A Volkswagen e o terrorismo de Estado

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Por ANTÔNIO PINHEIRO SALLES*

A Volkswagen teve uma inequívoca participação nas articulações do golpe de 1964

As trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros estão com os olhos voltados para a empresa alemã Volkswagen. É que ela teve uma inequívoca participação nas articulações do golpe de 1964, desde que, como proeminente associada, manteve estreitas ligações políticas e econômicas com o Ipes (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e o Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática). Ambas as organizações subordinadas à CIA (Central Intelligence Agency). Consequentemente, a empresa muito contribuiu na deposição do presidente João Goulart (1962-1964). Além disso, recorrendo à experiência adquirida junto ao nazismo, na Alemanha, sua montadora no ABC paulista foi transformada em algo semelhante a um campo de concentração.

Os operários passaram a conhecer métodos de opressão e perseguição como os ditados, anos atrás, por Adolf Hitler. Eram observados, vigiados, espionados, seguidos, num permanente clima de insegurança e apreensão. Alguns funcionários, cumprindo ordens superiores, passaram a exercer o espúrio papel de informantes, delatores, arapongas, alcaguetes, dedos-duros. Assim, as prisões se sucediam. Trabalhadores eram conduzidos para os porões da ditadura, torturados, assassinados ou processados, condenados, fichados, demitidos, impossibilitados de conseguir novo emprego. Pior ainda: a Volkswagen estava na linha de frente das empresas que, em parceria com a ditadura militar, viabilizaram a instalação e manutenção dos aparelhos repressivos do Estado, priorizando o Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e o DOI-Codi, Oban (Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, Operação Bandeirantes).

No momento em que atravessamos os turvos tempos do bolsonarismo, com a agravante da Covid-19, adquire relevância internacional a construção de um memorial que resgate e preserve a história das lutas dos trabalhadores contra os malefícios que infelicitaram a nação brasileira. O projeto tem integral apoio das centrais sindicais, de movimentos sociais e personalidades comprometidas com a democracia e a defesa dos direitos humanos. Todos compreendem que recuperar a memória significa sustentar a resistência, reconquistar a esperança. Jamais se poderia permitir a repetição de tragédias superadas com o sangue de mulheres e homens que recusaram a convivência com o arbítrio e a violência institucionalizada.

A Volkswagen foi investigada pelo GT Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e o Movimento Sindical (GT-13), da Comissão Nacional da Verdade (CNV), por Comitês e outras Comissões da Verdade de São Paulo, sendo a empresa responsabilizada pela sua atuação ao lado do governo militar. Ao final do funcionamento da CNV, em 2014, divulgou-se um documento com uma série de recomendações, considerando o resultado das provas levantadas contra “empresários, bem como empresas privadas e estatais”. O GT recomendou, inclusive, “o resgate da memória de luta dos/as trabalhadores/as que garanta a reparação histórica, somando-se à reparação econômica, sob responsabilidade do Estado e das empresas envolvidas com a repressão”.

Em setembro de 2015, o Fórum de Trabalhadores por Verdade, Memória, Justiça e Reparação, várias instituições, entidades e personalidades apresentaram, contra a Volkswagen, uma denúncia ao Ministério Público Federal, em São Paulo. Desde essa ocasião, quando houve o protocolo da representação e abertura do inquérito, vem sendo reivindicada a construção de um Centro de Memória das Lutas dos Trabalhadores e da Participação Empresarial no Terrorismo de Estado. Logo, ainda no mês de setembro, a empresa informou à imprensa que estudava, “entre outras iniciativas, fazer um memorial” (Estadão, 1º de novembro de 2015). Em 2017, efetivamente, deu-se início a um processo de negociações. Só que hoje, quando o Brasil suporta um governo que defende torturadores e ditaduras, a Volkswagen recua e procura a justificativa da Covid-19 para suspender as negociações em andamento.

Lembre-se que a empresa, durante o nazismo na Alemanha (1933-1945), escravizou judeus e outros operários na fabricação de veículos para o exército de Hitler. Terminou assumindo sua responsabilidade, mas em 1998. Por exigência judicial, criou um fundo milionário para indenizar suas vítimas. Aqui, entretanto, alega que, com a pandemia da Covid-19, somou um prejuízo de 1,4 bilhão de euros, ficando sem condições de tratar da questão. Não informa, porém, que faturou 17 bilhões de euros no ano passado (hoje, 112 bilhões e 71 milhões de reais). São pertinentes, por conseguinte, as seguintes perguntas: 1) O que representa para a Volkswagen meia centena de indenizações de operários brasileiros? 2) A criação de um lugar de memória, um memorial, quebraria a Volkswagen? 3) Para financiar o golpe ditatorial de 1964, a instalação e manutenção de centros de terror no Brasil, teria faltado dinheiro? 4) Quanto a empresa lucrou, e aumentou seu patrimônio, levando apoio à ditadura militar?

Que a Volkswagen reveja sua decisão e, sem demora, dê continuidade às negociações. Que isso seja feito com expresso desejo de atendimento às justas, legítimas, humanas e democráticas reivindicações de mulheres e homens sofridos, mas honrados, que nunca perderam a disposição para enfrentamento dos desafios. O nazismo foi derrotado (para que não seja esquecido e repetido, uma parcela dos seus crimes contra a humanidade está registrada no Museu Topografia do Terror, em Berlim). Trump tem seus dias contados nos dedos da mão direita. No Brasil, a ditadura militar não perdurou como seus artífices equivocadamente vaticinaram. Os nebulosos tempos atuais não impedem ninguém de enxergar as luzes acesas no horizonte. Nenhuma empresa conseguiria deter a inexorável marcha da história.

Mais que a solução do caso em pauta, sem meias palavras, protelações e dificuldades, um pedido de desculpas deve ser formalizado à classe trabalhadora e ao povo brasileiro. Sabe-se que abalada se encontra a credibilidade da empresa, até já experimentando a necessidade de contornar uma ameaça de boicote no mercado norte-americano. Certamente não lhe seria producente o agravamento de crises, com o advento de problemas maiores. Reconhecendo o significado dos altos lucros que lhe são assegurados a cada ano, com ajuda da barata força de trabalho, a Volkswagen não negligenciaria na pretensão de continuar vendendo seus carros em nosso país. Não existe dúvida: se os sobreviventes das masmorras estão morrendo, multiplica-se o número de pessoas aglutinadas em torno dos seus direitos e objetivos.

Não serão perdoados os horrores impostos às vítimas diretas e aos seus familiares, principalmente com a participação da Volkswagen do Brasil. Ditadura nunca mais!

*Antônio Pinheiro Salles é jornalista. Autor do livroNinguém Pode se Calar – Depoimento na Comissão Nacional da Verdade.

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