Por JOSÉ COSTA JÚNIOR*
Quatro histórias narradas em filmes recentes retratam as tensões e consequências da vida em sociedades muito desiguais, situação que impacta a vida das pessoas de maneira decisiva
Coincidências são curiosas. Estimulam nossa curiosidade para buscarmos meios para explicar situações parecidas ou próximas. Como vivemos em sociedades que passaram pelo “desencantamento do mundo”, conforme a descrição de um antigo teórico, grande parte das nossas explicações sobre o mundo e os acontecimentos à nossa volta envolvem investigações pautadas em evidências e razões. Esse processo diminuiu consideravelmente o papel das explicações sobrenaturais nas nossas explicações, inclusive sobre as estimulantes coincidências que notamos. E é dentro dessa expectativa, de que é possível juntar evidências e razões para oferecer uma explicação, que se tenta abordar uma coincidência temática de algumas produções cinematográficas atuais. Essa tentativa envolve quatro produções audiovisuais realizadas em diferentes países e com grande destaque na atualidade, juntamente com algumas hipóteses sobre as dificuldades de nossos modos de vida contemporâneos. Não se busca aqui uma última palavra sobre os temas abordados, mas de pensar possibilidades, e talvez contribuir para a compreensão de um fenômeno muito discutido atualmente. Mas, antes de tudo, vamos conhecer as histórias narradas em tais produções (que talvez sejam uma só), com algumas revelações sobre os seus enredos.
“Eles parecem saudáveis. São bem saudáveis, apenas desempregados.”
O filme Parasita (Coréia do Sul, 2019), dirigido por BongJoon-ho, retrata a vida e o encontro das famílias Kim e Park na cidade de Seul. Os quatro membros da família Kim são assolados pelo desemprego, sem grandes expectativas e vivem numa “casa semi-subterrânea” em péssimas condições. Com dificuldades básicas para a sobrevivência, sem acesso à alimentação básica e serviços estruturais. Já a família Park mora numa casa ampla e bem estruturada, com empregados e serviços disponíveis a todo momento. Seus quatro integrantes vivem com recursos vindos do trabalho bem remunerado e reconhecido do chefe da família e suas preocupações estão para além da sobrevivência básica. Esse cenário de extrema diferença chama a atenção por ocorrer num país rico como a Coréia do Sul, polo de desenvolvimento tecnológico e de sofisticação. Chama a atenção também o fato de que, mesmo talentosos e competentes, os jovens da família Kim não terão muitas oportunidades para melhorar suas condições de vida através da educação e do trabalho, conforme tradicionalmente se espera em sociedades de produção e consumo. Porém, no filme, tudo parece estar em seu devido lugar, onde a sociedade funciona normalmente mesmo com as distâncias sociais existentes; “Tudo tão natural”, nos diz uma das personagens. No entanto, não é bem assim.
A situação de parasitismo envolvida no título começa quando essas famílias se encontram. Aos poucos, através de um ajuste pouco honesto, a família Kim vai se infiltrando na casa da família Park como empregados. Passam então a viver o cotidiano da família e a usufruir de seus recursos, seja na forma de salário, seja na forma de uso dos bens e serviços. E tudo isso sem o conhecimento da rica família que os recebe. Curiosamente, surge uma desconfiança quando se percebe que o cheiro dos empregados é parecido, o que aponta para as péssimas condições de moradia e de vida. Ao longo do filme, as tensões entre as duas formas de vida representadas pelas famílias irão surgir e se avolumar, como destaca uma frase dita pela mãe da família Kim: “Se eu tivesse toda essa grana, eu também seria gentil”. Os “fantasmas” da relação entre tipos de vida tão diferentes, onde uns não tem quase nada e outros têm tudo, fazem com que a violência e a brutalidade surjam da humilhação e do ressentimento. “Agora eles vão ver só”, diz o pai da família Kim, numa cena onde exige respeito e alguma forma de reparação e em relação ao que vive e ao que sente.
