Ciências Sociais: na ótica do intelectual militante

Imagem: ColeraAlegria
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Por FLORESTAN FERNANDES*

Eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o meu passado e sem a socialização pré e extra-escolar que recebi através das duras lições da vida. Para o bem e para o mal — sem invocar-se a questão do ressentimento, que a crítica conservadora lançou contra mim — a minha formação acadêmica superpôs-se a uma formação humana que ela não conseguiu distorcer nem esterilizar. Portanto, ainda que isso pareça pouco ortodoxo e antiintelectualista, afirmo que iniciei a minha aprendizagem sociológica aos seis anos, quando precisei ganhar a vida como se fosse um adulto e penetrei, pelas vias da experiência concreta, no conhecimento do que é a convivência humana e a sociedade em uma cidade na qual não prevalecia a ordem das bicadas, mas a relação de presa, pela qual o homem se alimentava do homem, do mesmo modo que o tubarão come a sardinha ou o gavião devora os animais de pequeno porte. A criança estava perdida nesse mundo hostil e tinha de voltar-se para dentro de si mesma para procurar nas técnicas do corpo e nos ardis dos fracos os meios de autodefesa para a sobrevivência. Eu não estava sozinho. Havia a minha mãe. Porém a soma de duas fraquezas não compõe uma força. Éramos varridos pela tempestade da vida e o que nos salvou foi o nosso orgulho selvagem, que deitava raízes na concepção agreste do mundo rústico, imperante nas pequenas aldeias do norte de Portugal, onde as pessoas se mediam com o lobo e se defendiam a pau do animal ou de outro ser humano.

Há pouco interesse em descrever a variedade de ocupações a que precisei dedicar-me ou as venturas e desventuras que pontilharam uma infância e uma adolescência tão marcadas pela necessidade de ganhar a vida, de buscar no trabalho — por vezes humilhante e degradante — um instrumento de relação com os outros e de pressão sublimadora. Fazendo o que me via forçado a fazer também era compelido a uma constante busca para vencer uma condição em que o lumpen-proletário (e não operário) definia os limites ou as fronteiras do que não era gente. Antes de estudar esse processo na pesquisa sobre o negro, vivi-o em todos os matizes e magnitudes. A fronteira que me era negada também era conhecida pela experiência concreta. Na casa da minha madrinha Herminia Bresser de Lima, onde vivi durante uma parte da infância, ou ocasionalmente ia passar alguns dias; e na casa de outros patrões de minha mãe, entrei em contato com o que era ser gente e viver como gente. Além disso, através das várias ocupações, morei na casa de empregadores uma família negra, outra italiana e, parcialmente, uma família sírio-libanesa. Em suma, do tradicional ao moderno, do nacional ao estrangeiro, dei-me conta de quão grande e complexo era o mundo, e que nada me forçava a encerrar-me no confinamento dos porões, dos cortiços e dos quartos de aluguel em que morava com a minha mãe. Por fim, a mobilidade imposta pelos empregos da minha mãe ou pela elevação dos aluguéis expôs-me a conhecer vários bairros de São Paulo e vários tipos de vizinhança. Se tinha pouco tempo para aproveitar a infância, nem por isso deixava de sofrer o impacto humano da vida nas trocinhas e de ter résteas de luz que vinham pela amizade que se fôrma através do companheirismo (nos grupos de folguedos, de amigos de vizinhança, dos colegas que se dedicavam ao mesmo mister, como meninos de rua, engraxates, entregadores de carne, biscateiros, aprendizes de alfaiate e por aí a fora). O caráter humano chegou-me por essas frestas, pelas quais descobri que o grande homem não é o que se impõe aos outros de cima para baixo ou através da história; é o homem que estende a mão aos semelhantes e engole a própria amargura para compartilhar a sua condição humana com os outros, dando-se a si próprio, como fariam os meus Tupinambá. Os que não têm nada que dividir repartem com os outros as suas pessoas — o ponto de partida e de chegada da filosofia de ‘folk’ dentro da qual organizei a minha primeira forma de sabedoria sobre o homem, a vida e o mundo.

