China – qual socialismo?

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ELIAS JABBOUR*

Considerações sobre a natureza da formação econômico-social chinesa.

A natureza do processo de desenvolvimento chinês por si é motivo de imensas e apaixonadas polêmicas, sendo a principal delas a que se refere à natureza de sua formação econômico-social. Socialismo ou capitalismo. Não seria demais advertir que a colocação da questão nestes termos não tem sentido marxista, pois se remete mais ao “princípio da identidade” de Kant do que à “correlação múltipla dos fenômenos”.

Uma realidade não é capitalista ou socialista à priori. Ela é fruto da combinação de diferentes modos de produção coetâneos, mas não contemporâneos dando forma e conteúdo a formações sociais específicas. O socialismo de mercado chinês, a nós, seria uma tipologia nova de formações econômico-sociais.

Tomar a realidade partindo deste nível de abstração demanda visão de processo histórico como antídoto aos famosos “check-lists” positivistas que encerram a velha mania da ciência social ocidental (incluindo os influenciados por Marx) de buscar classificar e organizar critérios para todo fenômeno diante de si. O contrário seria o correto: o conceito se realiza no movimento real. Neste sentido não seria nenhum exagero afirmar que a China, e o movimento que seu processo de desenvolvimento encerra, acumula material suficiente para voltarmos a problematizar o socialismo em termos dialéticos, por dentro do real e não como um ideal abstrato.

No fundo a questão não é refazer o que Marx (não) fez quando o assunto é socialismo. O problema é encontrarmos a forma histórica presente mais próxima daquilo que ele definiu um dia como socialismo (superação da divisão social do trabalho, abolição das classes e da propriedade privada). O preço a se pagar politicamente por se fixar em arquétipos é muito alto.

É o preço de se esquivar diante da realidade que devemos transformar. O que na verdade os comunistas chineses estão conseguindo com muita capacidade. De país mais pobre do mundo em 1949 ao fim da pobreza extrema em um país com as peculiaridades geográficas e diferenciais regionais de produtividade não é algo qualquer. Talvez seja o maior feito da história humana em séculos. Fruto de uma força política chamada Partido Comunista e que reivindica a si o comando de um processo que eles dão o nome de socialismo.

Voltando à questão da natureza da formação econômico-social chinesa. O critério primário para isso é o poder político. Encontrar alguma formação econômico-social onde o poder político está comprometido e dispõe dos elementos essenciais para alcançar determinados objetivos. Poder político não se exprime em “novas relações sociais de produção”. Poder político se exprime em novas relações de propriedade. O banimento de Hegel no ocidente levou a uma apropriação utopista do marxismo feita por acadêmicos e marxistas ocidentais. Ao colocar o pensamento à frente da matéria, percebe-se que uma nova sociedade já nasce sob bases próprias, ou relações sociais avançadas na primeira hora. Quando na verdade a grande questão é a base material que serve de suporte ao poder político.

Trata-se de uma forma sútil de negar a política e se refugiar no “ardil do conceito” hegeliano. Novas relações sociais não surgem fora dos marcos da propriedade pública e essa propriedade deve ter um grau de produtividade do trabalho maior que a propriedade privada. O próprio Marx nos adverte sobre o fato de novas relações sociais não surgirem sem antes as forças produtivas que a sustentam não terem se esgotado. Do ponto de vista político impor relações sociais novas em forças produtivas inexistentes abre campo à reação e ao fascismo. Mas esse é um outro ponto, do qual poderemos nos concentrar em outro momento tamanha a sua importância.

Muitos dos problemas do socialismo decorrem desta forma equivocada, tomando a nuvem por Juno. O papel do poder político de novo tipo é elevar o grau das forças produtivas, montar uma muralha de aço para sua autodefesa. As relações de produção têm relação de efeito a este movimento. Trata-se de pontos interessantes para começar a pensar a China como uma gigantesca experiência socialista.

Por exemplo, por que não pensar na grande empresa ou corporação empresarial estatal mediada e voltada para grandes tarefas postas pelo Partido Comunista como uma interessante forma histórica de propriedade? E como caracterizar uma formação econômico-social onde o núcleo da economia é este tipo de propriedade (no caso chinês, 96 conglomerados empresariais estatais)?

E onde é este tipo de propriedade a geradora dos ciclos de acumulação na economia em oposição às formações econômico-sociais de tipo capitalista onde o Estado induz, mas é o setor privado o gerador destes ciclos? As possibilidades abertas por um poder exercido pelo Partido Comunista baseado na grande produção e finanças estatais não seria uma forma histórica orientada a superação de antigas formas, baseadas na grande propriedade privada? Ou nos refugiaremos no “super-trunfo” para quem os problemas do socialismo se resolvem, à priori (nada positivista…) com “poder operário” e “democracia”?

Nos últimos 20 anos a China construiu cerca de 40 mil quilômetros de trens de alta velocidade. Ao lado disso tecnologias disruptivas (plataforma 5G, Big Data e Inteligência Artificial) surgidas no seio dos grandes conglomerados empresariais estatais elevaram em demasia a capacidade de planificação do Estado chinês. Em outras palavras: elevou-se a capacidade humana de intervir na natureza, o que significa mudança qualitativa no modo de produção dominante àquela formação econômico-social com o surgimento de novas regularidades a serem decifradas pela ciência social moderna. A China, literalmente, arrasta para frente a fronteira das ciências humanas e sociais.

Pensar em termos científicos a formação econômico-social chinesa passa necessariamente pela apreensão do fato de diferentes modos de produção coabitarem em uma verdadeira unidade de contrários. O socialismo enquanto forma histórica que se realiza na grande propriedade pública e na planificação em nível superior não está alheios às contradições de ordem capitalista que por ali coexistem. Fetiche da mercadoria, consumismo, surgimento de bilionários e precarização do trabalho são fenômenos reais, não imaginários.

Talvez são estas contradições que servem de motor ao surgimento de novas soluções políticas e econômicas a determinadas questões. A elevação da regulação estatal sobre as fintechs e a aceleração de compras de ativos de empresas privada pelo Estado não demonstra somente ação política. Em movimento significa o próprio surgimento de novas formas históricas de propriedade não previstas em nenhum manual.

Finalizando esta breve discussão, fica uma questão e uma breve resposta. Qual a forma histórica correspondente ao socialismo em nosso tempo apontada pela experiência chinesa? Não tenho dúvidas que a elevação da capacidade de planificar a economia e basear a planificação no sentido de elaborar e executar grandes projetos pode ser a chave que nos encaminhe para um socialismo que tem na razão uma forma histórica em oposição à irracionalidade capitalista. Não estaríamos ressuscitando o velho Ignacio Rangel e observando na China o surgimento de uma “Nova Economia do Projetamento”? O projeto de uma ponte, viaduto ou milhares de linhas de trens de alta velocidade não passam de uma operação contábil ou em sua essência não estaria a realização do socialismo enquanto transformação da razão em instrumento de governo?

O socialismo é uma ciência. E como ciência devemos encará-lo. Ou não?

*Elias Jabbour é professor dos Programas de pós-graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ. Autor, entre outros livros, de China Hoje – Projeto Nacional Desenvolvimento e Socialismo de Mercado (Anita Garibaldi).

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
José Luís Fiori Fernando Nogueira da Costa Michael Löwy Ari Marcelo Solon Marcus Ianoni Henri Acselrad João Carlos Salles Eleonora Albano Matheus Silveira de Souza Luiz Bernardo Pericás Lincoln Secco Claudio Katz Alysson Leandro Mascaro João Adolfo Hansen Valerio Arcary Marcelo Guimarães Lima Fábio Konder Comparato Bernardo Ricupero Daniel Costa Osvaldo Coggiola Igor Felippe Santos Daniel Brazil Samuel Kilsztajn Mário Maestri Gerson Almeida Airton Paschoa Alexandre de Freitas Barbosa Ricardo Fabbrini Paulo Sérgio Pinheiro Armando Boito Eleutério F. S. Prado Jean Marc Von Der Weid Andrew Korybko Benicio Viero Schmidt Dennis Oliveira Priscila Figueiredo João Sette Whitaker Ferreira Mariarosaria Fabris Jorge Branco Anselm Jappe Gilberto Maringoni Gilberto Lopes Marjorie C. Marona Yuri Martins-Fontes Manuel Domingos Neto Érico Andrade Rodrigo de Faria Andrés del Río Atilio A. Boron Remy José Fontana José Dirceu Walnice Nogueira Galvão José Machado Moita Neto Paulo Nogueira Batista Jr Berenice Bento Julian Rodrigues Rubens Pinto Lyra Leda Maria Paulani Ricardo Musse Juarez Guimarães Manchetômetro Daniel Afonso da Silva Luiz Carlos Bresser-Pereira Celso Favaretto Antonio Martins Paulo Martins Marilena Chauí Everaldo de Oliveira Andrade Kátia Gerab Baggio Francisco Fernandes Ladeira Alexandre de Lima Castro Tranjan Flávio R. Kothe Thomas Piketty Antônio Sales Rios Neto André Márcio Neves Soares Eduardo Borges Annateresa Fabris Bruno Fabricio Alcebino da Silva Carlos Tautz Henry Burnett Bento Prado Jr. Marcos Aurélio da Silva Leonardo Boff Afrânio Catani Vladimir Safatle Celso Frederico Bruno Machado Elias Jabbour Leonardo Avritzer Fernão Pessoa Ramos Marilia Pacheco Fiorillo Leonardo Sacramento Luís Fernando Vitagliano Luiz Marques Antonino Infranca Luiz Werneck Vianna Luis Felipe Miguel Jean Pierre Chauvin João Lanari Bo Plínio de Arruda Sampaio Jr. Boaventura de Sousa Santos Caio Bugiato Denilson Cordeiro Dênis de Moraes Gabriel Cohn Paulo Capel Narvai Heraldo Campos Francisco Pereira de Farias Lucas Fiaschetti Estevez Tadeu Valadares José Geraldo Couto Maria Rita Kehl Slavoj Žižek Salem Nasser Chico Whitaker Eugênio Bucci Luiz Eduardo Soares Otaviano Helene Sergio Amadeu da Silveira Ricardo Abramovay Marcos Silva Michel Goulart da Silva Ronald León Núñez Michael Roberts Liszt Vieira Ronald Rocha Eugênio Trivinho Luiz Roberto Alves João Paulo Ayub Fonseca Alexandre Aragão de Albuquerque Anderson Alves Esteves João Carlos Loebens José Raimundo Trindade José Micaelson Lacerda Morais Flávio Aguiar José Costa Júnior Tarso Genro Tales Ab'Sáber Luciano Nascimento Renato Dagnino Ladislau Dowbor João Feres Júnior Eliziário Andrade Ronaldo Tadeu de Souza André Singer Marcelo Módolo Vanderlei Tenório Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Ricardo Antunes Sandra Bitencourt Carla Teixeira Francisco de Oliveira Barros Júnior Rafael R. Ioris Lorenzo Vitral Vinício Carrilho Martinez Paulo Fernandes Silveira Chico Alencar Jorge Luiz Souto Maior Milton Pinheiro Luiz Renato Martins

NOVAS PUBLICAÇÕES