Por EDU TERUKI OTSUKA & IVONE DARÉ RABELLO*
Considerações sobre o filme de Christian Petzold
Afire, de Christian Petzold, põe em cena uma reunião involuntária entre quatro jovens e os conflitos daí decorrentes. O escritor Leon (Thomas Shubert) acompanha Felix (Langston Uibel) à casa de veraneio da família do amigo para que ambos possam desenvolver ali seus compromissos, longe da agitação de Berlim. Leon precisa acabar seu segundo romance; Felix prepara um portfólio fotográfico para candidatar-se a uma Escola de Arte.
Logo nas primeiras cenas, enquanto o fotógrafo percebe problemas com o carro que dirige, o escritor fica indiferente, imerso na audição de In my mind,[i] o que já indicia seu alheamento da realidade objetiva. Em seguida, sugere-se um clima de suspense: o carro quebra, eles têm de abandoná-lo e se dirigem a pé para o vilarejo, cortando caminho pela floresta. Sem saber ao certo o caminho, Felix propõe que Leon o espere enquanto vai tentar um atalho.
Sozinho, Leon, carrancudo, se irrita com a situação. Num crescendo, parece temer estar numa região de floresta quando começa a anoitecer, e assusta-se com o barulho dos helicópteros e sons de aves. A atmosfera de medo sugere convenções do gênero terror que, porém, logo são quebradas quando Felix retorna e assusta o amigo numa brincadeira que acaba por levá-los a risadas. Mas, ao chegarem a seu destino, nova surpresa os aguarda. Na tomada da cena, a câmera os espera pela perspectiva de dentro da casa, retomando convenções de gênero.[ii]
De fato, sem que eles esperassem que alguém estivesse ocupando o lugar, encontram-no desarrumado, o que perturba novamente o plano inicial dos amigos, para mais uma irritação de Leon. O mistério se resolve prontamente, quando Felix telefona à mãe e descobre que Nadja (Paula Beer) está ali. Mas a presença dela perturba Leon, pois ele não consegue dormir devido aos sons no quarto da moça, onde ela e um parceiro gozam prazeres sexuais; ao amanhecer, ele vê um homem nu sair da casa. Quando Nadja é avisada do incômodo que isso provoca, tudo parece poder se ajustar.
No entanto, Leon continua a se irritar com qualquer quebra de suas expectativas, desde o mero fato de Felix lavar as louças que Nadja deixara sujas, a insistência dos amigos em convidá-lo para a praia, onde fica conhecendo o amante de Nadja, o “nadador de resgate” Devid (Enno Trebs), o desinteresse e o desprezo pela ideia do portfólio do amigo, a recusa em ajudar a consertar o vazamento no telhado, entre várias outras atitudes antissociais, alegando sempre que precisava trabalhar, quando de fato nada ou quase nada produz. Quando não há ninguém na casa, fica brincando com uma bolinha lançada à parede.
Numa certa releitura dos “filmes de verão”, ao estilo de Eric Rohmer (cuja influência Christian Petzold admite[iii]), as relações entre as quatro personagens vão se tornando complexas, dado o comportamento de Leon, escritor encapsulado em si mesmo, avesso às tarefas domésticas, às relações amenas de sociabilidade, à própria natureza (numa das cenas mais irônicas, Leon vai finalmente até a praia, mas se cobre quase inteiramente e não entra no mar).
É ele que nos interessa aqui, pois nessa personagem se revela a viravolta realizada por Christian Petzold nos chamados “filmes de verão”, centrados nas paixões românticas. De algum modo, essa paixão comparece – numa espécie de coup de foudre desde o momento em que Leon vê a figura esguia e bela de Nadja, sem com ela entrar em contato, porém.
Ao andar pela vila, o escritor a vê trabalhando como vendedora de sorvetes e recusa-se a esperá-la para voltarem juntos. Mas ela acaba por encontrá-lo, dormindo num banco. Leon conversa com ela, tenta desculpar-se por seu comportamento grosseiro e se explica: está ansioso porque seu editor virá para comentar sobre seu segundo livro, Club Sandwich. A moça estranha o título, ele se irrita e, quando ela lhe pergunta se pode ler o manuscrito, Leon recusa e lhe conta que certa vez contara uma de suas histórias para a faxineira de Felix e ela comentara que era muito piegas.