Essa filosofia de folk constituía a cultura dentro da qual me movia, que só era suplementada pelos conhecimentos práticos requeridos pelos trabalhos que exercesse, todos muito rudimentares e de escasso valor técnico ou econômico. Ela existia nas famílias tradicionais ou ricas, com que interagia marginal ou centralmente; mas era entre os pobres que ela imperava, tendo na vida dos bairros o seu suporte social. Assim, no convívio com os meninos da minha idade, com os companheiros de trabalho, mais novos ou mais velhos, e com as pessoas que faziam parte da vizinhança — e mais especialmente dentro de casa ou no convívio com os meus tios e avós, que moravam em Bragança e com os quais eu passava, vez ou outra, algum tempo — tornei-me típico morador pobre da cidade da década de 20, que só era urbano pela localização espacial e pela relação tangencial com o sistema de trabalho. Todos éramos rústicos e desenraizados, mesmo os que procediam do interior do estado de São Paulo, e todos estávamos aprendendo a viver na cidade, mesmo os que, como eu, nasceram dentro de seus marcos e dos seus muros. O código de honra, a mentalidade, a noção de dever e de lealdade, o imperativo da solidariedade, até mesmo a sobranceria irredutível dos que estão por baixo não provinham da civilização — como gostam de dizer os antropólogos — nem do cosmos urbano ou da religião católica. Tudo aquilo fazia parte do que, mais tarde, aprendi ser a cultura do inculto e que a cidade ainda não destruíra. Ao contrário, à medida que as famílias ricas de deslocavam e deixavam seus sobrados para os pobres, ao se converterem em cortiços estes serviam como redutos a esta cultura (e também à variedade que ela assumia, graças às diversas origens nacionais, étnicas e raciais da população pobre e dependente). Mesmo quando a família rica alugava os porões, essa realidade não se alterava. Portanto, várias cidades coexistiam lado a lado, dentro do mesmo espaço urbano, que não impunha qualquer idade cultural, mas harmonizava, horizontalmente, os contrários que se toleravam sem se comunicarem. Os que não eram gente ou que formavam a gentinha, apinhando-se nos interstícios, nos espaços vazios e zonas de transição, ou nos medonhos cortiços-gigantes — nos quais nunca cheguei a morar — não se urbanizavam, em termos de estilo de vida. Encontravam dentro da cidade um nicho no qual mantinham suas pequenas cidadelas culturais e seus diferentes padrões de rusticidade. Italianos, portugueses, espanhóis, gente do interior e o imenso rol dos pobres não escondiam a sua humanidade.

(…)

A minha socialização plebéia poderia ser mais rica. Porém, o submundo dentro do qual circulava, de engraxates, entregadores de carne, aprendizes de barbeiro ou de alfaiates, balconistas de padaria, copeiros, garçons, ajudantes de cozinheiro etc., fechava-se dentro de um círculo pobre. Os seus componentes não acompanhavam com ardor os conflitos operários e com freqüência formavam a própria opinião através das pessoas a que serviam ou de jornais sensacionalistas. Uma criança ou um adolescente, dentro desse submundo, já faz muito quando enfrenta a pressão negativa contra a curiosidade intelectual. Quando decidi fazer o curso de madureza, por exemplo, enfrentei a resistência rústica de minha mãe, que achava que eu iria ficar com vergonha dela, se estudasse; muito pior era a incompreensão e a chacota dos colegas, que ridicularizavam minha propensão pelas leituras e meu apego aos livros dizendo que eu ia acabar com o miolo mole, de tanto ler; praticamente me incitavam a não deixar de ser como eles e a cultivar a ignorância como uma virtude ou a servidão como um estado natural do homem. Nos bares e restaurantes em que trabalhei, por exemplo, nunca recebi um apoio ou um conselho construtivo de qualquer colega, da minha idade ou mais velho, embora entre os fregueses encontrasse simpatia, quem me desse ou emprestasse livros, e até apoio prático para ir mais longe. Se aprendi com aqueles homens de minhas velhas ocupações, não foi para mudar de ofício ou de vida. É que, entre eles, encontrei pessoas de valor, que enfrentavam as agruras da vida com serenidade e tinham o seu padrão de humanidade: sabiam ser homens e, nesse plano, eram mestres incomparáveis, com toda a sua rusticidade, depreciação da cultura letrada e incompreensão diante dos próprios interesses e necessidades. Foi deles que recebi a segunda capa de socialização, que se superpôs à anterior, pela qual descobri que a medida do homem não é dada pela ocupação, pela riqueza e pelo saber, mas pelo seu caráter, uma palavra que significava, para eles, pura e simplesmente, sofrer as humilhações da vida sem degradar-se.

O toque final dessa preparação sui generis foi dado pelo curso de madureza. Enquanto trabalhava no Bar Bidu, na rua Líbero Badaró, instalou-se no sobrado vizinho o Ginásio Riachuelo. Os professores iam ao bar tomar lanche, depois das aulas. Eu sempre ficava atento aos fregueses com os quais podia aprender alguma coisa. Cultivei as relações com alguns dos professores — os mais comunicativos e assíduos — e obtive uma concessão, através do professor Jair de Azevedo Ribeiro de fazer os estudos sob pagamento reduzido. Graças a Manoel Lopes de Oliveira Neto, um dos fregueses de que me tornara amigo, arranjei outro emprego (como entregador de amostras do Laboratório Novoterápica); e graças ao apoio de Ivana e José de Castro Mano Preto, ligados à minha falecida madrinha, um pequeno auxilio marginal (que, mais tarde, se tornou de cama e comida permanentes), o problema do estudo ficou reduzido à expressão mais simples. Sair do bar e ter uma nova oportunidade, naquela época (1937), era algo notável. Os preconceitos contra esse tipo gente atingiam tais proporções que, nem com o apoio de Clara Augusta Bresser, irmã de minha madrinha, jamais logrei outra espécie de emprego. O mínimo que se pensava, sobre aquele tipo de gente, é que éramos ladrões ou imprestáveis!… O lumpen-proletário era, pois, a principal vítima de sua condição serviçal e de sua vassalagem à ordem estabelecida. Vínhamos, na minha arquitetura mental daquela época, logo abaixo dos gatunos profissionais e dos vagabundos, das prostitutas e dos soldados da Força Pública. O círculo de ferro fora rompido e, com o novo emprego, poderia manter minha mãe e pagar os estudos. A experiência concreta, por sua vez, não me fora inútil. Na pesquisa com Bastide, sobre relações raciais em São Paulo, eu saberia dizer porque a incapacidade de obter uma posição no sistema ocupacional da cidade pesara tão negativamente na história do meio negro na longa e penosa transição do trabalho escravo para o trabalho livre.

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Depois de ingressar na Universidade de São Paulo não poderia continuar na Novoterápica, na qual precisaria trabalhar o dia todo. Por isso e outros motivos, já antes de terminar o curso de madureza me transferira para outras firmas, primeiro como empregado, mais tarde como vendedor à comissão, nas quais operava, na cidade ou em municípios vizinhos, com artigos dentários. Depois, como eram grandes os encargos financeiros, comecei a trabalhar como propagandista em um laboratório, sediado no Rio de Janeiro, que produzia o Iodobisman e o Tropholipan, dois produtos de boa aceitação. Contava com uma remuneração razoável, dispunha de mais tempo para freqüentar as aulas e estudar do que a firma empregadora poderia desconfiar e travei contato com o setor médico. Assim, das profissões liberais fiquei conhecendo vários problemas com que se defrontavam os dentistas e os médicos e adquiri uma visão bem realista do que ia pelo setor pobre e dependente da população, em matéria de assistência dentária, médica e hospitalar. O que importa, nesta passagem, é esclarecer que tinha um meio de manutenção e que poderia candidatar-me ao ensino superior, desde que escolhesse cursos de meio período. Por volta do início da década de quarenta não existiam cursos noturnos na USP; o meu campo de escolha ficava, pois, restrito à Faculdade de Direito e a alguns cursos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Pretendia fazer, não me lembro por que — se é que cheguei a saber — o curso de engenharia química, na Politécnica. Contudo, teria de ser aluno em tempo integral, o que me era impossível, pois tinha de manter a casa. A escolha das Ciências Sociais e Políticas correu por conta das oportunidades que coincidiam com os meus interesses intelectuais mais profundos. No caso, a escolha de uma profissão quase não contou. Queria ser professor e poderia atingir esse objetivo através de vários cursos. O meu vago socialismo levou-me a pensar que poderia conciliar as duas coisas, a necessidade de ter uma profissão e o anseio reformista de modificar a sociedade, cuja natureza eu não conhecia bem, mas me impulsionava na escolha das alternativas. Decidi-me pela secção de ciências sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Esta herdava um bicho da cidade, em processo de desabrochamento intelectual e da descoberta de si mesmo. Seguindo a ótica atual, alguém poderia escrever: o lumpen-proletariado chega à Universidade de São Paulo. Todavia, não era o lumpen-proletariado que chegava lá; era eu, o filho de uma ex-lavadeira, que não diria para a cidade de São Paulo agora nós, como um célebre personagem de Balzac. Eu levava comigo intenções puras, o ardor de aprender e, quem sabe, de tornar-me um professor de escola secundária.

A minha bagagem intelectual era produto do estranho cruzamento de um autodidatismo forçado com a curta aprendizagem compacta, realizada através do Riachuelo (1). Graças a uma regalia instituída pelo artigo 100 dos cursos de madureza, eu podia tanto candidatar-me aos exames de seleção para o pré, subordinado à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, quanto tentar os exames de habilitação para a secção de ciências sociais e políticas. Na primeira hipótese, teria feito cinco anos em três; na segunda, sete anos em três. Embora inseguro, a conselho dos amigos empreendi as duas coisas simultaneamente; e obtive aprovação em ambos os casos. Isso significava: que eu anulara a desvantagem do atraso com que iniciara os meus estudos secundários, mesmo sem completar o primário; e que, pelos critérios vigentes, minha capacidade potencial era, pelo menos, comparável à dos colegas que haviam seguido o percurso normal. Na verdade, tanto eu quanto eles estávamos bem longe das exigências ou dos requisitos do ensino que iríamos enfrentar.

As falhas de formação e de informação eram imensas, por assim dizer enciclopédicas, e claramente insanáveis. Os mestres estrangeiros, que davam suas aulas na própria língua, não tomavam tais deficiências em consideração e procediam como se nós dispuséssemos de uma base intelectual equivalente à que se poderia obter através do ensino médio francês, alemão ou italiano. Os cursos eram monográficos — só o professor Hugon, que me lembre, ficava no petit a, petit b, do ensino básico, e era, por isso, ridicularizado em público pelo professor Maugué. Os professores assistentes acompanhavam a toada, movendo uma guerra sem quartel aos manuais e ao ensino geral. Pela organização dos cursos, essa seria a função do pré, onde nós deveríamos adquirir o conhecimento básico. Os candidatos às ciências sociais, por exemplo, faziam um exame escrito e um exame oral de sociologia (na argüição oral, diante dos dois Bastides e de outro professor do qual não me lembro, coube-me discutir um trecho de De la division du travail social). Mas todos sabíamos que o pré não cumpria tal função e que o carro caminhava adiante dos dois, esmagando os estudantes. O que nos impunha uma paradoxal saída: o recurso a um autodidatismo intensivo, às vezes supervisionado e orientado pelas cadeiras! O salto no escuro era a regra; o jogo, no entanto, era limpo, embora o desafio fosse tremendo. Só para dar um exemplo: o meu trabalho de aproveitamento com o professor Roger Bastide, no primeiro semestre de 1941, versava sobre a crise da explicação causai na sociologia. Reuni como me foi possível a bibliografia acessível na Biblioteca Municipal e na Biblioteca Central da Faculdade. Tirei nota quatro e meio, com um comentário piedoso do professor: o que ele esperava era uma dissertação, não uma reportagem. Essa experiência ensinou-me que ou deveria desistir, ou submeter-me a uma disciplina monástica de trabalho. Optei pela segunda solução e, aos poucos, ganhei maior elasticidade intelectual. A partir do fim do segundo ano e no terceiro ano tinha condições para competir com qualquer colega, de tirar proveito dessa sui generis montagem pedagógica e de responder às exigências da situação como um aluno aplicado ou talentoso. Em suma, malgrado as minhas origens, logrei vencer as barreiras intelectuais e ter êxito como e enquanto estudante.

A partir desta etapa, declina a importância da socialização pelo trabalho, ligada às atividades práticas que exercia para ganhar a vida (as quais foram mantidas até 1947, mais de dois anos após minha contratação como assistente de cadeira de Sociologia II da Faculdade de Filosofia). Não é que o contato com os dentistas, os médicos, as enfermeiras e alguns colegas que se tornaram amigos mais ou menos íntimos fossem irrelevantes, do ponto de vista do enriquecimento de minha pessoa ou da descoberta de novos mundos, que antes se ocultavam à minha percepção. Ao contrário, eles tiveram enorme significação e, inclusive, me ajudaram a libertar-me de velhos complexos inevitáveis e a adquirir maior independência na concepção de meus papéis sociais, de minhas possibilidades humanas e, principalmente, de uma ingenuidade tosca, incompatível com a cidade como estilo de vida. A questão é que aquelas atividades práticas ficaram excêntricas ao que passou a ser, de modo absorvente, o meu alvo central. Elas eram um mero instrumento de manutenção, em termos imediatos, para atingir outro fim, a largo prazo. Aquele não era o’ meu ‘ mundo. Eu me descobrira e, ao mesmo tempo, sentia crescer dentro de mim uma vocação adormecida, que me dava forças e argúcia para aceitar o desafio de tornar-me um professor e um intelectual. De princípio, as coisas não possuíam muita clareza para mim. Mas já no segundo ano do curso eu sabia muito bem o que pretendia ser e me concentrava na aprendizagem do ofício — portanto, não me comparava ao bebê, que começa a engatinhar e a falar, porém ao aprendiz, que transforma o mestre-artesão em um modelo provisório. A cultura dos meus mestres estrangeiros me intimidava. Eu pensava que jamais conseguiria igualá-los. O padrão era demasiado alto para as nossas potencialidades provincianas — para o que o ambiente poderia suportar — e especialmente para mim, com a minha precária bagagem intelectual e as dificuldades materiais com que me defrontava, as quais roubavam grande parte do meu tempo e das minhas energias do que gostaria de fazer. Contudo, como me propunha a ser um professor de nível médio, as frustrações e os obstáculos não interferiam no meu rendimento possível. O desafio era trabalhado psicologicamente e, na verdade, reduzido à sua expressão mais simples: as exigências diretas das aulas, das provas e dos trabalhos de aproveitamento. Com isso, empobrecia o meu horizonte intelectual e humano. No entanto, não poderia sobrepujar-me e resolver os meus problemas concretos sem essa redução simplificadora, que se corrigiu por si própria, à medida em que progredi como estudante e adquiri uma nova estatura psicológica. Em suma, o Vicente que eu fora estava finalmente morrendo e nascia em seu lugar, de forma assustadora para mim, o Florestan que eu iria ser.

Essa adaptação modesta foi muito útil para mim. Na fase inicial, em que me reciclava para ser um estudante universitário, porque me impelia a começar pelos alicerces, pelo ABC das ciências sociais. Não caí na armadilha dos que condenavam os manuais. Tive o bom senso de buscar neles uma base geral — que não nos era dada através dos cursos ecléticos e monográficos, preferidos pela maioria dos mestres — e de deixar em aberto o ponto de chegada, o qual não sabia qual poderia ser. Ao mesmo tempo, estabelecia uma trégua entre o meu medo de falhar e a intimidação que resultava do alto nível acadêmico dos professores estrangeiros, que criava uma desanimadora barreira psicológica dentro do próprio eixo em que gravitava a nossa aprendizagem. Na fase em que passei a voar com maior autonomia intelectual, porque não me tornei vítima da passagem, mais ou menos rápida para todos, do deslumbramento à decepção. Os professores estrangeiros, em sua maioria — não em sua totalidade — eram realmente grandes para nós. Vistos na escala de valores de seus próprios países — e nós tínhamos de chegar a ela e absorvê-la — se eles não eram medíocres, contavam entre as figuras de segunda ou terceira grandeza. Mesmo as apostilas de um homem tão famoso, atualmente, como Lévi-Strauss, nada tinham de impressionante. Livros elementares, como a pequena introdução de Cuvillier ou o breve tratado de Ginsberg, iam muito mais longe. O fato é que não se poderia ler os clássicos, antigos ou recentes — de Montesquieu e Rousseau a Comte, de Marx a Durkheim, Tönnies e Weber, ou de Mannhein, Mauss, Simiand, Cassirer, Dilthey, Giddings a Cooley, Ogburn, Park, Znaniecki, Laski, Sorokin e tantos outros — sem sofrer essa evolução paradoxal, que nos expunha a cruéis reflexões melancólicas. Além do mais, boa parte do brilho e da significação daquele ensino desembocava em um vazio pedagógico. A carência de dinamismos intelectuais universitários nos entregava àquela relação em termos de absolutos: se não nos dão o melhor e se não vamos, por conseqüência, ser os melhores, de que nos adianta o refinamento de uma cultura européia diletante e decadente ou de uma cultura norte-americana postiça, tão emprestada quanto a nossa? Alguns colegas, como Benedito Ferri de Barros e Laerte Ramos de Carvalho, não deixavam de remoer esses percalços, atacando, às vezes aberta e francamente, o puritanismo intelectual que me levava a um aparente ajustamento zarolho. A minha adaptação protetora conduzia-me em outra direção. Eu estava na época da semeadura: qualquer que fosse a grandeza relativa dos meus mestres, eu tinha o que aprender com eles e o que eles ensinavam ou transcendia aos meus limites ou me ajudava a construir o meu ponto de partida. Cabia-me aproveitar a oportunidade. A leitura de Mannheim, em particular, que iniciara com intensidade já nos começos de 1942, convencera-me de que a consciência crítica, para ser criadora, não precisa ser dissolvente.

