Por EUGÊNIO BUCCI*
Tudo muda de figura quando um poder externo à esfera jornalística, o Judiciário, chama para si a autoridade de responsabilizar um órgão de imprensa por afirmações de terceiros
Todo governo, por melhor que seja, precisa ter no seu encalço uma imprensa livre, ainda que falível. Mesmo que o governante cultive as melhores intenções do mundo durante as 24 horas do dia, mesmo que ele nunca esbarre num conflito de interesses, mesmo que não tenha parentes incômodos, mesmo que esteja a um passo da santidade, a atuação de redações independentes e críticas, mesmo que elas tropecem e errem, vai lhe fazer bem – porque vai fazer bem à sociedade.
É o óbvio, não é? Para que uma democracia trafegue em trilhos seguros, o poder do Estado há de ser fiscalizado pela sociedade e, sem repórteres profissionais, nenhuma sociedade fiscaliza poder nenhum. Estamos falando aqui de um princípio elementar, básico, de evidência clamorosa, um princípio sobre o qual não deveria haver dúvidas. Não obstante, esse ponto singelo – e mortal – não foi ainda bem compreendido por uma considerável multidão de autoridades brasileiras.
Agora mesmo, no início do mês, o jornal O Estado de S. Paulo foi vítima de uma medida do Poder Judiciário que restringiu indevidamente sua liberdade. Segue aqui um resumo.
No dia 6 de dezembro, o juiz José Eulálio Figueiredo de Almeida, da 8ª Vara Cível do Maranhão, mandou suprimir duas reportagens do jornal O Estado de S. Paulo que relataram de modo preciso e objetivo a concessão, pelo Ministério das Comunicações, de retransmissoras de TV a uma emissora ligada ao grupo político do titular da pasta, Juscelino Filho. Na mesma sentença, o magistrado determinou que os repórteres se retratassem por ter publicado “informações falsas” e, em tom aconselhador, ainda asseverou: “ainda quando seja verdadeira a notícia, esta deve ser divulgada sem exageros, sem embustes, sem tendenciosidade e sem afronta”.
O sufoco durou pouco, ainda bem. Dois dias depois, o ministro do Supremo Tribunal Federal Cristiano Zanin restabeleceu a normalidade e devolveu a liberdade ao jornal O Estado de S. Paulo. Desta vez foi rápido, mas, no passado, houve episódios mais traumáticos e mais difíceis de desafazer. Em 2009, o jornal O Estado de S. Paulo foi proibido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) de publicar informações sobre a Operação Boi Barrica, uma investigação policial que envolvia o empresário Fernando Sarney, filho do ex-presidente José Sarney.
Naquela ocasião, a censura durou mais do que 48 horas: persistiu por 3.327 dias. Somente em 2018 o ministro do STF, Ricardo Lewandowski, derrubou a medida. Na decisão restauradora de direitos, ele lembrou que, em julgamento de 2009, o STF garantiu “a plena liberdade de imprensa como categoria jurídica proibitiva de qualquer tipo de censura prévia”. Ricardo Lewandowski lembrou, mas, até hoje, muitas autoridades esquecem.
Às vezes, as autoridades descuidam da liberdade. Em decisão recente, com nove votos a favor e apenas dois contrários, os ministros estabeleceram que as empresas jornalísticas podem ser chamadas a responder por declarações de entrevistados, num entendimento que não coaduna com a melhor tradição brasileira. Segundo o jurista Ronaldo Porto Macedo Junior, em artigo no jornal O Globo, em primeiro de dezembro, foi uma decisão “preocupante e equivocada”.
Deve-se reconhecer, como fizeram alguns grandes diários brasileiros, que o jornalismo profissional tem o dever de aferir, em seus procedimentos rotineiros, se as declarações das pessoas que entrevista não atentam contra a verdade. Mas essa postura faz parte da deontologia da profissão, ou seja, decorre não de uma imposição estatal, mas de um compromisso autônomo, voluntário, por meio do qual a redação independente assegura a qualidade do que leva ao público e protege a sua própria credibilidade. As boas redações agem assim por vontade própria, porque seguem cânones éticos rigorosos.
Tudo muda de figura quando um poder externo à esfera jornalística, o Judiciário, chama para si a autoridade de responsabilizar um órgão de imprensa por afirmações de terceiros. O risco que se abre é imenso. Como os pequenos veículos sobreviverão à avalanche de processos que certamente virão? O que fazer, por exemplo, se, numa emissora de rádio, ao vivo, um entrevistado enunciar uma inverdade? A empresa terá de pagar por isso? Há ainda perguntas sem respostas.
Em artigo publicado na Folha de S. Paulo no dia 3 de dezembro, a advogada Taís Gasparian, uma das mais respeitadas especialistas em liberdade de imprensa no Brasil, chamou de “labiríntica” a tese abraçada pelo STF nesse caso. O adjetivo procede. A partir de agora, por sendas sinuosas, traiçoeiras e um tanto imprevisíveis, virão por aí ações judiciais que, independentemente do resultado, infernizarão especialmente os pequenos órgãos de imprensa.
Por essas razões, ao dar alcance geral a um julgamento que deveria se restringir a uma causa isolada e atípica, o STF abriu uma porteira perigosa. Não se trata de censura, é verdade, mas essa medida poderá provocar uma onda de medo autocensura dentro das redações. A ver.
*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica).
Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.
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