As armas nucleares “secretas” de Israel

Imagem: Clara Figueiredo, Tempo_Fotografia, Digital, Luiz Beltrame, 2017
image_pdf

Por DESMOND TUTU

Joe Biden irá por fim à política norte-americana de acobertar a existência desse arsenal atômico?

Todos os últimos governantes dos Estados Unidos praticaram um ritual perverso ao assumir o poder.  Eles aceitaram subverter a lei ao assinar cartas secretas estipulando que não reconheceriam algo que todos já sabem: que Israel tem um arsenal de armas nucleares.

Fazer com que se deixasse de focar na capacidade que Israel tem de transformar dezenas de cidades em poeira era uma das razões de tal prática. Esse fracasso no enfrentamento da ameaça posta pelo terrível arsenal israelense oferece ao seu primeiro ministro, Benjamin Netanyahu, uma sensação de poder e impunidade, permitindo que Israel dite seus termos aos outros.

No entanto, outro efeito da estratégia de avestruz adotada pelo governo é que ela o isenta de invocar a própria lei norte-americana, que ordena a interrupção das benesses oferecidas com o dinheiro dos contribuintes a países proliferadores de armamento nuclear.

Israel é, de fato, um proliferador de armas nucleares. Existem evidências abundantes de que, nos anos 1970, o país ofertou-as ao regime de apartheid da África do Sul. Os dois países inclusive realizaram um teste nuclear em conjunto, e o governo norte-americano tentou encobrir tais fatos. Israel nem sequer assinou o tratado de não proliferação.

Mesmo assim, os governos de Israel e dos Estados Unidos pressionaram pela invasão do Iraque sob o pretexto mentiroso de futuros cogumelos atômicos. Como disse o delator Mordechai Vanunu: as armas nucleares não estavam no Iraque – elas estão em Israel.

Emendas propostas pelos ex-senadores Stuart Symington e John Glenn à Lei de Assistência Estrangeira proíbem a assistência econômica e militar a proliferadores de armas nucleares e a países que adquirem arsenal atômico. Em sua presidência, Jimmy Carter invocou tais cláusulas contra a Índia e o Paquistão.

Mas nenhum presidente o fez com Israel. Muito pelo contrário. Existe, desde o governo Nixon, um acordo oral de aceitação da “ambiguidade nuclear” israelense – efetivamente dando a Israel o poder que vem com a posse de armas nuclearessem as responsabilidades que isso implica. E tais cartas secretas realmente existiram, de acordo com a revista New Yorker, desde o governo Clinton.

Políticos e presidentes norte-americanos se recusaram a reconhecer que Israel tem armas nucleares, ainda que a lei permita, excepcionalmente, a continuidade do financiamento caso o presidente certifique ao Congresso que a ajuda a um proliferador seria de interesse vital aos Estados Unidos.

O produto interno bruto per capta de Israel é comparável àquele da Grã-Bretanha. No entanto, a quantidade de recursos dos contribuintes enviados a este país ultrapassa aquela oferecida a qualquer outro país. Considerando a inflação, a quantia publicamente conhecida destes fundos aproxima-se, hoje, dos 300 bilhões de dólares.

Esta farsa tem que acabar. O governo dos Estados Unidos precisa defender suas leis e cortar o financiamento a Israel em resposta às suas práticas de aquisição e proliferação de armas nucleares.

O recém empossado governo Biden precisa reconhecer, de forma categórica, que Israel é um dos principais investidores na proliferação nuclear no Oriente Médio – apropriadamente aplicando a lei. Outros governos – em particular o da África do Sul – precisam insistir no primado da justiça e na defesa de um desarmamento significativo, além de pressionar, o mais fortemente possível, para que o governo dos Estados Unidos tome uma atitude.

O apartheid na África do Sul foi uma experiência horrível, e é horrível quando Israel pratica a sua própria forma de apartheid contra os palestinos, com seus checkpoints e um sistema de políticas opressivas. Aliás, outra regra norte-americana, a lei de Leahy, proíbe a ajuda militar a governos que violam os direitos humanos de maneira sistemática.

É possível que um dos motivos da sobrevida maior do apartheid israelense, em comparação com o sul africano, seja o fato de que Israel conseguiu manter seu sistema de opressão não apenas através das armas de seus soldados, mas também com seu canhão nuclear apontado para milhões de cabeças. A solução deste problema não está na tentativa dos palestinos e de outros árabes de tomar posse destas armas. A solução é a paz, a justiça e o desarmamento.

A África do Sul aprendeu que é apenas com a verdade que leva à reconciliação que se pode verdadeiramente alcançar a paz e a justiça. Mas nenhuma delas virá sem que a verdade seja enfrentada diretamente – e poucas verdades são mais cruciais do que um arsenal nuclear nas mãos de um regime de apartheid.

*Desmond Tutu é arcebispo da Igreja Anglicana. Foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 1984.

Tradução: Daniel Pavan

Publicado originalmente no jornal The Guardian.

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES