As entranhas perfumadas da ditadura

Elyeser Szturm (Jornal de Resenhas)
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por DANIEL BRAZIL*

Comentário sobre o romance O Punho e a Renda de Edgard Telles Ribeiro

O romance O Punho e a Renda é um exemplo perfeito de como a ficção pode jogar luz sobre o passado, iluminando meandros sombrios e revelando homens e ratos. O autor, Edgard Telles Ribeiro, é diplomata de carreira, e também escritor premiado, jornalista e professor de cinema.

O livro é aberto com a tradicional advertência “O presente livro é obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou falecidas é mera coincidência.” Bem, a ficção começa aqui. Se devemos lembrar-nos de um cineasta (e vários são citados no enredo), é de Orson Welles. Um pouco de Cidadão Kane, e muito de Verdades e Mentiras.

O cenário é real”, concede o autor. A história começa em 1968, e avança numa montagem bem engendrada, com flashbacks e reflexões no tempo presente (o livro foi publicado em 2010). E bastam algumas páginas para começarmos a reconhecer personagens reais, figuras históricas e situações vividas. Alguns nomes são ligeiramente modificados, outros estão lá, com todas as letras.

O narrador é um jovem funcionário do Itamaraty, discreto, amante de jazz e literatura. Primeiro de maneira próxima, depois à distância, tenta traçar o perfil de um amigo mais velho, Max, que domina como poucos o jogo do poder. Sua ascensão profissional é favorecida por sua aproximação com os militares, envolvendo-se em jogadas tenebrosas que aos poucos vão se descortinando.

O personagem, transferido para o Uruguai, articula de forma subterrânea a colaboração entre a ditadura brasileira e os militares uruguaios, e depois os chilenos. Promove contatos com empresários que financiam a tortura, se alinha com a CIA, mantém contato com o M16 inglês. Os respingos de sangue dos golpes militares no continente não parecem manchar os punhos de renda de Max, que mais adiante terá papel de destaque na aquisição das usinas nucleares alemãs. Sempre de forma não oficial, claro. Fica claro que o sonho dos generais brasileiros era ter a bomba, coisa que não interessava aos norte-americanos.

No entorno do personagem, somos convidados a entrever o ambiente diplomático, suas festas e jantares, os almoços regados a bons vinhos, as disputas de poder, os ciúmes e as vaidades.

Vários livros têm sido escritos sobre o período, mas poucos tão originais como este. Ficamos espantados não com a banalidade do mal, no sentido proposto por Arendt, mas com a elegância do mal, vestido em ternos de corte impecável e fumando cigarrilhas cubanas. E o talento de Edgard Telles Ribeiro é demonstrar que não por isso seja menos odioso.

Não é um romance político, no sentido estrito, mas antes uma investigação sobre um homem que vendeu a alma para o diabo, quando este vestia farda e comandava ditaduras. Através do agente americano, compreendemos melhor as articulações políticas subversivas da CIA no continente, desestabilizando governos e treinando aparatos de repressão.

Quem conhece o Itamaraty de perto pode identificar o retratado, mesmo que seja simbólico. Homem culto, observador perspicaz eespírito maquiavélico, soube aproveitar a redemocratização para vestir uma nova pelagem, chegando aos degraus mais altos da carreira. Os fantasmas que arrasta em seu passado não apontam o dedo para um colaboracionista. E se apontam, não conseguimos enxergar.

Outros personagens aparecem. A mulher de Max tem papel relevante na trama, assim como o citado agente. São estes que revelam pistas importantes para o narrador, dando um clima de thriller de espionagem ao enredo. O enredo não se fecha de forma tradicional, com bandidos sendo punidos e mocinhos premiados, o que pode incomodar os leitores mais tradicionalistas, mas justamente por isso estabelece uma preocupante ligação com a realidade atual.