Mais tarde, o escritor lhe pede desculpas pelo comentário e dá seu manuscrito para que ela o leia. Nadja o faz imediatamente e lhe diz que não gostou e que ele mesmo sabe que o livro “é uma porcaria”. Leon fica furioso e, caminhando sozinho, não admite a opinião de Nadja e chama-a de “maldita sorveteira”, achando óbvio que ela não tenha entendido a obra.
A história segue. Chega a casa Helmut (Mathias Brandt), o editor de Leon que, ao ler trechos de seu manuscrito, tenta fazê-lo compreender a insuficiência e a falta de sentido do estilo, rebuscado e pretensioso, além de seu assunto, irrelevante, concentrar-se nos devaneios amorosos do narrador em contraponto com a realidade objetiva (o que, de algum modo, dá sentido irônico à reiteração da canção In my mind, como figuração da personalidade de Leon e do narrador de Club Sandwich).
Além disso, para maior irritação e ressentimento de Leon, Helmut aceita o convite de Nadja para jantar na casa, contrariando os planos anteriores do escritor. Na conversa à mesa, o editor se interessa pelas fotos de Félix e, sobretudo, por Nadja, que, de fato, só estava ali porque não havia conseguido uma bolsa de estudos para doutorar-se em Heine. Numa cena decisiva, ela recita “Azra”:
Todo dia, a linda filha
Do sultão faz um passeio,
À tardinha, ao chafariz
Que fervilha de águas claras.
Todo dia, jaz o escravo,
À tarde, no chafariz
Que fervilha; e a sua face
Cada dia está mais clara.
Certo dia, eis que a princesa
O interpela bruscamente:
Diz, escravo, qual teu nome,
Tua terra e tua tribo!
Fala o jovem: eu me chamo
Mohamed, nasci no Iêmen,
Sou um Azra, a quem o amor
É mortífero veneno.[iv]
Todos se comovem, menos Leon, que, ao encontrar Nadja a sós, acusa-o de tê-lo feito de idiota ao não mencionar anteriormente que estudava literatura.
A estadia do editor é subitamente interrompida quando, por passar mal, é internado em um hospital. Nadja percebe que ele está na ala de oncologia e, ao perguntar a Helmut sobre seu estado, ele lhe diz que é grave. Leon, no entanto, não se dá conta de nada, a não ser que seus planos não se realizarão; a discussão de seu manuscrito não acontecerá e Helmut voltará a Berlim antes do previsto, não sem antes dizer para abandonar completamente Club Sandwich e tentar algo novo. No retorno, ao discutirem, o escritor acusa Nadja de dizer a Helmut o que ela achou do manuscrito, incitando-o a desvalorizá-lo. A jovem, então, lhe diz que ele não observa o que ocorre a seu redor e, assim, também não se dera conta de que Helmut estava no setor de oncologia. Nadja, então, lhe diz que ele “nada vê”.
Como se nota nesta sinopse, aparentemente tudo gira em torno das relações de sociabilidade entre os Leon, Felix, Nadja e Devid. No entanto, elas estão gravitando em torno de algo muito maior, de que ninguém, com exceção de Nadja, parece dar-se conta. Cidade de veraneio com poucos turistas, barulhos constantes de helicópteros cruzando o céu, cinzas que chegam até a cidade: uma catástrofe está em andamento: os incêndios – constantes nas áreas próximas – estão fora de controle. Mas nada os preocupa, pois, como dizem várias vezes, o vento que vem do mar impede que os incêndios cheguem até eles. Mesmo como evidências gritantes, como as cinzas que chegam até eles, ou com o horizonte avermelhado, continuam a se sentir seguros.
Quando Devid e Felix, agora amantes, resolvem ir buscar o carro em que Leon e o amigo haviam chegado e que permanecia na estrada vicinal, ao lado da floresta, a calamidade atinge a todos eles. O fogo, que incendiava corpos de animais e toda a mata, lançara-se sobre os amantes, que morrem abraçados.