(…)

A questão era ter acesso aos professores fora dos contactos formais das salas de aula. Eu não sabia como conseguir isso e, o pior, não era capaz e falar francês ou italiano. Como também não possuía um nome de família, eu desaparecia no pequeno número, como se estivesse perdido em uma massa enorme de estudantes. No entanto, como tinha decidido concentrar o melhor dos meus esforços nos trabalhos de aproveitamento, foi por aí, inesperadamente, que se abriram as portas para entrevistas pessoais e das casas daqueles professores. Durante 1941, dediquei-me com o maior afinco a dois desses trabalhos. Um, que fora passado pelo professor Paul Hugon, sobre A evolução do comércio exterior no Brasil, da Independência a 1940; e outro, que fora pedido pelo professor Roger Bastide, sobre O folclore em São Paulo. Com o professor Hugon tudo evoluiu naturalmente e com muita rapidez. Ele próprio me chamou e me disse que considerava que eu tinha, ali, o ponto de partida para uma tese de doutoramento. Pôs-se à minha disposição para orientar-me e, ao saber de minhas dificuldades, também me informou que me arranjaria um emprego mais condizente com minhas aspirações e possibilidades. De fato, ao retornar da França, depois das férias, me chamou de novo. Havia conseguido que eu fosse aceito por Roberto Simonsen, em um grupo de jovens que trabalhava diretamente para ele. Isso me deixou perplexo e me forçou a uma primeira decisão. Parecia-me que, se aceitasse aquele emprego, iria converter-me no que eu pensava ser, na minha ingenuidade, um camelo intelectual, alguém que não usa a própria inteligência para si, porém a vende para os outros. Recusei polidamente e ficamos muito amigos, sem que o professor Hugon desistisse do plano de doutoramento, que tinha engendrado. Com o professor Bastide os contactos foram mais lentos e, na verdade, provocados por mim. Para um recém-egresso dos quadros mentais da cultura de folk, aquela pesquisa era fascinante. Eu lancei-me a ela com o alvoroço de um primeiro amor. A bagagem intelectual era deficiente, pois a professora Lavínia da Costa Vilela se limitara a nos introduzir em alguns conceitos básicos de Sébillot e de Saintyves, Não obstante, graças às aulas do próprio Bastide, eu já estava lendo Durkheim e Mauss e me sentia capaz de projetar o folclore no meio social interno. Dadas as minhas origens de autodidata, foi-me muito fácil trabalhar uma ampla bibliografia, existente na Biblioteca Municipal, na Biblioteca Central da Faculdade (no que o senhor Raspantini me ajudou muito) e na Biblioteca da Faculdade de Direito. Em função da minha experiência de vida tão recente, sabia onde coligir os dados e como. Por conseguinte, fiz um levantamento e uma análise que estavam acima do que se poderia esperar de um trabalho de aproveitamento e, em particular, de um estudante do primeiro ano. Todavia, depois de um duro esforço, pretendia pelo menos uma compensação psicológica. Ela não veio. A professora Lavínia me deu nove e, como eu insistisse em um debate crítico, adiantou a opinião, com a qual não concordei, de que eu fora longe demais no tratamento sociológico do folclore. Esperei a volta do professor Bastide e exigi dele uma definição: não me importava a nota, queria uma crítica séria do trabalho. Ele ficou surpreso. ‘Como, existe uma monografia sobre o folclore de São Paulo? Ela me interessa muito’. Entreguei-lhe o trabalho dias depois. Não se passou muito tempo e ele me convidou a ir à sua casa. Disse-me que estava disposto a corrigir a nota, que ele julgava injusta (o que recusei) e fez comentários preciosos sobre a interpretação sociológica dos dados, demonstrando que eu tomara uma pista correta e que ela poderia ser explorada de modo ainda mais amplo. Ao saber das minhas dificuldades, também se ofereceu para conseguir-me um emprego de tipo intelectual. Levou-me a Sérgio Milliet e este teve o bom senso de decidir: se o Florestan começa a trabalhar aqui, na Biblioteca Municipal, ele enterra qualquer carreira que o seu talento lhe possa abrir. Como alternativa, colocou-se à minha disposição para publicar os artigos que quisesse escrever em O Estado de São Paulo. O professor Bastide, porém, não parou aí. Levou o trabalho ao professor Emílio Willems e pediu sua publicação na revista Sociologia. Dias depois, o Dr. Willems me chamou. Ele não tinha como publicar um trabalho tão grande na revista. Mas deu-me instruções para redigir trabalhos menores, que ele publicaria, e fez uma crítica severa da coleta de dados. Pela primeira vez vi qual era a diferença entre o amador e o profissional, o aprendiz e o mestre; e creio que aproveitei bem a lição, que iria servir de ponto de referência no meu modo de entender e praticar a pesquisa empírica sistemática como sociólogo. No mesmo ano, 1942, saiu o meu primeiro artigo na revista Sociologia. Quanto à colaboração para o Estado (e quase simultaneamente para a Folha da Manhã), só iniciaria no ano seguinte, depois de vencer o temor de enfrentar o grande público. Bastide tornou-se, daí em diante, o meu principal professor e um dos meus melhores amigos. Hugon e Willems, por sua vez, dispensavam-me a atenção que, naquela época, só se dava aos estudantes de talento reconhecido, que desfrutavam uma posição intelectual ambivalente, a meio caminho entre o amigo, o protegido e o futuro colega. Como José, na corte do Faraó, eu tivera o engenho de aformosear o meu destino, agarrando a sorte pelos cabelos.