Escrito com maestria e inteligência, O Punho e a Renda é obra fundamental para entendermos as sombras e luzes daquele lamentável período da História. São 560 páginas de uma leitura envolvente, da qual emergimos com um travo amargo na boca, ao percebermos quão perto estamos dos mesmos podres poderesque vicejaram durante a ditadura militar.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

REFERÊNCIA

O punho e a renda de Edgard Telles Ribeiro – Março 2014 (https://amzn.to/456WDwD)

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Annateresa Fabris Andrew Korybko João Paulo Ayub Fonseca Eleutério F. S. Prado Mário Maestri Francisco Fernandes Ladeira Érico Andrade Francisco Pereira de Farias Carlos Tautz Rubens Pinto Lyra Henri Acselrad Bruno Fabricio Alcebino da Silva Afrânio Catani Chico Whitaker Dênis de Moraes Ladislau Dowbor Luiz Roberto Alves Ricardo Fabbrini José Raimundo Trindade André Singer Fábio Konder Comparato João Carlos Loebens Gilberto Maringoni Paulo Sérgio Pinheiro Eugênio Bucci Slavoj Žižek Luiz Bernardo Pericás André Márcio Neves Soares Airton Paschoa Valerio Arcary Ricardo Musse Gilberto Lopes Fernão Pessoa Ramos Heraldo Campos Fernando Nogueira da Costa Leonardo Boff Elias Jabbour Plínio de Arruda Sampaio Jr. José Luís Fiori Sergio Amadeu da Silveira Luciano Nascimento Vanderlei Tenório Eliziário Andrade Manchetômetro Priscila Figueiredo Lincoln Secco Liszt Vieira Paulo Capel Narvai Denilson Cordeiro Ricardo Abramovay Tales Ab'Sáber João Feres Júnior Vinício Carrilho Martinez Tarso Genro Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Marcos Aurélio da Silva Renato Dagnino Celso Frederico Alexandre de Lima Castro Tranjan Bernardo Ricupero Osvaldo Coggiola Benicio Viero Schmidt Luiz Eduardo Soares Henry Burnett Marjorie C. Marona Julian Rodrigues Michel Goulart da Silva Alysson Leandro Mascaro Valerio Arcary Michael Roberts Yuri Martins-Fontes José Costa Júnior Paulo Martins Milton Pinheiro Ronaldo Tadeu de Souza Celso Favaretto Ronald Rocha José Micaelson Lacerda Morais Claudio Katz Atilio A. Boron Luiz Marques Antonino Infranca Tadeu Valadares Marilena Chauí Maria Rita Kehl Marcelo Módolo Antonio Martins Luís Fernando Vitagliano Marcos Silva João Sette Whitaker Ferreira Alexandre Aragão de Albuquerque Everaldo de Oliveira Andrade Leonardo Sacramento Daniel Costa Flávio Aguiar Vladimir Safatle Alexandre de Freitas Barbosa Jorge Luiz Souto Maior Gerson Almeida Flávio R. Kothe Daniel Afonso da Silva Dennis Oliveira Walnice Nogueira Galvão Rodrigo de Faria Thomas Piketty Eugênio Trivinho Eduardo Borges José Geraldo Couto Andrés del Río João Adolfo Hansen Leonardo Avritzer Remy José Fontana Luiz Renato Martins Antônio Sales Rios Neto Matheus Silveira de Souza Jorge Branco Eleonora Albano Paulo Fernandes Silveira Salem Nasser Michael Löwy Bruno Machado Sandra Bitencourt Daniel Brazil Mariarosaria Fabris Jean Marc Von Der Weid Anselm Jappe Bento Prado Jr. Ronald León Núñez Juarez Guimarães Jean Pierre Chauvin Gabriel Cohn Luiz Carlos Bresser-Pereira Luiz Werneck Vianna Leda Maria Paulani Paulo Nogueira Batista Jr Carla Teixeira Rafael R. Ioris Francisco de Oliveira Barros Júnior Chico Alencar João Carlos Salles Marcus Ianoni Caio Bugiato Lorenzo Vitral Boaventura de Sousa Santos José Machado Moita Neto Otaviano Helene Armando Boito Ari Marcelo Solon Marcelo Guimarães Lima Ricardo Antunes Igor Felippe Santos Lucas Fiaschetti Estevez Luis Felipe Miguel Marilia Pacheco Fiorillo Manuel Domingos Neto Samuel Kilsztajn Berenice Bento José Dirceu Kátia Gerab Baggio João Lanari Bo

NOVAS PUBLICAÇÕES