Carta a uma amiga palestina

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Por TADEU VALADARES*

Considerações a partir do artigo de Vladimir Safatle

“Era para ter sido melhor que os outros o nosso século XX./Agora já não tem mais jeito,/os anos estão contados,/os passos vacilantes,/a respiração curta./Coisas demais aconteceram,/que não eram para acontecer,/e o que era para ter sido/não foi.” (Wislawa Szymborska, Ocaso do século).

Querida M.,

Muito obrigado pelo envio do curto ensaio do Vladimir Safatle, “Usar a força contra a força”. V. sabe, gosto muito de ler o Safatle, pensador que admiro. Suas formulações, sempre estimulantes. A elegância da escrita, invariável prazer de leitura. Com esse texto, foi também assim.

Não se espante, M., mas para mim o Safatle tem um quê do jovem Marx, do estudante de direito na Universidade de Berlim, do destacado participante, a partir de 1838, do Clube dos Doutores, pequeno grupo de hegelianos de esquerda. Para mim, um e outro são movidos pela mesma paixão essencial. Neles podemos ver paixão e filosofia refinadamente articuladas, dialeticamente tensionadas e, junto com elas, a busca dos meios que permitiriam deixar para trás a miséria histórica gerada e mantida pelo capitalismo.

No caso do jovem Karl, que então, que nem eu hoje, pouco sabia de economia clássica, tratava-se de superar a miséria política alemã encarnada no reacionarismo do Estado prussiano. No caso do maduro Vladimir, trata-se, a meu ver, de buscar as raízes que sustentam a nossa miséria para melhor iluminar nossos dilemas atuais, para melhor compreender a realidade presente, para agir eficazmente na conjuntura, isto é, agir sem ilusões.

Ele, plenamente consciente de que a miséria que nos oprime hoje é tão velha quanto a nossa história; que o presente está indelevelmente marcado pelo peso terrível da herança colonial escravista que, atualizada, continua conosco. Porque é assim, penso não ser infiel a Safatle se lhe digo, M., que no limite poder-se-ia talvez afirmar que a estrutura e a dinâmica das transformações do Brasil como estado juridicamente independente desde 1822 continuam conosco, por mais metamorfoseadas que estejam.

Ou seja, o que nos trava hoje é o que nos conformou no travejamento escravocrata da origem, o mundo construído pelos portugueses, a miséria que não foi efetivamente deixada para trás. Quantas mudanças ocorreram desde então, quantas atualizações dos sistemas de exploração econômica conjugadas às reformas das estruturas de dominação. Sistemas e estruturas que se renovaram, tal como escrito por di Lampedusa, para assegurar o essencial permanecer. História, portanto, como sucessivas formas renovadas do mesmo que por isso também é outro. Se pensamos apenas no Brasil República, quem sabe certos anos tenham o condão, em conjunto, de apontar fieira de avatares: 1889, 1922, 1930, 1937, 1945-1946, 1950, 1954, 1964, 1988, 2002, 2013, 2016, 2018 e agora.

Cheguemos, então, com essa moldura em mente, ao Safatle de “Usar a força contra a força”.

O artigo, M., como tudo o que li de Safatle, é agudo ao extremo, preciso exercício crítico-esclarecedor, fulgurante texto de combate. Funciona como poderoso alerta contra perigos que parte grande da esquerda brasileira ou desconhece ou minora. Não poderia, portanto, ser mais oportuno. Ainda assim, ou por isso mesmo, ao final da leitura entendi o ensaio como manifestação de voluntarismo altamente refinado, longamente refletido, algo na linha do “encore un effort pour être révolutionnaire”. Voluntarismo, querida M., que talvez seja a marca distintiva do filósofo, ativista político, músico, intelectual público e exímio polemista.

O diagnóstico por ele elaborado, fascinante, coerente e mobilizador. O texto se move em vários registros, desde o histórico até o psicológico social. No entanto, como arma que é, se centra na conjuntura política que se mostra para nós todos, desde ao menos outubro passado, período singularmente carregado de expectativas, perigos e angústias. A análise, cortante. As críticas, valiosas.