Há aqui, uma mudança fundamental na composição fílmica: às imagens, sobrepõe-se a voz de um narrador, em 3ª pessoa, enquanto as cenas continuam. Quando Nadja vê os corpos enlaçados dos amigos mortos, ela chora e Leon parece impassível. No entanto, a voz off narra que ele, em vez de chorar, pensa na imagem dos amantes em Pompeia, sem conseguir lamentar o que de fato estava diante de si. Eles se olham, ela deixa o hospital; ao retornar à casa, Leon constata que Nadja havia partido. À noite, sozinho, espera na praia e chora pela morte dos amigos, pela ausência da jovem. A voz off narra os momentos posteriores da vida do protagonista mas, na cena seguinte, o que vemos é Helmut lendo o romance, cuja última frase é “O mar estava brilhando”.
É assim, que, à primeira leitura, o filme trata das relações mundanas e pessoais, na situação que, prometida para ser promissora, acaba por se deteriorar até chegar à morte. Seu verdadeiro significado, porém, escapa a essa apreensão do conteúdo mais visível, uma vez que nova reviravolta revela qual é o sentido da experiência vivida por Leon. Pouco antes da cena final, quando a voz em off se revela como a voz de Helmut lendo o novo romance de Leon, pode-se depreender que o que vimos, como espectadores, é também, além da matéria do enredo do filme, a matéria do novo livro que o escritor escrevera como resultado de sua viagem de verão, só que, no romance, pela perspectiva de um narrador que se autocritica ao se mostrar como narcisista, passivo-agressivo e alheio à realidade.
Evitando a pieguice, agora Leon realiza o livro bem aceito pelo editor. Quando Helmut lhe diz que conversou com a mãe de Felix, Leon afirma que mudou os nomes das personagens, o que evitaria problemas jurídicos. Mas o editor lhe diz que o contato com ela deu-se por outra razão: Helmut quer incluir no livro duas das fotos tiradas por Felix: o mar e uma mulher de costas, provavelmente Nadja. Leon apenas as olha, sem expressar nenhuma emoção. Helmut lhe pede para sair, pois precisa receber os cuidados do enfermeiro, e assim sabemos que ele está em uma clínica.
Na cena final, Leon vê Nadja, que ali está por solidariedade a Helmut. Vêem-se à distância e ela o olha com carinho. No close em Leon, pela primeira vez em todo o enredo, ele sorri com ternura. Termina o filme e In my mind retorna nos créditos reforçando que a vida interior do protagonista – com seus devaneios – se sobrepõe à percepção da realidade objetiva. Se o novo romance de Leon sugeriria, pela ótica de seu narrador, algo como um ganho em consciência crítica, as cenas finais parecem indicar que Leon acredita que seus desejos com relação a Nadja poderão se realizar. Da catástrofe resultou um livro e uma perspectiva de felicidade amorosa.
Como entender o que se prometia desde o título, Afire (algo como Em chamas)[v]? Qual a relação que se pode estabelecer entre incêndio devastador, indiferença dos jovens na casa de veraneio (conforme o primeiro título imaginado pelo diretor) e a figura do escritor presunçoso e narcisista?
Como o filme se concentra na caracterização negativa da personagem, para, ao final, configurá-lo de outro modo, num giro de simpatia, deve-se compreender que a experiência trágica da catástrofe o transformou? Haveria aí um lampejo de que certo tipo de intelectual – de que Leon é figura emblemática – possa sair da indiferença frente ao colapso anunciado desde o início do enredo e passar por alguma transformação interior? Seu choro na praia indicaria autocrítica? Seria essa transformação pessoal um caminho para que as vivências se tornassem de fato experiência e compromisso contra a realidade catastrófica, para além da autocrítica?
Na entrevista a Girish, Christian Petzold comenta ter tido uma reação agressiva com relação a Leon, porque via a si mesmo naquela personagem e sentia-se perturbado por ela. Alguns toques de zombaria com relação ao comportamento passivo-agressivo do escritor procuram aliviar o mal-estar diante da figura do intelectual que se isola do mundo para criar sua arte.