(…)

Foi através do ensino e da pesquisa, porém, que completei a minha formação sociológica. Entre 1942 e 1945 fiz vários pequenos levantamentos (como o estudo sobre as manifestações do preconceito de cor em Sorocaba e do culto a João de Camargo; uma análise quantitativa da competição entre profissionais liberais em São Paulo, com base em identificações extraídas das listas telefônicas; uma sondagem, através de questionários, da população rural de Poá, na qual tive a colaboração de Oswaido Elias Xidieh; certa participação na pesquisa do Dr. Willems, sobre Cunha, na qual me encarreguei de estudar determinados aspectos do folclore ou da vida sexual da comunidade e ajudei na coleta de dados antropométricos; uma exploração dos dados quinhentistas sobre os contactos dos Tupi com os brancos, em São Paulo, uma pesquisa que deveria fazer com o Dr. Donald Pierson mas que interrompemos de modo prematuro, um balanço crítico das contribuições que Gabriel Soares e Hans Staden poderiam dar para o estudo da vida social dos Tupinambá e seus contactos com os brancos); e em 1944 iniciara, graças ao empenho e à colaboração desinteressada de Jamil Safady, uma pesquisa sobre a aculturação de sírios e libaneses em São Paulo (na qual trabalhei quase quatro anos e que foi posta de lado por falta de recursos materiais, além de outros motivos). Em suma, fui treinado de várias maneiras para ser um pesquisador. Essa experiência extensiva, no entanto, não diz tudo. A pesquisa de 1941 (complementada parcialmente em 1944), sobre o folclore, e o levantamento sistemático dos dados conhecidos sobre os Tupinambá (iniciado em 1945 e completado em 1946) constituem um marco na minha preparação sociológica. Quanto ao folclore, retomei por várias vezes os materiais coligidos para submetê-los a uma análise em profundidade. O trabalho que teve mais importância para mim foi o que escrevi sobre as trocinhas do Bom Retiro. Pela primeira vez, via-me enfrentando as tarefas de materializar e de reconstruir as bases sócio-dinâmicas da vida em grupo. Não só tive oportunidade de passar do plano abstrato para o plano concreto no uso de conceitos, hipóteses e teorias; precisei formular, por minha conta, as perguntas que o sociólogo tem de responder quando examina, empiricamente, a estrutura e as funções do grupo social, nos vários níveis da vida humana. Por isso, esse pequeno trabalho representou, para mim, uma passagem da iniciação didática para a iniciação científica, e eu lhe devo, em termos de aprendizagem, muito mais do que fiquei devendo aos cursos que freqüentara anteriormente. Formei, então, o meu próprio tirocínio sobre a análise de dados empíricos; e fiquei sabendo por que a reconstrução empírica não basta à explicação sociológica: os fatos não falam por si mesmos. É preciso interrogá-los e, para isso, é indispensável algum domínio do quadro teórico envolvido. O velho leitor de Simiand recolocou-se a exigência fundamental — nem teorias sem fatos nem fatos sem teorias — à luz de uma perspectiva nova, nascida de uma pesquisa precária, é certo, mas muito rica de conseqüência para o meu amadurecimento como sociólogo-pesquisador.