Ainda assim, as duas propostas de ordem prática, enunciadas pelo autor com vistas a assegurar mudança qualitativa de nossa situação precária, me parecem ser antes problemas acrescidos do que soluções encontradas. A primeira, a dissolução das polícias militares, por não serem polícia de Estado, mas sim facção armada. A segunda, afastar de imediato os mais altos comandantes das três Forças Armadas, passá-los para a reserva.

“Alguns podem achar tais proposições irrealistas’, adianta Safatle. Concordo com ele e me vejo fazendo parte dos ‘alguns’. Ambas as proposições ou propostas, se lidas num registro realista – vai ver que demasiado estreito e convencional (será?) diante das urgências do momento – me soam divorciadas do jogo de forças que caracterizará, talvez, todo o terceiro mandato de Lula presidente. Isso, apesar do refluxo bolsonarista que estamos vendo e apreciando nos dias mais recentes, as manifestações do último 11 de janeiro havendo sido pífias.

Sei que alguns podem achar que simplifico brutalmente, que especulo sem base segura. Mas tenho para mim que desde a vitória de Lula no primeiro turno, vitória um tanto frustrante, começamos a ingressar numa, vá lá, realtà effetuale algo distinta. O impulso insuficiente, gerado no primeiro turno, no segundo tornou-se vitória no fio da navalha, a um só tempo mínima e gigantesca. O ânimo nosso, energizado a tal ponto que transformou o primeiro de janeiro numa catarse emocionante, democrático-popular. A festa foi tão grande que, para muitos, agiu como usina de ilusões. Fabricou a ideia de que os problemas estavam superados, de que o país voltava à normalidade – o que quer que isso signifique –, de que a história de nossos fracassos, que vem de junho de 2013, quando menos, havia sido definitivamente corrigida. Ou quase.

Dia 8, o da infâmia, lição de realidade abismal para todos os Soderini e Candide brasileiros, havidos e por haver. Auge, até agora, da barbárie neofascista que se fortaleceu ao longo dos últimos nove anos e, pior, prova de que essa barbárie, por haver deitado raízes profundas no campo do povo, será difícil extirpar. Difícil porque, todos sabemos, as raízes vão muito além de seu elemento bolsonarista. São muito mais do que a tropa de choque. São cultivos que juntaram muitas sementes, são o resultado de uma operação de classes e frações que têm o poder de afetar todo o corpo social.

M. querida, v. sabe, sou apenas um leitor que, combatendo a idade, tenta ser atento. Não sou cientista social, nem historiador e muito menos filósofo. Posso estar, portanto, redondamente equivocado em meu “sentimento de mundo” que remete, muito mediatamente, para uma certa concepção de história. Mas estimo que as duas proposições de caráter prático-superador, formuladas por Safatle, deixam distante o realismo, sim, em favor do que Jean Paul Dollé chamou “le désir de révolution”.

Daí que ambas as proposições não tenham como ser adotadas pelo único ator capaz de assumir esses gestos, o presidente Lula. Arrisco afirmar que não serão adotadas agora, no início do governo, a despeito de o chefe do executivo estar no ápice de seu poder, até mesmo em decorrência do 8 de janeiro e das reações da sociedade civil, dos outros dois poderes constitucionais, dos governadores dos 26 estados e da governadora interina do Distrito Federal, sem falarmos na grande mídia…

Impossível, também, adotá-las mais tarde, creio, porque o ápice é ápice exatamente por ser transitório. O que vem pela frente, sendo o governo de Lula e Geraldo Alckmin a resultante da construção da frente amplíssima, não pode deixar de ser um processo de relativo desgaste do executivo, cuja maior ou menor intensidade acompanharemos ao longo de quatro anos, salvo improvável êxito governamental próximo ao absoluto, o que não está nas cartas do nosso baralho.

M. não quero confundi-la: as duas propostas são corretas, vistas de um ponto de vista lógico. Mas a mim parecem demasiado abstratas porque lhes faltam as mediações que assegurariam sua transposição do plano intelectual propositivo à esfera da ação prática. Essa defasagem, se não é fabulação minha, se de fato existe, é o que na minha ótica impossibilita, no curto prazo de dias ou semanas, e mais ainda no tempo de duração constitucional do governo, sua adoção por Lula-Alckmin.

