Balaio de desvairados

Imagem: Jan van der Wolf
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Por LUIZ CARLOS CHECCHIA*

Marta Suplicy é uma ponte bem estabelecida com a velha burguesia paulistana, um garantidor junto às elites de que está tudo bem eleger Boulos, de que ele não vai mexer na ordem estabelecida

Recentemente, um dos movimentos políticos aparentemente mais improváveis ocorreu: Guilherme Boulos e Marta Suplicy selaram acordo para a formação da chapa composta por Partido dos Trabalhadores e Partido Socialismo e Liberdade visando as eleições municipais na capital paulista, neste ano de 2024. Esse movimento tem várias significações, e neste pequeno escrito focalizaremos em um deles que, ao nosso ver, é o mais obscuro, porém mais reveladores da lógica política nacional e que podemos definir como a reabilitação dos golpistas de 2016.

Nos últimos anos, uma das maiores aulas políticas que tivemos, nós brasileiros, foi prestada pelo então ministro do planejamento Romero Jucá quando proferiu a expressão “com o Supremo e tudo”. A tão sucinta quanto cínica frase de Jucá desvelou a maquinaria que envolve um golpe de Estado, dos quais destacamos um ponto em especial: o necessário conluio de boa parte dos chamados círculos do poder, principalmente as cúpulas militares, empresariais e jurídicas.

O termo “círculo do poder” foi definido e apresentado pelo sociólogo estadunidense Wright Mills, no livro A elite do poder, de 1956, e descreve como a elite dominante é formada por círculos de relações que se compõem de setores chave da sociedade, como militares, cúpulas do governo e formadores de opinião, entre outros. Dos círculos do poder devemos dar o devido destaque às empresas da grande mídia impressa e eletrônica e as lideranças religiosas, visto que são fundamentais para formar o convencimento popular. Por fim, e acima de tudo, precisamos destacar a necessária anuência dos Estados Unidos, posto que qualquer perturbação política em uma nação na esfera de influência do imperialismo não pode prejudicar o atendimento dos seus interesses.

Isso posto, podemos agora nos debruçar sobre dois alegados golpes ocorridos no Brasil nos últimos anos, o de 2016 que depôs a então presidente Dilma Rousseff, e a invasão das sedes dos poderes executivo e judiciário federais, em 8 de janeiro de 2023. O primeiro deles envolveu os principais setores da grande burguesia nacional e seus mais importantes representantes políticos, como o próprio Jucá. Lembrando da histórica falta de carisma político da grande burguesia brasileira que a obriga, de tempos em tempos, a recrutar figuras de outras classes para ser seu “rosto público”.

Essa condição a levou a buscar um “rosto” improvável naquela ocasião, o ex-capitão do Exército Brasileiro Jair Messias Bolsonaro, um legítimo representante da pequena burguesia ultraconservadora. Essa união pouco ortodoxa pôs para andar um movimento fascista muito bem sucedido, cujos desdobramentos ainda estão em curso na política e na cultura nacionais.

Em suma, em 2016 ocorreu algo mais que um “alegado” golpe, foi um golpe de fato. E não apenas porque obteve êxito em seus intentos; poderia ter fracassado: Lula poderia não ter sido preso, Dilma Rousseff poderia não ter sido deposta e Jair Bolsonaro poderia não ter sido eleito. Ainda assim, teria sido uma legítima e bem articulada tentativa de golpe.

O outro alegado golpe, o de 8 de janeiro de 2023, envolveu uma pequena massa de poucos milhares de desocupados, gente de diferentes classes, como lumpen-proletários, trabalhadores (em sua maioria sem qualificação) e estratos baixos da pequena burguesia; em sua maioria, todos eram pessoas de meia idade ou idosos. Salvo o apoio individual de alguns militares de média e alta patentes, um ou outro empresário (principalmente latifundiários) e de alguns líderes religiosos, os eventos de 8 de janeiro não articularam a participação direta ou indireta de nenhuma cúpula dos círculos de poder do Brasil. Sobretudo, não houve, em nenhum momento, o apoio dos Estados Unidos e demais nações do imperialismo, que, pelo contrário, foram céleres em condenar a invasão das sedes dos poderes em Brasília.

A massa de pessoas do 8 de janeiro foi ruidosa, bestial, movida tão somente pela fúria instintiva de sujeitos alucinados, sem qualquer organização política, nem objetivos táticos claros e integrados a uma estratégia de tomada de poder. Enfim, o 8 de janeiro não foi mais que um cortejo messiânico, um dos muitos que marcam a história popular brasileira, fenômeno social já bem explicado por Maria Isaura Pereira de Queiroz, em seu clássico livro O messianismo no Brasil e no mundo. Cortejo muito perigoso para a integridade física de portas de vidro e artefatos de artes alocados nos corredores das sedes dos poderes da república, mas não para o Estado brasileiro. Os envolvidos devem ser julgados nos rigores da lei, mas não deveriam ser premiados com uma distinção política que não merecem. Não são revolucionários nem golpistas, são tão somente pobres coitados num balaio de desvairados.