Mas, com a rejeição de Club Sandwich, a paixão mal resolvida, a catástrofe ambiental e a morte de Felix e Devid, o que resulta dessa vivência é apenas material para uma história de transformação pessoal … Mas algo permanece ambivalentemente irônico: toda a tragédia é matéria para uma história (de amor?) como a indicar que de fato o centro está em Leon, que, pretendendo ter se transformado, nada aprende senão suas próprias tolices anteriores. E sua mudança, na cena final, com o sorriso que jamais dera, indica, talvez, que, realimentada a ilusão narcísica, tudo já se resolveu… Mas talvez o escritor continue cego para a dimensão coletiva da catástrofe ambiental.
Anunciado no título Afire, o desastre ambiental, que culmina na morte de Felix e de Devid, é, assim, tratado como evento motivador da suposta transformação de um intelectual que, no entanto, elabora sua vivência numa narrativa cuja ênfase está na dimensão privada dos acontecimentos. A figura desse escritor dá também a tessitura de outro tipo de catástrofe, que não apenas a ambiental: a da cegueira do intelectual em relação à ameaça à vida coletiva. A ironia do ponto de vista do filme ajuda-nos a compreendê-lo.
*Edu Teruki Otsuka é professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Autor de Marcas da catástrofe: experiência urbana e indústria cultural em Rubem Fonseca, João Gilberto Noll e Chico Buarque (Ateliê). [https://amzn.to/3v8YnIt]
*Ivone Daré Rabello é professora sênior do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Autora, entre outros livros, de Um canto à margem: uma leitura da poética de Cruz e Sousa (Nankim). [https://amzn.to/48wxvR0]
Referência
Afire (Roter Himmel)
Alemanha, 2022, 102 minutos
Direção e roteiro: Christian Petzold
Elenco: Thomas Schubert, Paula Beer, Langston Uibel, Enno Trebs, Matthias Brandt.
Notas
[i] A importância da canção para o sentido do filme já se mostra desde o início, na primeira sequência e reafirma-se em outras. Numa delas, enquanto a câmera focaliza Leon que observa uma brincadeira de badminton, In my mind retorna como comentário extradiegético, insinuando que o protagonista devaneia. Ao final do filme, a reincidência da canção abre perspectivas diversas para a compreensão do final da história. A letra, aqui traduzida, dá indícios de que o ponto de vista do filme deixa ambivalente a caracterização do protagonista: “Em minha mente/ Em minha mente/ O amor vai nos deixar, vai nos deixar cegos/ Estaremos morando em um lugar de que gostamos/ O que vai nos fazer, vai nos fazer encontrar?/ Em minha mente/ Em minha mente/ Em minha mente/ Nós vamos viver livres e selvagens/ Estaremos vivendo uma vida perfeita/ O amor nos fará, nos fará encontrar/ Em minha mente/”.
[ii] Na entrevista a Devika Girish, Petzold comenta: “Quando você mostra uma casa em um filme, você pode fazer [uma de] duas coisas. Você pode colocar sua câmera do lado de fora e os personagens chegam, tiram as chaves, abrem a porta e você os vê desaparecendo dentro de casa. Ou você pode esperar por eles dentro de casa. Há uma grande diferença: o primeiro diz: ‘Este é o verão, este é o primeiro dia’, enquanto o segundo diz: ‘Algo não está em ordem’” (“Interview: Christian Petzold on Afire”. In: Film Comment. 20/mar/2023).
[iii] Durante o festival de Berlim, onde o filme ganhou o Grande Prêmio do Júri, Petzold contou que reviu os filmes de Rohmer e se decidiu a explorar o terreno dos “filmes de verão”, ignorados pelo cinema alemão.
[iv] Em tradução de André Vallias (In: Heine hein? Poeta dos contrários. São Paulo: perspectiva/Goethe Institut, 2011, p. 291)
[v] O primeiro título imaginado pelo diretor foi Aqueles que são felizes (The happy ones), mas, por questões de direitos autorais, ele mudou-o para Céu vermelho. No entanto, ao saber do título em inglês, achou-o melhor que o seu (Cf.: entrevista citada).
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