Por PAULO CAPEL NARVAI
A única batalha vencida foi a das vacinas. A guerra, portanto, não acabou e não é possível falar em vitória
“A ciência venceu Bolsonaro” repetem, na mídia comercial e nas redes sociais, políticos, profissionais de saúde, jornalistas e pessoas indignadas. É compreensível, mas equivocado, pois a frase contém erros. É certo que, sem conhecimentos científicos, não seria possível produzir as vacinas. É também correto que as vacinas colocam em outro patamar as possibilidades de contenção da propagação da pandemia de COVID-19 que, no primeiro mês de 2021, registra números inusitados no Brasil: mais de 8,5 milhões de casos e aproximadamente 215 mil mortes.
Mas falar em vitória, nesse contexto, é contribuir para disseminar uma ilusão. Não há vitória, embora Bolsonaro esteja sendo derrotado. Porém, a luta contra a pandemia está ainda muito longe de terminar. É, por isso, mais importante neste momento intensificar as lutas contra o principal fator de seu descontrole no Brasil: Jair Bolsonaro.
Em “a ciência venceu”, verbo e tempo verbal estão, portanto, errados.
Em primeiro lugar, o tempo verbal. “Venceu” está errado, pois posto assim no passado, dá a impressão de que “a guerra acabou”, quando foi travada apenas uma batalha, a das vacinas. Importantíssima, mas apenas uma batalha. Outras batalhas, também importantes, vêm sendo perdidas, como dentre outras, as batalhas dos testes de suspeitos, do rastreamento de contatos, do isolamento de doentes, da garantia do acesso universal aos leitos de que necessitam os doentes, do suporte econômico às famílias, do apoio aos profissionais de saúde e seus dependentes. A guerra, portanto, não acabou e não é possível falar em vitória. Muito menos colocá-la em tempo pretérito.
Em segundo lugar, “a ciência” e seu papel nas batalhas contra a pandemia. No episódio específico da batalha das vacinas, há um erro notável na identificação do sujeito que “venceu” o negacionismo, a arrogância ignorante, o descaso e a descarada sabotagem do presidente da República aos esforços para que tivéssemos vacinas. Aceitar que o sujeito dessa vitória foi “a ciência” é tão equivocado quanto admitir que quem derrotou Hitler foi “a razão” e que Mussolini foi batido pela força “da sociologia”.
Não se sabe, exatamente, quantas pessoas morreram para barrar Hitler e seus aliados na Europa e na Ásia, mas os historiadores convergem para algo em torno de 55 milhões. Cerca de metade desse número corresponde a mortes da então União Soviética. Dentre os mortos estão os ‘partigiani’ da Resistência italiana, o movimento armado de oposição ao fascismo. Foi pela ação político-militar desses homens e mulheres, vale ressaltar, que Hitler e Mussolini foram derrotados.
Bolsonaro foi derrotado na batalha das vacinas, mas não foi “a ciência” que o venceu. A ciência não vence, nem empata, nem é derrotada. Isto cabe aos cientistas e aos que lhes apoiam. Os sujeitos que movem a história são pessoas e suas vontades e, sobretudo, suas ações. Bolsonaro foi derrotado, portanto, não pela ciência, mas pelos que agiram contra ele e o que ele pensa, significa e faz – inclusive com relação à ciência.
Por essa razão, tendo ou não consciência disso, quem diz que “a ciência” venceu contribui para ocultar as ações políticas das pessoas que, opondo-se ao governo e ao presidente da República, impuseram-lhe uma derrota de grande significado estratégico.
É esta a perspectiva adotada pela mídia comercial, cuja origem é o pensamento de políticos autoritários, travestidos de democratas, como o ex-ministro da Saúde, Luiz Mandetta, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e o governador paulista João Dória, dentre outros. Todos foram protagonistas, em 2016, do golpe contra o Estado Democrático de Direito que tornou nulos os votos nas eleições presidenciais de 2014 e todos foram apoiadores de Bolsonaro no segundo turno de 2018. Nessa condição, são corresponsáveis pelo fato de ele estar hoje no comando da República, cúmplices indiretos do genocídio perpetrado desde o Palácio do Planalto.
