Bruno Pereira e Dom Philipps

Imagem: Fiadam Nazin Qisi
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Por LUIZ WERNECK VIANNA*

O Brasil é concebido como um território ocupado por forças que lhe são estranhas, empenhadas em destruir os fundamentos da sua civilização

Num ponto extremo da Amazônia, em fronteira com o Peru, o misterioso desaparecimento de um indigenista brasileiro e de um jornalista inglês, até então inexplicável, ambos apaixonados pela região, tira do foco da conjuntura o processo eleitoral e assesta a viseira em cheio para o teatro real em que se move o capitalismo brasileiro em busca de uma expansão de suas fronteiras para novas formas de acumulação como na mineração e na ampliação de novas oportunidades para madeireiras e da pesca ilegal, que, na prática, se acham cumpliciadas com crime organizado que campeia na região pelo tráfico de drogas.

Aí se desvela o caráter encapuzado da ação do governo, pondo-se a nu sua natureza predatória, sua agenda anticivilizatória e adversa aos valores cultivados por nossas melhores tradições, muitas delas consagradas constitucionalmente, na medida em que por omissão deliberada na repressão às ilegalidades e aos crimes ali praticados favorece a sua multiplicação. O Brasil é concebido como um território ocupado por forças que lhe são estranhas, empenhadas em destruir os fundamentos da sua civilização e assentar sobre suas ruinas um capitalismo sem freios e excludente da sua população entregue à sua própria sorte.

Decerto o episódio que envolve o paradeiro desses dois exploradores amazônidas ainda é incerto, embora suspeitas assustadoras pairem sobre seu destino, mas de qualquer forma se está diante de um fato revelador das políticas nocivas levadas a cabo pelo governo Bolsonaro no sentido de abrir caminho à penetração orquestrada de negócios escusos no coração da Amazônia tratada como um faroeste sem lei sob controle de aventureiros em busca da fortuna.

Na região se patenteia nos seus traços fortes o projeto Bolsonaro de remodelar o país pelo padrão neoliberal de confiar os rumos do país a um capitalismo vitoriano diante de um Estado absenteísta especializado na pura intervenção coercitiva sobre seus cidadãos a velar para os fins de preservar a lei das selvas. O dogma de Margareth Thatcher, de que não existe essa coisa chamada de sociedade, rejeitado em seu país natal, torna-se aqui palavra de ordem.

O projeto de capitalismo autoritário, esgotado nos quarteirões lustrosos da Faria Lima e adjacências, procura seiva nova nas paragens amazônicas submetida às investidas contra suas florestas e suas populações autóctones com furor genocida para os fins de mais um movimento expansivo da acumulação capitalista. Nesse propósito, desencadeia-se uma sorte de guerra de guerrilha, pilotada de longe pelos agentes do projeto bolsonarista, levada a cabo por aventureiros com biografias dedicadas ao crime que dirigem em bandos armados as invasões das terras indígenas e expropriam seus recursos naturais como a floresta, a pesca e a caça, malbaratando suas terras com práticas deletérias de mineração.

A pretexto da defesa da soberania nacional na Amazônia confia-se o destino da estratégica região à cupidez de negócios e ao afã pela riqueza fácil de homens sem eira nem beira, devolvendo à vida a tragédia da colonização do continente americano. Dos amazônidas contra essa máquina de guerra orientada à sua destruição sob beneplácito do governo atual, surgem resistências, especialmente dos seus novos intelectuais, muitos deles descendentes dos povos originários, já identificados com o significado da defesa da Amazônia em termos planetários, e capazes de estabelecer interlocução direta com a opinião pública mundial assim como com as suas populações autóctones.

Bruno Pereira e Dom Philipps, com histórias e trajetórias de vida, distintas que o amor comum pela natureza amazônica aproximou, defensores da integridade da região e de suas populações, como é sabido, estão desaparecidos há dias sem que se saiba o destino deles. O fato é que saíram em missão investigativa numa singela embarcação, motivados pelo zelo de apurar malfeitos que em relatórios já tinham apurado e que agora são de conhecimento público.

Conhecedores daquelas inseguras vias de comunicação fluvial, a possibilidade de que se tenham se perdido é remota, e com o passar dos dias afirmam-se como prováveis as hipóteses de que tenham sido vítimas de um crime. De quem é o que se pergunta, e todos os olhos se voltam para o que é a suspeita de todos, como sempre camuflado embora qual na história do gato deixe o rabo de fora.

*Luiz Werneck Vianna é professor do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Autor, entre outros livros, de A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Revan).

 

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