Aquela invasão, menos ordenada que a armada de Brancaleone, pode receber o nome que for, menos o de golpe. Não importa o que seus participantes e apoiadores aleguem ou confessem, não havia a mínima capacidade de tomarem o Estado brasileiro de assalto, mesmo que parcialmente ou por pouco tempo. Tratar o 8 de janeiro como um golpe acaba apenas por supervalorizar os seus participantes, atribuindo-lhes a capacidade organizativa que nunca chegaram perto de ter. E, ainda, alça Bolsonaro a um patamar de liderança que jamais conseguiria alcançar pelas próprias pernas ou, muito menos, com sua capacidade sináptica.

O mais acertado seria que todo e qualquer resquício daquele evento fosse relegado ao ostracismo político, sendo lembrado apenas por acadêmicos e humoristas. Mas, ao contrário disso, o que ocorre é o imenso esforço por parte do atual governo, de setores empresariais (destacando-se os da grande mídia), do judiciário e de outros setores em transformar a intentona de 8 de janeiro em um grande golpe bem articulado que não se realizou apenas porque as forças democráticas brasileiras, plasmadas na corajosa atuação de suas instituições, o impediram no último momento. Essa heroica narrativa tem sido efetiva, pois os pobres idosos agarrados em suas imagens da Virgem Maria e os desempregados que desferiram sua fúria em peças de arte e vidraças estão hoje rotulados como os piores inimigos da democracia brasileira.

Golpe e reabilitação

Ainda hoje, a tentativa de Revolução Comunista de 1935 é tratada meramente como uma intentona. Nela, houve uma ampla articulação de núcleos revoltosos pelo país, e seu fracasso ocorreu por diversas leituras equivocadas acerca da desejada participação popular, mas não foi, de forma alguma, uma intentona. Mas o 8 de janeiro, esse sim uma risível intentona em todos os seus aspectos, tem sido tratado como um golpe extraordinariamente organizado. Por quê?

Pelo que nos parece, a intentona de 8 de janeiro de 2023 está cumprindo um significativo papel para o reequilíbrio entre as principais forças políticas da Nova República. O fim do regime militar, em 1985, e a proclamação da Constituição de 1988 deram início à quinta República brasileira, conhecida como Nova República. Ela se assenta sobre três forças políticas principais que se expressam, ao menos em suas primeiras décadas, no PMDB (hoje MBD), como principal partido do centro conservador; o PSDB, partido que tentou se caracterizar como uma social democracia moderna, mas acabou cumprindo uma agenda neoliberal e o Partido dos Trabalhadores, que surge como defensor de uma agenda de “reformismo forte” para o Brasil, mas acabou caracterizando-se por operar um “reformismo fraco”, segundo descrição prestada por André Singer em seu livro Os sentidos do lulismo.

Como se percebe, nenhuma dessas forças pretendeu ou pretende provocar qualquer profunda transformação no Estado brasileiro, sendo apenas operadores da lógica capitalista periférica, distanciado-se, entre si, tão somente pelas diferentes maneiras de como fazem isso, mas mantendo, por outro lado, um tenso equilíbrio que é, ao fim e ao cabo, a própria razão de ser da Nova República. Todavia, esse equilíbrio foi quebrado quando parte das elites políticas resolveram enveredar pelos caminhos de um golpe palaciano, em 2016, sendo o bolsonarismo a artilharia usada nessa aventura. O que as forças por trás do golpe não esperavam é que o bolsonarismo fosse tão descontrolado nos desvarios de seus valores e costumes, sobretudo, que fosse tão irresponsável no quadro de pandemia surgido em 2020. Assim, foi preciso reverter todo o processo iniciado em 2016 e restabelecer o equilíbrio de forças políticas que constituem a Nova República.

Assim, explica-se a ressurgência de Lula, única figura capaz de, em pouco tempo, reaglutinar forças burguesas e populares com capacidade de vencer eleitoralmente Jair Bolsonaro. E o operário-presidente aproveitou bem a ocasião empunhando uma bandeira branca onde escreveu em letras douradas: “reconstrução nacional”. Porém, havia um contratempo nessa equação: a participação de setores das burguesias no golpe que derrubou Dilma Rousseff, afinal, como marchar pela reconstrução nacional ao lado de quem pôs o país a pique e praticamente criou a figura de Jair Bolsonaro?

Para superar tal contratempo, o Partido dos Trabalhadores parou de atribuir o epíteto de “golpista” a políticos e empresários que se dispusessem a caminhar ao lado de Lula, chegando a censurar seus militantes que o fizessem. Mais ainda, buscou um legítimo representante das burguesias para a vice-presidência, Geraldo Alckmin, ele mesmo uma das principais lideranças do golpe de 2016.