Não obstante, foi através do estudo sobre os Tupinambá que me senti forçado a ir muito mais longe. A pesquisa não só não era uma experiência improvisada, apesar de ser o meu primeiro contato mais íntimo com a reconstrução histórica. Os Tupinambá me colocavam, como diria Mauss, diante da necessidade de explicar uma civilização, como o demonstra A organização social dos Tupinambá. Fui obrigado a mobilizar todos os conhecimentos que pudera acumular sobre técnicas empíricas e lógicas de pesquisa. E tive de alargar o meu conhecimento das sociedades primitivas, para poder entender, descrever e explicar as estruturas e os dinamismos da sociedade tribal. Eu me via questionando, ao mesmo tempo: os cronistas e as suas contribuições empíricas para o estudo sistemático dos Tupinambá; a minha capacidade (e limitações) como investigador; as técnicas de formação de inferência e de construção de teoria que podia utilizar; as teorias sociológicas e antropológicas sobre a estrutura social e a organização social; os quadros sociais da conquista, da escravidão das populações indígenas, da expropriação da terra pelos portugueses e da dizimação dos nativos. Na verdade, se já era uma lagarta, quando principiei a investigação, ao terminá-la convertera-me em uma borboleta. Descobri que nenhum sociólogo é capaz de realizar o seu ofício antes de percorrer todas as fases de um projeto de investigação completo, no qual transite do levantamento dos dados à sua crítica e à sua análise e, em seguida, ao tratamento interpretativo propriamente dito. Os que repudiam o estudo de comunidade ou o estudo de caso com tanta obstinação, ignoram esse lado pedagógico do treinamento científico pela pesquisa empírica sistemática. Um investigador isolado dificilmente pode ir mais longe do que eu tentara ir, embora ficasse com a frustração de descobrir que nunca se chega, na verdade, ao relato de todos os conhecimentos acumulados e verificados. Com essa pesquisa, não só obtive o grau de mestre em ciências sociais: alcancei a estatura de um artesão que domina e ama o seu mister, porque sabe como deve praticá-lo e para o que ele serve. Ela ajudou-me a modificar a minha concepção da sociologia e da natureza ou alcance da explicação sociológica. Podia encadear-me a uma tradição de pensamento científico de um modo mais crítico, que me levaria a recusar a reconstrução empírica como o alvo final e a ver na contribuição teórica o objetivo central da investigação sociológica. Por aí, penetrei na esfera dos problemas da indução na sociologia com uma bagagem mais sólida, que me permitia indagar como se passa dos fatos às teorias, e me obrigava a exigir do sociólogo algo mais do que uma descrição bem feita da realidade.

Nem por isso a experiência em nível de ensino teve importância menor para mim. Ao contrário, a sala de aula logo se tornaria, em termos de formação e de amadurecimento intelectuais, uma espécie de equivalente do laboratório. No começo, por insegurança e por falta de tempo (a cadeira de Sociologia II só foi incorporada ao regime de tempo integral em 1947) negligenciava um tanto a preparação das aulas. Como fazia várias coisas simultaneamente — e com dois empregos! — tendia a reduzir o peso relativo da carga de trabalho didático e explorava mal as potencialidades pedagógicas da relação com o estudante como uma via real do auto-aperfeiçoamento. Aos poucos, porém, a paixão pelas tarefas didáticas cresceu dentro de mim e, especificamente, como parte da complexa situação de aprendizagem que elas engendram, pela qual o professor quase sempre aprende, graças à e através da sala de aula, mais que o próprio estudante. Isso é paradoxal. Mas constitui uma verdade elementar. Como o pesquisador, o professor precisa reduzir o conhecimento acumulado previamente ao que é essencial e, mais que o pesquisador, deve defrontar-se com o dever de expor tal conhecimento de modo claro, conciso e elegante. Por pequeno que seja o potencial agregador do estudante no processo de aprendizagem, o ensino, em si mesmo, é instrutivo e criador para o professor, independentemente do prazer de ensinar ou do que se pode aprender com o estudante. Ao atingir esse patamar, o ensino perdeu, para mim, o caráter de um fardo e a relação com os estudantes passou a ser altamente provocativa e estimulante para o meu progresso teórico como sociólogo. Na verdade, antes que se fizessem sentir as avaliações de meus pequenos escritos e livros, foram os estudantes que descobriram e reconheceram o meu valor, oferecendo-me uma base psicológica de auto-afirmação e de segurança relativa fundamental para a eliminação de velhas cicatrizes, ambivalências e hesitações. Os estudantes sempre foram generosos comigo e sempre responderam construtivamente ao que eu pretendia fazer, praticamente desde o início da minha carreira docente, ajudando-me a moldar-me segundo uma imagem do professor que transcendia às possibilidades da tradicional escola superior brasileira.

A fase inicial foi dura para mim e para os estudantes. Como todo professor jovem, eu não estava preparado para ensinar em cursos de graduação. Esses cursos, em nível introdutório, requerem professores de longo tirocinio, maduros no trato com a matéria e com o ensino. Ora, eu estava também reaprendendo. Em conseqüência, excetuando-se um curso semestral, de comentário crítico de As regras do método sociológico, que dei em 1945, professei cursos inevitavelmente indigestos, nos quais os meus pontos de chegada se convertiam nos pontos de partida dos estudantes. Eu tendia a levar minha fermentação mental para a sala de .aula e não poupava ninguém. Não pretendia impor-me acima do aprendiz de sociólogo. Não obstante, as indagações que me absorviam eram descarregadas sobre os estudantes sem piedade, com um impacto devastador. Se eles aprendiam muito a respeito das correntes sociológicas mais importantes, em compensação tinham de aceitar um tremendo e tempestuoso desgaste intelectual, do qual eu não me poupava e tampouco tinha a intenção de poupá-los. Muitos desistiam dos cursos ou achavam a sociologia muito difícil. Os que ficavam, porém, rompiam comigo o terreno a desbravar e acabavam sentindo a verdadeira sedução que o pensamento sociológico é capaz de provocar nas mentes criadoras. Vários deles seriam, mais tarde, sociólogos competentes e meus colegas. Não sei o que pensam, hoje, do meu fanatismo científico e do meu sóciologismo inveterado nem como avaliam a precariedade das rotas de aprendizagem que percorremos juntos, com tanto ardor intelectual. Mas acredito que esse período não seria tão fecundo, para mim, se não tivesse congestionado as aulas e feito os alunos arrostarem, em minha companhia, os altos e baixos dos debates sociológicos em que os envolvi.