Para que fossem operacionalizadas de imediato, como sugerido, entendo, por Safatle, ou mesmo bem mais adiante, o clima e as expectativas criadas desde o início da campanha eleitoral, reforçados no dia primeiro de janeiro, teriam de ser totalmente diferentes. Outras, também, nossa margem jurídico-constitucional de atuação, nossa força em termos político-partidários, nossa influência ideológica no mundo do trabalho, na sociedade civil e no interior do estado como aparelho de direção, transformação e coerção. Igualmente outras, nossa capacidade de mobilização social permanente e de por essa via exercitar o que nos escapa, a hegemonia tanto político-partidária quanto sindical e estudantil, para ficar só no que poderíamos formalmente considerar forças de vanguarda da esquerda.

Se a situação fosse essa – essa que não é –, então sim, haveria como ir além do mais exigente registro teórico-político-crítico, transformá-lo em prática democrático-revolucionária. Esse mesmo registro é o que no limite arrisca esvaziar-se, em vez de ganhar força, caso se distancie demasiado das demandas populares conjunturais, em grande ou na sua maior parte explicitadas ao longo da campanha eleitoral passada. A teoria, disso quanto mais orgânicos são os intelectuais tanto mais sabem, pode ser plena ou vista como tal. Mas a capacidade de transmutá-la em prática(s) pode vir a ser insuficiente em cada conjuntura, e mesmo em tempos mais longos. Certo, às vezes 10 dias abalam o mundo. Mas só às vezes.

Essa distância entre intenção e gesto, e todos os riscos dela decorrentes, também se alimenta de fato incontornável: o que vivemos com a vitória de Lula-Alckmin por margem pequena é a cuidadosa remontagem, exaustivamente negociada “con los de arriba”, de um projeto socialdemocrata de corte clássico; projeto que se alimenta de várias referências/experiências europeias e americanas (norte, centro e sul…) de construção de Estados de bem-estar social. Todas elas, diga-se de passagem, enfrentando dificuldades maiores ou menores, sinais fortes de possível esgotamento, superável ou não, do modelo que veio da Europa do pós-Segunda Guerra e se encarna hoje, bastante debilitado, em todas as suas principais variantes, sejam elas europeias ou não.

Mas convém não olvidar: esse relançamento ‘aggiornato’ de um processo reformista criminosamente golpeado seis anos atrás tem grande lastro, o acúmulo de acertos e erros produzido por 14 anos de governos petistas. Nesse contexto, não creio exagerado afirmar que tal esforço, que se autoproclama ideologicamente civilizatório, está sendo muito bem encaminhado por Lula. Mais ainda: queiramos ou não, é esse renovado intento de modernização capitalista num grande país periférico, legitimado, na retórica e no real, por tantas políticas progressistas de justiça social redistributiva, o que estará essencialmente em jogo até final de 2026. Salvo surpresa histórica, não necessariamente positiva.

Em outras palavras, os resultados alcançados no ciclo petista anterior estão sendo cuidadosamente reexaminados, transformados, hegelianamente conservados. Os defensores dessa singular Aufhebung tropical naturalmente não querem ser apenas um governo. Querem ser o início de novo ciclo. Querem mais: na órbita das ambições maximalistas, não querem ser governo nem ciclo, mas sim espiral que, ao se desenrolar por tempo longo, termine por nos levar ao ‘mundo dos desenvolvidos’.

O Jovem Marx decerto se perguntaria: qual o sentido disso? Safatle, imagino, também. Eu, decerto. De toda forma, no âmbito prático imediato, o futuro, seja medido em quatro anos ou em anos mais, dependerá do desempenho do governo “frente amplista”, ele próprio sobrecarregado de germes de dissenso e de conflitos que já começam a transparecer. Alguém se surpreende?

Para mais, amiga M., o perigo neofascista não esmaecerá, o ponto de inflexão nem de longe foi alcançado. O ponto de inflexão, se vier a ocorrer, só se dará num prazo tão longo que, para os de minha geração, está fora de alcance. O neofascismo brasileiro é belonave que seguirá sua fanática derrota até o naufrágio total que, tenho fé, eu, incréu, não se resumirá ao sentido naval do termo.

