Por DANIEL BRAZIL*
Comentário sobre o livro “O sensualismo alimentar em Portugal e no Brasil”, de Dante Costa
O sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) costuma encantar os leitores com seu texto fluente, saboroso, literário, onde subverte a ideia de que ensaios sociológicos devem ser pesados, acadêmicos, destituídos de qualquer concessão ao prazer. Casa Grande & Senzala, sua obra mais famosa, é cheia de descrições eróticas, engraçadas, musicais, apaixonadas. Freyre termina seu fabuloso ensaio falando de comida, e quase sentimos o cheiro das tapiocas, dos doces, dos tabuleiros das pretas quituteiras, dos “mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas, canjicas, acaçás, abarás, arroz-de-coco, feijão-de-coco, angus, pão-de-ló de arroz, pão-de-ló de milho, rolete de cana, queimados, isto é, rebuçados, etc.”
Toda vez que arrumo as prateleiras e sopeso o alentado volume (uma edição comemorativa dos 80 anos do autor, de 1980, com poemas de Drummond, Bandeira e João Cabral, desenhos de Santa Rosa, Cícero Dias e Poty), releio alguns trechos, fruindo o delicioso estilo do pernambucano.
Há alguns anos ganhei de um amigo um opúsculo editado em 1952 pelo Ministério da Educação e Saúde do Brasil. O título: O sensualismo alimentar em Portugal e no Brasil. O autor, Dante Costa. Confesso que nunca tinha ouvido falar do escritor. Uma pequena pesquisa mostra que escreveu outros títulos relacionados à alimentação, além de livros de viagem e até um O Socialismo.
A tese de Costa é a de que os portugueses têm uma relação de amor com a comida, e os brasileiros, desdém. Lá pelas tantas cita Freyre, claro, mas seu método de pesquisa é baseado na literatura, não em andanças pelos tabuleiros das baianas. Começa por Camões, de onde pinça versos do canto IX dos Lusíadas:
Mil árvores estão ao céu subindo
Como pomos odoríferos e belos:
A laranjeira tem no fruto lindo
A cor que tinha Daphne nos cabelos.
Encontra-se no chão, que está caindo,
A cidreira c’os pesos amarelos;
Os formosos limões, ali cheirando
Estão virgíneas tetas imitando.”
E Camões também fala de “amoras, que o nome tem de amores” entre outras saliências que mostram a forte relação dos portugueses com a comida desde os primórdios da língua. Nosso Dante cita Fialho D’Almeida, Eça de Queiroz (“o caráter de uma raça pode ser deduzido simplesmente do seu método de assar a carne”) e Ramalho Ortigão (“torrentes de ovos de fio brotam de rochedos de nogada, cobertos de chalets de massa, sobre tanques de torrão de Alicante, em que se abeberam pombas de rebuçado e boizinhos de pão-de-ló com chavelhas de açúcar e entranhas de creme.”).
Para ele, escritor brasileiro só fala de fome, não de comida. “A pobreza mutila-lhe muito da alegria. Com as outras, vai-se a alegria de comer”. Segundo Dante Costa, as descrições de jantares e acepipes ”são raras na literatura, porque são raras na vida mediana do povo.” Citando uma conferência de Joaquim Ribeiro, diz que “a fome, no Brasil, começou com a civilização”.
O ensaio foi publicado em 1952. Dante escreveria isso hoje? Se vivesse numa grande cidade brasileira, provavelmente não, a menos que focasse sua análise nas populações mais periféricas. Mas se passeasse pelo sertão nordestino, comprovaria a validade de sua tese. O que não significa que nos rincões mais desprovidos de Portugal a miséria alimentar também não existisse. Afinal, Eça e seus colegas de ofício viviam na cidade, não nos campos. Onde o sexo é só reprodução, não há sensualidade. Onde o ato de comer é somente uma questão de sobrevivência, não há como ser uma refinada fonte de prazer.
Mas o ensaísta se depararia com um fenômeno impressionante, no Brasil contemporâneo: a postagem de fotos de comida nas redes sociais. Significaria uma nova postura do brasileiro em relação à comida? A relação sensual com a alimentação estaria dominada pelo aspecto visual, antes dos outros sentidos?
Depende de que brasileiro estamos falando. Além dos casos clínicos de compulsão ou transtorno alimentar – e existem muitos na internet! –, há um ainda pouco estudado exibicionismo, que não oculta um sentimento de afirmação do nível social através da comida.
Quem era pobre e passou à condição de remediado, ostenta isso através do novo cardápio: “Veja o que eu estou comendo agora!”. A classe média, sempre aspirante ao luxo dos abastados, não perde a chance de, quando pode “comer fora”, ostentar a comilança nas redes. É quase impossível ir a um restaurante em São Paulo e não ver alguém na mesa ao lado fotografando o prato pedido. Desnecessário dizer que os verdadeiramente ricos e os verdadeiramente pobres, por motivos bem diversos, não praticam esse tipo de perversão.
Com a pandemia, este comportamento passou para o ambiente doméstico. Os pratos continuam sendo exibidos ad nauseam, agora com o acréscimo do “eu que fiz”. No entanto, quase sempre se nota o retro gosto de “eu posso”, ou “eu tenho”. Com poucas e honrosas exceções, o que se percebe não é um amor pelo alimento, mas pelo status que este confere ao indivíduo.
Pode-se dizer que a proliferação de programas culinários na TV, aberta ou fechada, na última década, contribuiu para o surgimento dessa nova seita de adoradores de comida. Mas não podemos esquecer o que Dante Costa percebeu, lá na década de 1950: ainda somos um país de famintos, onde esse tipo de exibicionismo não deixa de carregar um incômodo tempero de classe.
*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis(Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.