Todos esses choques apresentados em Parasita são cada vez mais comuns no mundo contemporâneo. Conforme nos aponta o economista sérvio Branko Milanovic em Global Inequality: A new approach for the age ofglobalization (2016), mesmo que nas últimas décadas a desigualdade econômica tenha diminuído no mundo como um todo, as distancias materiais e sociais têm aumentado dentro dos países, conforme o cenário da Coréia do Sul apresentado em Parasita. Essa situação paradoxal ocorre devido à dinâmicas próprias de cada país, onde quem tem mais recursos possui mais oportunidades e acessos e aqueles que têm menos perdem o controle sobre suas vidas. Tais situações podem contribuir para o aumento de tensões políticas e desequilíbrios sociais como o que vemos no filme. Milanovic defende que se adotem políticas públicas que busquem limitar o alcance da desigualdade e do desequilíbrio. Tais ações são necessárias com base em (i) razões instrumentais (ampliação das possibilidades de formação e qualificação das pessoas para que produzam e consumam melhor), (ii) razões de equidade (a ampliação das oportunidades e dos acessos, para que as pessoas possam exercer direitos) e (iii) razões políticas (a ampliação da participação das pessoas nos processos de decisão). Para Milanovic, é através desses reconhecimentos de cidadania e de direitos que se pode diminuir o impacto das desigualdades cada vez maiores em nossas sociedades. Mas fica uma questão: e se nada for feito?
“O que vamos comer? É óbvio. As sobras do pessoal lá de cima.”
O filme O Poço (Espanha, 2019) explora um cenário que também envolve desigualdades, mas recorrendo a uma situação inusitada, próxima de distopias. Nesse filme, dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, temos uma prisão dividida por andares, na qual as pessoas passam meses vivendo de um modo bastante peculiar. Diariamente são alimentadas por uma plataforma, que desce pelos diferentes andares, onde cada um come o que sobra dos andares superiores. Assim, quanto mais baixo o andar, piores são as condições de existência. Outro traço da situação é que as pessoas trocam de andar a cada período. O personagem principal, por exemplo, passa pelo nível 33, pelo 202 e pelo 6, numa situação que traz ainda mais insegurança para os envolvidos. Literalmente, não se sabe onde estará no próximo período. Não sabemos ao certo do que se trata essa estrutura, se é um experimento social ou uma instituição penal, e mesmo assim a história é envolvente e estimula reflexões sobre o papel das desigualdades. Um ambiente de incertezas, no qual a construção de laços é sempre um desafio e a luta pela sobrevivência é constante, pensar em qualidade de vida é um exercício impossível.
Ao longo da história, surgem episódios de violência e brutalidade, principalmente nos andares mais baixos. Tentativas de construção de práticas cooperativas e organizadas são inviabilizadas pelo medo e pela incerteza em relação ao futuro, e o personagem principal passa por todas essas etapas. Tenta não se deixar levar pelas circunstâncias, mas reconhece as dificuldades de manter seus valores em meio a um contexto onde a “solidariedade espontânea” nunca brota. Velhos debates surgem: A natureza humana é ruim? As condições às quais somos expostos determina nossas ações? Como estimular a cooperação? Um ponto interessante é que a comida é preparada com requintes, numa cozinha limpa e sofisticada e depois desce para os andares inferiores. No início, não se sabe ao certo quantos andares descerá, mas uma certeza é possível: ela acabará bem antes do fim e muitas pessoas ficarão sem comer. Essa situação faz com que ações extremas ocorram e que rebeliões sejam planejadas. Mas qual seria o melhor meio de chamar a atenção para essa terrível situação de insegurança, dificuldades de sobrevivência e brutalidade? Como viver ali?
O Poço pode ser interpretado como uma alegoria das sociedades contemporâneas e suas grandes desigualdades de recursos e de acessos. Além disso, destaca uma importante informação: o fato de que diferenças e desigualdades acabam impactando a vida de todos numa sociedade. Isso ocorre devido aos riscos sociais constantes, além da incerteza presente no cotidiano. Os pesquisadores da área de epidemiologia social Richard Wilkinson e Kate Pickett apresentam em The Spirit Level: Why more equal societies almost always do better (2009) dados que mostram como sociedades com mais desigualdade oferecem uma vida pior para os seus integrantes. Segundo seu argumento geral, traços sociais importantes como a confiança e o estabelecimento de laços sociais são impactados em sociedades muito desiguais, dificultando a construção de respostas comuns aos desafios das sociedades e isso impacta a vida de todos, independente da condição social. É o caso da violência, que traz consequências para todas as classes, com a insegurança e os conflitos subjacentes, conforme vemos em O Poço. Ali, independente do andar ocupado, a tensão e o risco é um traço comum da vida.