Mas era pouco, porque apesar das “broncas” dadas por Lula e demais dirigentes do PT, movimentos populares e militantes de esquerda não deixavam de reconhecer nos golpistas de 2016 aquilo que eles são de fato, golpistas. Dessa maneira, era preciso encontrar uma forma de reabilitá-los politicamente de maneira total e profunda, colocando-os nas trincheiras dos “lutadores pela democracia”. E a intentona de 8 de janeiro de 2023 foi o evento ideal para isso.

Ela ensejou aos golpistas de 2016 apresentarem-se como paladinos da democracia brasileira: políticos, ministros do Supremo, empresários e toda sorte de oportunistas que se enquadravam na expressão “com o Supremo e tudo” tinham, agora, a oportunidade de se antepor à figura de Bolsonaro, de se encostarem em Lula e, principalmente, garantir ampla participação nas decisões políticas do Estado brasileiro. E isso foi feito, e deu certo: o lulismo 2.0 venceu as eleições de 2022 anunciando um “governo de reconstrução nacional”, tendo o agora “companheiro, herói do povo brasileiro” Alckmin como vice e a benção do Supremo. Mas a verdade é que não passou de mais do mesmo um pouco mais turbinado: a diversidade instagramável subiu a rampa do Planalto e até assumiu alguns ministérios sociais, mas as pastas fortes ligadas ao planejamento e à economia continuam sob controle da grande burguesia.

Boulos e Marta, oportunismo e reabilitação

O mais recente e mais agudo movimento desse processo de reabilitação é a aproximação política de Guilherme Boulos e Marta Suplicy formando chapa para concorrer à prefeitura de São Paulo. Marta, há muito tempo, deixara o Partido dos Trabalhadores flanando para a direita. Ela filiou-se ao MDB, sob auspícios do golpista Michel Temer e manteve-se, até recentemente, no governo da capital paulista. Ainda como senadora, votou a favor da deposição de Dilma Rousseff, e, em uma entrevista concedida ao jornal El País, em 30 de junho de 2016, se esforça em condenar o Partido dos Trabalhadores como uma agremiação incorrigivelmente corrupta enquanto o MDB passava por investigações, mas apenas pontuais e que não tinha na corrupção um modus operandi.

Apesar disso, visando amarrar várias pontas de interesses, o PT reaproximou-se de Marta Suplicy, reintegrou-a às suas fileiras e a indicou como candidata a vice-prefeita paulistana. Também está de volta a velha cantilena cujos versos dizem que Marta é a certeza de diálogo com as periferias. Mas fato concreto é que Marta Suplicy é uma ponte bem estabelecida com a velha burguesia paulistana, um garantidor junto às elites tradicionais de que está tudo bem eleger Boulos, ele é um dos nossos agora, vai fazer muitos restaurantes populares e talvez até algumas mais ciclofaixas, mas não vai mexer na ordem estabelecida.

Todavia, e esse é um ponto determinante, a oposição do petismo e seus reabilitados à figura política de Jair Bolsonaro não alcança o bolsonarismo. Diversas agendas do bolsonarismo mantêm-se atendidas pelo novo governo Lula, inclusive, com a participação de bolsonaristas em diversos postos do governo, como noticiou o portal Último Segundo IG, em 11 de novembro de 2023. Participação que se pretende ampliar através de acenos, gracejos e algumas broncas a petistas que tentam se manter na esquerda, como ocorreu em evento político em Recife, capital pernambucana, em março de 2023, quando Lula defendeu a governadora tucana, Rachel Lyra, e o prefeito da cidade, João Campos, das vaias petistas, como informa o portal Poder 360, em matéria assinada por Caio Spechoto, de 23 de março de 2023.

Ou mais recentemente, na cidade de Santos, litoral paulista, no início de fevereiro deste ano, quando Lula interrompeu as vaias petistas ao governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas, outrora braço direito de Jair Bolsonaro, e ainda, o cortejou com sua tradicional retórica de sedução política, como noticiou o Valor econômico, em matéria assinada por Rachel Vazquez, em 2 de fevereiro de 2024.

Se, de alguma forma, trata-se de esforços para reequilibrar a Nova República, esse reequilíbrio não é a prova de seu sucesso, mas sim, de que enquanto o novo não vier, o velho continuará a ser um cadáver andando entre nós. A ascensão do bolsonarismo foi a prova de que a Nova República fracassou fragorosamente em suas contradições, e seu reequilíbrio prova que as classes dominantes e as castas políticas ainda se mantêm fortes o bastante para impedir que a classe trabalhadora possa se organizar plenamente para além dos limites do Estado.

A Nova República se reequilibra, os interesses das burguesias se mantêm na ordem do Estado brasileiro, os golpistas de 2016 são reabilitados politicamente. E o preço singelo pago para isso é o enfraquecimento da esquerda e a máxima criminalização do balaio de desvairados e de sua intentona messiânica.

*Luiz Carlos Checchia é doutor em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades pela FFLCH-USP.


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