As eleições presidenciais no Chile

Imagem: Jade
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Por ARIEL DORFMAN*

Gabriel Boric representa um Chile que procura se libertar do passado e conquistar justiça para o futuro

Completa agora meio século daquele novembro de 1971, quando foi publicado no Chile Para leer al Pato Donald, um livro que escrevi com o sociólogo belga Armand Mattelart. Nunca previmos que nosso ensaio, traduzido em dezenas de idiomas, se tornaria um dos livros mais vendidos internacionalmente, sendo abraçado por escritores eminentes como Umberto Eco e John Berger. Ao contrário, tinha nascido com um fim prático: participar da experiência chilena de construção do socialismo, utilizando, pela primeira vez na história, métodos eleitorais e pacíficos.

Isto significava que o governo de Salvador Allende, que alcançara a presidência em setembro de 1970, teria que ganhar a batalha pela consciência dos eleitores numa situação de considerável desigualdade, já que a maioria dos meios de comunicação se encontrava nas mãos dos inimigos da revolução.

Nesta luta para definir a identidade do Chile, contávamos com a editora mais importante do país. Rebatizada como Quimantú (sol do saber, em mapuche), publicou milhões de livros a preços irrisórios, além de revistas de todo tipo, incluindo quadrinhos infantis e adultos, que deveriam competir num mercado saturado de produtos estrangeiros. Entender como estes quadrinhos funcionavam para criarem-se alternativas de competição parecia uma tarefa urgente, e Armand e eu propusemo-nos a analisar os quadrinhos mais populares no Chile – e no mundo – produzidos pela enorme corporação fundada por Walt Disney.

Se escolhêssemos um personagem emblemático – o Pato Donald – e revelássemos as mensagens secretas escondidas atrás de sua fachada inocente e supostamente apolítica, seria uma forma de desnudar a ideologia dominante no Chile, as formas imperiais invisíveis em que se concebiam o trabalho, o sexo, a família, o sucesso, a relação entre países pobres e prósperos.

Para leer al Pato Donald – escrito em 10 dias febris – causou furor e fúria quando foi publicado, com uma enorme segunda impressão, e uma terceira que não pôde ser distribuída devido ao golpe militar de 1973. Essa última edição foi lançada na baía de Valparaíso. Também queimaram nosso palmípede. Quarenta anos depois dos nazistas terem incinerado tantos volumes “degenerados”, as fogueiras repetiram-se. Dias após o golpe, numa casa onde estava escondido, vi na televisão um grupo de soldados atirar centenas de livros sobre as chamas, dentre os quais encontrava-se o nosso. Dois anos mais tarde, a pedido da Disney, a alfândega estadunidense apreenderia milhares de exemplares da edição em inglês, acusando-nos de reproduzir material visual sem a permissão dos proprietários.

Que vigência tem esse livro juvenil, elaborado apressadamente no meio de uma revolução que tinha suas horas contadas?

Embora nosso panfleto sofra das limitações próprias da época em que nasceu, creio que tem algo a oferecer num momento em que imensos movimentos sociais questionam o modelo neoliberal que tem gerado tanta desigualdade e injustiça. Face à nova necessidade de refundar a sociedade, o que hoje mais aprecio de Para leer al Pato Donald é seu descaramento, seu sentido de humor, a energia rebelde que um povo em marcha nos trazia, qualidades que se observam agora mesmo no Chile, onde, coincidindo estranhamente com o cinquentenário do nosso livro, ocorreu o primeiro turno das eleições presidenciais.

Um dos candidatos que avançou para o segundo turno das eleições no Chile é o pinochetista José Antonio Kast, admirador de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, que personifica as ideias tradicionais sobre trabalho, família, conservadorismo, sexo, competição aberta e medo de mudança que criticávamos em nosso livro. Não sei se Kast, que tinha sete anos no momento do golpe de 1973, viu na televisão a queima do pato indefeso. É provável que seu pai, um oficial nazista que procurou refúgio no Chile após a queda do Terceiro Reich, tenha celebrado estas piras inquisitoriais que o lembraram dos bons tempos de Hitler. O certo é que Kast não teria gostado do nosso livro.

Por outro lado, concorre Gabriel Boric que representa um Chile que procura se libertar do passado e conquistar justiça para o futuro, encarnando as forças que, com seus protestos – de fato, descarados e insolentes –, criaram as condições para que uma nova Constituição plenamente democrática seja escrita, uma tentativa ousada de ler o Chile com olhos insurrectos. Boric e seus apoiadores atrevem-se a pensar, sentir e gozar a realidade de uma forma alegre e rebelde que me faz lembrar o espírito que animava os allendistas de meio século atrás. E noto, com satisfação, que Boric – nascido 15 anos depois de nosso livro ter sido suprimido com tanta violência – chegou a lê-lo em sua adolescência, quando era um dos líderes estudantis que se levantaram contra as desigualdades do período pós-ditadura.

Parafraseando Pierre Corneille em Le Menteur, talvez seja possível afirmar em breve que Para leer al Donald, queimado, afogado, apreendido, mil vezes dado como morto, goza de boa saúde.

*Ariel Dorfman é escritor, professor de literatura da Universidade de Duke (EUA). Autor, entre outros livros de O longo adeus a Pinochet (Companhia das Letras).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente no jornal El país.

 

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