Mais recentemente, Wilkinson e Pickett publicaram The Inner Level: How more equal societies reduce stress, restore sanity and improve everyone’swell-being (2019), no qual destacam os modos pelos quais sociedades mais igualitárias promovem o bem-estar coletivo de maneiras mais efetivas. Retomam seu argumento de que sociedades desiguais possuem mais tensões sociais e dificuldades, com consequente aumento da violência, do uso de drogas e de doenças psicossociais, como a depressão e a ansiedade. Menos desigualdade não trará o “Céu para a Terra” ou uma solução para todos os problemas humanos, mas ampliará as possibilidades de realização e organização da vida das pessoas. Conforme acompanhamos em O Poço, a ausência de estabilidade e grandes incertezas em relação ao futuro são elementos decisivos para o surgimento da instabilidade e da violência, numa situação em que possíveis respostas e enfrentamentos exigem ações e atitudes drásticas para o desenvolvimento de alguma organização da vida. Assim, o filme e as pesquisas de Pickett e Wilkinson estimulam a nossa reflexão sobre os modos como nossa sociedade está organizada e sobre a necessidade de construirmos meios mais efetivos para que todos nós possamos usufruir um pouco mais da vida, independente do lugar que ocupamos na escala social.
“Eles não dão a mínima para pessoas como eu e você.”
Para quem acompanha histórias de super-heróis, o Coringa é um dos vilões mais interessantes. Em cada história em que aparece com o rival Batman há várias possibilidades em aberto, devido à natureza anárquica e incomum do personagem. Muito do que assusta em relação ao Coringa envolve essa instabilidade, quando comparado ao organizado, coerente, objetivo e previsível Batman. Coringa ri enquanto ataca e é atacado, faz piada sobre as estratégias e princípios do herói, distorce planos e é capaz das mais variadas atitudes, compreensíveis ou não, para trazer um pouco de “alegria” para os contextos do Homem-Morcego. No entanto, existem diferentes modos de realizar e de ser o Coringa: um Coringa “clássico”, que cai num tanque de produtos químicos e se transforma num homem louco, ou um Coringa “anárquico”, que aparece do nada e não tem grandes objetivos a não ser mostrar a irracionalidade do sistema social no qual vivemos. Uma terceira possibilidade nos é apresentada no filme próprio do personagem, intitulado apenas como Coringa (Estados Unidos, 2019) e dirigido por Todd Philips.
Ali conhecemos Arthur Fleck, um sujeito comum que trabalha como palhaço nas ruas de Gotham City em 1981. Trata-se de uma figura fragilizada, que sofre uma série de violências e abusos ao longo da história: no trabalho, nas ruas, no passado. Vive com a mãe em condições muito ruins, numa cidade suja e sombria, abandonada por aqueles que poderiam liderá-la. Não tem controle nem sobre si (uma doença perturbadora o faz dar gargalhadas constrangedoras), nem sobre a sua vida (não consegue manter seu trabalho nem sua vida pessoal). Fleck não tem mais acesso ao serviço de saúde que ao atendia, devido à falência dos serviços públicos, nem aos remédios que precisava. Não consegue construir laços sociais, nem conceber exatamente objetivos e metas. Sem oportunidades, acessos ou recursos, começa a viver numa oscilação entre delírios e realidade e passamos a não distinguir mais entre essas duas frentes ao longo da história. A resignação apresentada por Fleck em relação às suas circunstâncias também chama a atenção; mas parece não haver nada a ser feito. “A vida é assim” diz um comediante da televisão admirado por Fleck a todo momento.
Mas ele reage. Numa das cenas mais interessantes do filme, dentro de um metrô, ele tem contato com três sujeitos bem vestidos e ricos. “Agora eles vão ver que eu existo”, diz Fleck numa das sequências posteriores. Sua condição de inferioridade construída pelo abandono e pelo descaso fazem com que surja um “palhaço” cheio de ressentimento e brutalidade. Seus alvos principais são aqueles que o desprezaram, principalmente um rico representante da elite local que pode ou não ter vínculos mais diretos com Fleck. Mas não se sabe, pois Arthur já vai se transformando em Coringa e a realidade parece ser cada vez mais deturpada. Suas ações já inspiram outros atos pela cidade, na qual a organização social fica caótica. Mais dúvidas surgem: Coringa é um louco ou um assassino? O que poderia ter sido feito para evitar que a pacífica figura de Fleck se transformasse nesse “agente do caos”? Como as estruturas sociais de Gotham promoveram essa situação? Devemos algo a Fleck ou precisamos eliminá-lo o quanto antes? Enquanto refletimos, Coringa já dança nas escadarias, inspirando tantos outros “palhaços” abandonados à própria sorte, que sentem sua impotência frente ao mundo à sua volta e que assustam Gotham.
