As bases do inadmissível

Imagem: Elyeser Szturm
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Por Luis Felipe Miguel*

Bolsonaro continuará no cargo enquanto continuar útil ao projeto do golpe de 2016: banir o campo popular do espaço da negociação política.

O miliciano-em-chefe do país aderiu à manifestação convocada para o próximo dia 15, cuja bandeira principal, descrita em bom português, é “fechem o Congresso!” O que isso significa?

Não creio que seja muito diferente de situações similares que ocorreram no ano passado. Bolsonaro sabe que não tem força para aplicar um novo golpe e instaurar uma ditadura pessoal.

A ampliação do espaço dos generais em seu governo não significa que ele está ganhando ascendência sobre as forças armadas, muito pelo contrário. E, apesar da calculada explosão de Augusto Heleno, a cúpula militar sabe muito bem que lhe convém mais essa “democracia” tutelada e capenga do que uma ruptura aberta com a ordem constitucional.

A jogada de Bolsonaro tem que ser entendida à luz das acomodações dentro da coalizão golpista – aquela que arquitetou a derrubada de Dilma e a criminalização da esquerda e na qual ele, o ex-capitão extremista, estava destinado inicialmente a um papel secundário.

Nas últimas semanas, Bolsonaro acumulou desgastes – culminando na agressão misógina à repórter da Folha de S. Paulo – e voltou a se acenar com a ideia de impeachment. Como fez no ano passado, ele quer mostrar à direita que, sem ele, ela não governa.

A base de que ele dispõe não é irrelevante. São aqueles que são leais ao “mito” e continuarão sendo por muito tempo, não importa o quão catastrófico o seu governo seja. São militares de baixa patente e policiais que se veem “empoderados” com o atual governo. São os que continuam iludidos com Moro – e que, na verdade, se sentem atraídos com o odor distintamente fascista que o ex-juiz confere a seu ministério.

São os milhões que se identificam com o obscurantismo moral da estrela em ascensão do governo, a ministra Damares Alves. (Não dá para desenvolver aqui, mas suspeito que as bases sociais diferentes do pentecostalismo brasileiro, bem como as características próprias do nosso Welfare State gorado, tornam pouco úteis para nós as teorias sobre o casamento entre neoliberalismo e neoconservadorismo importadas dos Estados Unidos.)

E temos também, claro, o grande grupo dos pragmáticos, aqueles que podem se incomodar com a truculência de Bolsonaro e mesmo com a incontinência verbal de Guedes, mas julgam que o principal é avançar no programa de aniquilamento dos direitos e destruição do Estado social.

Esse é o ponto: toda a direita limpinha, incluídos aí Maia, FHC, a mídia corporativa, os banqueiros cosmopolitas, o escambau, pertence ao grupo dos pragmáticos.

Bolsonaro quer colocar sua tropa na rua para dizer a eles: segurem a onda aí, porque sem mim um governo de direita não se sustenta, talkey?

Afinal, o que ele pede para si e para os seus é tão pouco – umas vantagenzinhas, uns esqueminhas, umas impunidadezinhas. E em troca ele faz tanto, faz todo o serviço sujo.

Em quatro – quem sabe oito? – anos, entregará o país que eles querem.

Sim, ao se associar pessoalmente ao ato pró-ditadura aberta do próximo dia 15, Bolsonaro cruzou, pela enésima vez, a linha que separa o admissível do inadmissível. Ouviremos, já estamos ouvindo, as vozes indignadas da imprensa, dos conservadores respeitáveis, dos pró-homens do parlamento.

Mas Bolsonaro continuará no cargo enquanto continuar útil ao projeto do golpe de 2016 – banir o campo popular do espaço da negociação política.

*Luis Felipe Miguel é professor de Ciência Política na UnB.

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