuro da humanidade está em risco? O artista malaguenho configurou, de maneira urgente e simbólica, todo o horror da guerra que dilacerava sua Espanha natal.
Muito já se escreveu sobre a Guernica de Picasso. Encontraram em sua superfície signos, símbolos, metáforas, metonímias, arquétipos e mitos. Bem menos papel foi gasto com a obra bergmaniana, o que é compreensível. Afinal, o cineasta realizou seu filme-denúncia do nazismo num espaço e tempo onde vários o antecederam. Não foi premonitório, nem absolutamente original, assim como Picasso também não fora. Os horrores da guerra já haviam encontrado seu grande tradutor espanhol em Goya, dois séculos antes.
No entanto, as lendas em torno da Guernica rodaram o mundo, e o impacto da obra se mostrou avassalador. A mais célebre das histórias conta que Picasso, em Paris, foi visitado por oficiais alemães, durante a guerra. Ao ver uma foto da Guernica, um oficial perguntou: “Foi você que fez?” Picasso teria respondido: “Não, foram vocês”.
Bergman não precisou se defrontar com oficiais nazistas, pelo que sabemos. Mas ao realizar o filme mais excêntrico de sua consagrada dramaturgia causou certo escândalo entre seus fãs, fez os puristas torcerem o nariz, e conquistou a admiração de uma legião de antifascistas em todo o mundo.
Lançado há 45 anos, O ovo da serpente é um filme para ser revisto, com urgência. Não apenas revisto, mas divulgado, debatido, principalmente entre os mais jovens. A assustadora semelhança com o que se passa hoje no Brasil, em diversos níveis, é didática. A formação de milícias, a perseguição aos artistas, o elogio da tortura e da ditadura militar, o desemprego, a inflação crescente, a miséria humilhante, o preconceito religioso ou racial exacerbado, tudo parece se repetir.
Se na Alemanha perseguiam judeus, aqui na república evangélica-miliciana são perseguidos os negros e as religiões de matriz africana. As motivações podem não ser as mesmas, mas os desastrosos efeitos se equivalem. Os sindicalistas são perseguidos pelo mesmo motivo, lá e cá. A esquerda, idem. A vocação autoritária, belicista e destrutiva nunca foi tão evidente como na recente declaração de um Secretário de Fomento à Cultura anunciando o patrocínio de projetos, com recursos da Lei Rouanet, para incentivar o uso de armas pelo cidadão comum.
Mesmo que seja bravata, é sintomático e preocupante que a Taurus, maior fabricante de armas de fogo do país, tenha investido no projeto “civilizatório” (pasme, é o adjetivo utilizado pelo governo!). Estamos ou não vendo o ovo da serpente sendo chocado?
Precisamos recuperar a Guernica de Bergman. Um filme que pode ganhar dimensões ciclópicas (e profiláticas), se for suficientemente divulgado. Deve ser exibido em escolas, clubes, associações, sindicatos e igrejas. Indicado para os filhos, sobrinhos, netos, vizinhos e amigos. Juntamente com A onda ( Dennis Gansel, 2008) e A fita branca (Michael Haneke, 2010), é obra de denúncia do nazi-fascismo que, relativizando a opinião de cinéfilos e historiadores de arte, pode ser muito mais importante, em termos humanísticos, do que Morangos Silvestres, assim como a Guernica o é em relação às Demoiselles d’Avignon.
*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.