Coringa dialoga com a dificuldade de manutenção de controle da própria vida no mundo contemporâneo. Crises sociais, econômicas e políticas limitam a autonomia das pessoas, que veem suas vidas serem impactadas por circunstâncias que não compreendem e que abalam os sistemas sociais. As grandes diferenças sociais e econômicas decorrentes de tais crises aumentam a complexidade do cenário. O filósofo Thomas M. Scanlon desenvolve uma análise sobre o impacto das diferenças econômicas e políticas em Why does inequality matter? (2018). Scanlon oferece quatro razões para defender a preocupação com a desigualdade: (i) os participantes de uma sociedade têm o direito de desfrutar do que se constrói coletivamente, uma vez que ninguém cria ou enriquece sozinho dentro de uma rede interdependente de produtores, trabalhadores e consumidores; (ii) as pessoas nascidas em famílias mais pobres não podem desenvolver seu potencial devido simplesmente à “loteria do nascimento”, o que é injusto; (iii) as pessoas mais ricas passam a ter cada vez mais poder e influência sobre a vida das outras pessoas, tanto economicamente quanto politicamente; (iv) em conjunto, tais diferenças acabam por impactar o funcionamento da democracia, com consequências para o grau de cidadania atribuído pessoas conforme sua situação social.
Para Scanlon, essas quatro razões apontam para a necessidade de que as sociedades se preocupem com a desigualdade, uma vez que, em conjunto, as bases sociais e democráticas podem ser duramente impactadas, como observamos na história do Coringa. A ausência de consideração por cidadania e por direitos tornam a vida inviável em Gotham, promovendo tensões e conflitos violentos e brutais. Assim, políticas públicas que diminuam esse impacto são necessárias para melhorar as condições de existência conjunta nas sociedades contemporâneas. Não se trata da adoção de sistemas opressivos que buscam a igualdade através da supressão violenta das liberdades, mas da construção de ações voltadas para a atribuição de direitos e cidadania para que as pessoas possam usufruir da vida em sociedade, partindo da construção de laços sociais que fomentem essa dinâmica. A história da transformação de Arthur Fleck em Coringa nos estimula a refletir sobre as possíveis consequências de vivermos em sociedades nas quais esses laços não são considerados, onde o ressentimento, a falta de confiança, a brutalidade e a violência passam a ser traços comuns. Ou, nas palavras do próprio Coringa: “Eles acham que a gente vai ficar sentado e aguentar tudo como meninos bonzinhos! Sem ficar revoltado e quebrar tudo!”
“Como podem ser como a gente?”
Já Bacurau (Brasil, 2019), dirigido conjuntamente por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, retrata acontecimentos de um futuro próximo numa pequena localidade do interior profundo do Nordeste brasileiro, cujo nome intitula o filme. Conhecemos a vida nesse pequeno lugar, que “não está no mapa”, onde não há saneamento básico nem serviços públicos estruturados, o que faz com que os moradores precisem se organizar mutuamente para ter água e recursos. Não há muitas oportunidades de trabalho nem grandes empresas, mas também não existe uma preocupação constante com o “crescimento” ou com o “desenvolvimento”, seja lá o que isso for. A presença dos políticos tradicionais é rechaçada, porém a auto-gestão da vida e do espaço parecem garantir condições de existência minimamente dignas, com forte pertencimento comunitário. Um professor, uma médica, um conjunto de protetores, crianças e idosos, artistas, prostitutas, entre outros, resistem na comunidade, com algum acesso à tecnologia, mas sem desconsiderar vivencias comunitárias e tradicionais. A vida é simples, pobre e dura, mas parece ser paradoxalmente boa.
No entanto, em algum momento, coisas estranhas começam a acontecer. Visitas inéditas e a presença de um drone suspeito chamam a atenção, principalmente quando a troca de informações via celular é bloqueada em Bacurau e começam a chegar notícias de mortes violentas. Trata-se de uma invasão. A vida pacata é tomada por uma tensão, mas, ao contrário do que a situação sugere, a simplicidade do povo de Bacurau não dá espaço para a vitimização. Não sabemos como nem porque, mas a tentativa de invasão estrangeira envolve uma “gincana” de caça de seres humanos por parte de estrangeiros muito bem armados, que estão organizados num jogo onde quem mata mais é premiado, com o objetivo de eliminar a população local. Os invasores estão confortáveis em seu objetivo, pois aquelas vidas não são consideradas e não “estão no mapa”, o que faz com que as suas mortes sejam “banais”. Aliás, na interpretação de um dos invasores, todos naquele país eram, de algum modo, inferiores a eles. Não é possível contar com a segurança pública, pois ali “não há polícia”, mas Bacurau sabe se defender.