Esse projeto de tomada do poder, de destruição de todo tipo de democracia, de transformação de um povo em construção em massas de escravos de negreiros pós-modernos, continuará a ser, com os ajustes mínimos indispensáveis, o que é desde sua origem no integralismo: projeto miserável, forte, selvagem, ululante, maciço, mortalmente perigoso. Estou certo de que no curto prazo, concluído o período de ajustes internos de contas entre os chefes mafiosos, e passado o relativo recolhimento a que se submeterão suas lideranças e seus militantes em decorrência da corrente de fracassos recentes, os bolsonaristas e seus aliados tentarão voltar ao Planalto ‘por la fuerza o por la fuerza’. Adapto o lema chileno, tão mais direto do que o nosso, parcialmente ‘comteano’.

Em contraposição, todos e todas que não somos nem gado nem avestruzes percebemos quão problemática será a situação nossa tanto no plano interno quanto no internacional.

No plano internacional, o Brasil tem como sua realidade circundante não apenas a América do Sul, mas o mundo planetariamente entendido. A miséria brasileira, cabalmente denunciada por Safatle, se entrelaça com o curso real do mundo, tão valorizado por Hegel. Curso real e mundo real, nem tão Hegel assim, são as nossas circunstâncias.

Há mais de quatro décadas vivemos, os que éramos quatro bilhões em 1980 e hoje somos mais de oito, longo período de crise geral. História de longa duração caracterizada por crise geopolítica, acentuada a partir da dissolução da URSS e do ataque às torres em Nova Iorque; crise geoeconômica, marcada desde ao menos 2007/2008 pelos sucessivos “crashes’ neoliberais; crise de transição, dada a ascensão chinesa, de um tipo de ator hegemônico para outro numa ordem internacional ela também em crise; crise de transformação do sistema  internacional; crise de reestruturação do capitalismo global que afeta tanto o que os russos chamam de ‘Ocidente coletivo’ quanto a Eurásia de Putin, Xi e Modi. Crise de caráter ambiental, o catastrófico ponto de não retorno se aproximando, tornando-se potencialmente alcançável ainda neste século.

Nós, Brasil, explorando caminhos nessa selva selvagem, esperando que eles não desapareçam no âmago da floresta. Nós, sabendo que por nosso próprio peso, e pelo que representamos para a América do Sul e até mesmo para a América Central e México, temos condições de formular e exercer uma política externa (relativamente) autônoma, ainda que menos assertiva, talvez, do que a do anterior ciclo petista. As circunstâncias são outras…

A “nova Guerra Fria”, ambíguo processo que começou a se desenhar com mais clareza desde 2014, promete submeter países como o nosso a teste crucial: há que saber resistir a pressões ‘tous azimuts’, tanto no plano multilateral quanto bilateral, tanto no plano regional latino-americano quanto global. A mais perigosa delas, sem dúvida e em todos os planos, a pressão multifacetada que virá de Washington, continuem ou não os democratas na chefia do executivo, dois anos mais. Indispensável sermos nós mesmos, mas sem por isso perdermos as oportunidades de comércio, investimento e cooperação amplamente entendidas, as que se revelem claramente benéficas para nós. ‘Easier said than done’.

Tantas crises afinal conformam uma só, M., amiga. Sua dinâmica complexa aponta para a expansão de uma estrutura mais ou menos coerente, mais e mais desequilibrada, cada vez mais desafiadora. Estrutura da qual fazem parte elementos submetidos a formas e ritmos próprios. Estrutura que é charada. Dinâmica “elementar” sempre surpreendente.

O que parece claro: a dimensão conflitiva do sistema internacional tende a prevalecer brutalmente sobre a cooperativa. Ilustração forte dessa tendência, a guerra na Ucrânia, sua dimensão existencial tanto para a Ucrânia quanto para a Rússia. E as consequências mais preocupantes para todos nós, o mês a mês aumentados riscos de guerra geral europeia em que o uso de armas convencionais pode se revelar insuficiente, o que abriria a janela para o uso de armamento nuclear, tático ou estratégico.

Tal é o estado do mundo. Tal é o estado do nosso país. Tal o estado de coisas, ainda não concluído o primeiro quarto do século. Szymborska…

Abraço carinhoso, M.

*Tadeu Valadares é embaixador aposentado.

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