Aos poucos, esse tipo de ensino conturbado e perturbado foi desaparecendo: ao digerir as minhas leituras e ao compreender melhor as minhas próprias funções docentes tornei-me um professor mais experiente e competente. Então, já podia encarar o estudante e o ensino da sociologia de outra maneira, superando o comensalismo predatório da fase inicial. O meu campo de escolhas se ampliava e eu encetava uma nova experiência, pela qual iria associar a exploração de vários campos da sociologia às minhas tarefas didáticas. Graças ao crescimento e ao aperfeiçoamento do próprio Departamento de Sociologia e Antropologia, tornava-se possível entender, ainda que rudimentarmente, as fronteiras do trabalho produtivo e inventivo da área das leituras e da pesquisa para a esfera do ensino. Como os cursos de introdução se tornaram formativos, lecioná-los significava adquirir um domínio maior sobre os conhecimentos básicos da sociologia. Ao mesmo tempo, os cursos monográficos — determinados acima das preferências individuais dos professores — surgiam como uma vantajosa alternativa de auto-realização profissional.

(…)

Tudo isso indica que, no início da década de 50, o período de formação chegava ao fim e, simultaneamente, revelava os seus frutos maduros. Eu já estava terminando a redação de A junção social da guerra na sociedade Tupinambá e dispunha de condições não só para colaborar com Bastide em uma pesquisa tão complexa como a que fizemos sobre o negro em São Paulo, mas para ser encarregado do planejamento da mesma e da redação do projeto de investigação. Estávamos em uma nova era, para mim, e as minhas responsabilidades sofriam uma transformação rápida, quantitativa e qualitativa. Graças à transferência para a cadeira de Sociologia I (oficializada em 1952) e, em seguida, ao contrato como professor em substituição a Roger Bastide, eu me via diante da oportunidade de contar com uma posição institucional para pôr em prática as concepções que formara a respeito do ensino da sociologia e da investigação sociológica. Converti essa cadeira em um pião para atingir fins que são inacessíveis ao professor e ao investigador isolados. Como D’Artagnan, ao chegar a Paris, eu estava disposto a lutar com qualquer um que dissesse que nós não somos capazes de impor a nossa marca à sociologia. Ao antigo símbolo do made in France eu pretendia opor o feito no Brasil. Não estava em busca de uma estreita sociologia brasileira. Pretendia, isso sim, implantar e firmar padrões de trabalho que nos permitissem alcançar o nosso modo de pensar sociologicamente e a nossa contribuição à sociologia. Os fatos iriam mostrar que isso era possível, que eu não forjara uma pura utopia profissional. Pois durante quase quinze anos (de 1955 a 1969) — em que fiquei à testa da cadeira de Sociologia I — eu e meus colaboradores demonstramos, através de intensa e fecunda atividade intelectual, que essa possibilidade pode ser comprovada na prática. As dificuldades inerentes a uma universidade estática, à ausência de tradição científica, à escassez dos recursos materiais, à extrema dependência cultural do país e às interferências reacionárias do pensamento conservador não impediram que realizássemos programas altamente complexos de ensino e de pesquisas, que estabeleceram a nossa reputação científica, nos círculos acadêmicos e fora deles. O nosso esforço não pode nem deve ser isolado do que fizeram outros sociólogos brasileiros. Contudo, ele foi encarado, aqui e no exterior, como um índice de autonomia intelectual e de capacidade criadora independente. O que fomentou o mito da escola paulista de sociologia e nos conferiu um prestígio que sobreviveu ao expurgo que sofremos.

*Florestan Fernandes é professor emérito do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Notas

1 Quanto aos exames de seleção para o pré, muito concorridos (talvez a proporção fosse de dez candidatos para uma vaga), consegui aprovação em segundo lugar. Com referência aos exames de habilitação para ciências sociais, havia trinta vagas e somente vinte e nove candidatos. Na seleção, porém, só seis foram qualificados (eu era o quinto). Em seguida, mais dois entraram através dos exames de segunda época. Como dois desistiram, o nosso grupo era de seis, acrescido, mais tarde, de uma aluna que se transferira do Rio de Janeiro.

2 Ginásio Riachuelo

A autobiografía intelectual de Florestan Fernandes pareceu à Editoria a sondagem mais funda que já se fez no sentido de compreender os fatos e os valores que marcaram a fase de solidificação dos cursos de Ciências Sociais na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Dela transcrevemos alguns passos, mas convidamos o leitor a conhecê-la na íntegra. O texto foi extraído de: Florestan Fernandes — A Sociologia no Brasil, 2ª ed., Petrópolis, Vozes, 1980, p. 142-179.

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