A história de Bacurau é aberta à diversas interpretações, porém um traço comum envolve a diferença entre os que chegam e os que lá estão. Essa forma de desigualdade faz com que a morte desses últimos seja aceita como natural e até necessária por parte dos invasores, pautados em critérios raciais e sociais. As vidas em Bacurau são descartáveis. E a prática da morte conta com apoio da política local e de pessoas do mesmo país. Sobre essa situação, a “gestão da morte”, com naturalização e aceitação de que algumas vidas são dispensáveis, foi identificada pelo filósofo camaronês Achille Mbembe (2003) como “necropolítica”, onde o estado e a sua estrutura definem “quem deve viver e quem deve morrer.” De maneira geral, essa definição envolve o lugar das pessoas dentro da escala social, onde é “natural” que alguns morram, devido aos modos através dos quais nos organizamos. Dentro de estruturas cada vez mais desiguais, essa lógica irá impactar a vida daqueles que não se enquadram na lógica de produção e consumo. “Pobres”, “desempregados”, “bandidos”, “vagabundos”, “inferiores”, entre outras categorias rotuladas a partir de sua participação na “marcha do desenvolvimento” morrem a todo momento, e isso é naturalizado dentro da necropolítica.
A necropolítica, conforme apresentada por Mbembe em Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte, envolve a aceitação desse caráter descartável de algumas vidas e, conforme vemos em Bacurau, parece seguir a “ordem natural das coisas”. De maneira geral, essa caracterização precisa envolver um processo de desumanização, que inferioriza alguns em função do lugar que ocupam. Em sociedades desiguais, onde os recursos e os acessos que cada um possui determinam suas condições de existência, algumas vidas também parecem descartáveis. Na análise de Mbembe, a organização política acaba por legitimar esse processo, através de organizações e práticas que contribuem para que ele se efetive e trata-se de uma situação recorrente na história. A história de Bacurau nos estimula a observar e refletir sobre tais aspectos. Um traço que chama a atenção do filme é constante papel dos processos educacionais para a resistência na cidade, seja na figura da escola, nas atividades do professor, na médica que orienta e no talento para a escrita do principal defensor. Esse traço parece ser fundamental para a proteção da cidade, na qual a participação cidadã nas decisões locais é recorrente e decisiva. Pode-se até dizer que educação e cidadania salvam vidas em Bacurau.
Sintomas
De algum modo, as histórias narradas nesses filmes recentes retratam as tensões e consequências da vida em sociedades muito desiguais, situação que impacta a vida das pessoas de maneira decisiva. As análises econômicas, sociais, históricas e filosóficas abordadas mostram que esse traço não se trata apenas de uma coincidência, mas de um sintoma de nossa época. Conforme o lugar ocupado na escala social, as vidas que as pessoas vivem são cada vez mais diferentes. E isso acarreta diversas consequências, principalmente quando muitas pessoas perdem o controle sobre suas vidas, e a ausência de expectativas promovida por esse descontrole é comum. Paradoxalmente, tudo isso acontece num mundo intensamente conectado e desenvolvido tecnologicamente, que promove aproximações virtuais, mas que está distante em termos sociais. Não é à toa que vemos tanto ressentimento e negatividade nas redes, sentimentos e emoções que transbordam para o campo político e social configurando sociedades fraturadas e polarizadas. Muitos de nós acabam por recorrer à discursos de força, com apelo à violência, para organizar “tudo que está aí”. No entanto, não existem respostas fáceis para questões estruturais e profundas de nossos modos de vida. Compreender esses processos e pensar meios para limitar seus impactos é um dos principais desafios de nosso tempo.
*José Costa Júnior é professor de filosofia e ciências sociais no IFMG –Campus Ponte Nova.
Referências
Bacurau. Direção de Kleber Mendonça Filho. 131 minutos. Brasil, 2019
Coringa. Direção de Todd Phillips. 122 minutos. EUA, 2019.
O Poço. Direção de GalderGaztelu-Urrutia. 95 minutos. Espanha, 2019.
Parasita. Direção de BongJoon-ho. 132 minutos. Coréia do Sul, 2019.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo, n-1, 2019. (2003)
MILANOVIC, Branko. Global Innequality: A new approach for the age of globalization. Cambridge: Harvard University Press, 2016.
SCANLON, Thomas. Why does inequality matter? Oxford: Oxford University Press. 2018.
WILKINSON, Richard; PICKETT, Kate. The InnerLevel: How more equal societies reduce stress, restore sanity and improve everyone’swell-being. Nova York: Penguin, 2019.
WILKINSON, Richard; PICKETT, Kate. The Spirit Level: Why more equal societies almost always do better. Londres: Allen Lane, 2009.