Mas também vêm reproduzindo a tese de que “a ciência venceu”, várias lideranças do campo popular, que estão na linha de frente da defesa de direitos sociais e empenhadas na luta contra o governo liderado por Bolsonaro, por identificar nele o que denominam de “traços protofascistas”. Esses deveriam, a meu juízo, abandonar essa posição complacente, pois não há neutralidade nesses processos. Acreditar nisso é dar munição para inimigos da democracia, fortalecendo-os em sua pregação anticientífica, contraditoriamente tão medieval quanto contemporânea, cujo objetivo é justamente enganar e manipular com propósitos políticos.
Por essa razão, não basta recusar a afirmação de que “a ciência venceu”, mas se deve ir além, e alertar para o equívoco que é pretender despolitizar a ciência e as vacinas querendo, com isso, melhorar sua aceitação pela população. Há quem creia, a meu ver ingenuamente, que a ciência é neutra, que a vacina é assunto da ciência, não da política. É preciso afirmar o oposto disso e, sem rodeios, receios e paternalismos, dizer com todas as letras que, goste-se ou não, a política está no centro disso tudo, sendo um erro grave recusar esse fato. Tenho argumentado, como o fiz aqui mesmo, em março de 2020 (“Terraplanismo epidemiológico”), que “não se deveria ideologizar e partidarizar o fenômeno epidemiológico, prejudicando o seu enfrentamento com base em evidências científicas”. Mas não ideologizar nem partidarizar epidemias e vacinas não corresponde a negar que a política é inerente a tais assuntos.
Na batalha das vacinas, admitir que quem “venceu” foi “a ciência”, negando a importância das ações políticas que, em todo o país, tornaram possível impor a derrota das vacinas a Bolsonaro, corresponde a colocar o holofote iluminando apenas alguns políticos que vêm defendendo “a ciência” contra aqueles que não lhe estariam dando o devido valor. Ou seja, em políticos como Dória, Maia e Mandetta, dentre outros “sensatos”, “ponderados”, “de centro”, “democratas”.
Mas, se a ciência recomenda testar suspeitos, rastrear contatos, isolar doentes, assegurar o acesso universal aos leitos de que necessitam os doentes, criar e manter suporte econômico às famílias fortalecendo a seguridade social pública, apoiar os profissionais de saúde proporcionando-lhes adequadas condições de trabalho seguro e, em resumo, financiar adequadamente e fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), o que fazem no dia a dia os referidos políticos, reluzentes sob os holofotes?
Ignoram a ciência, ficando dela com apenas aquela parte que lhes interessa, e atacam o SUS, apesar de declararem defendê-lo, como demonstram seus atos, mais do que suas palavras. Todos, sem exceção, apoiaram a aprovação da Emenda Constitucional 95, de 2016, um dos primeiros atos do legislativo federal, após a destituição de Dilma Rousseff.
A EC-95/2016, conhecida como do “teto de gastos” (ou “EC da Morte”) sangra financeiramente o SUS, congelando por 20 anos seus recursos orçamentários, e se constitui, atualmente, na principal ameaça que paira sobre o nosso sistema universal. Todos, sem exceção, identificam-se com o modelo de SUS que Dória, e todos os governos liderados pelo PSDB, vem impondo no estado de São Paulo, que não prioriza a rede de serviços básicos e está centrado na unidade hospitalar como núcleo estruturante do sistema. Ambos, rede básica e hospitais, vêm sendo crescentemente terceirizados. A privatização, ocultada pela mídia comercial, inclui unidades como o Instituto Butantan e o Hospital Emílio Ribas.
Não se trata, por fim, de desmerecer a vitória contra Bolsonaro na batalha das vacinas, ainda que pairem muitas dúvidas sobre a disponibilidade do imunizante, para todos como deve ser, na rede do SUS. Foi uma vitória muito importante e teve contornos simbólicos do mais alto significado. Não deve haver, decerto, qualquer dúvida sobre a importância das vacinas e da luta para que o acesso a elas seja universal, conforme vêm defendendo os mais diferentes movimentos sociais.
É indispensável, porém, reconhecer o protagonismo e a enorme importância desses homens e mulheres que, sendo anônimos ou destacadas personalidades da vida pública, ousaram se opor e desafiar Bolsonaro e o séquito de fanáticos que o apoia. Foram eles, e não “a ciência”, que derrotaram o presidente da República nessa batalha.
Com sua vitória, dão enorme contribuição para a principal guerra que a democracia brasileira vem travando desde que, derrotados nas urnas em 2014, oportunistas de todo tipo optaram por desestabilizar o Estado Democrático de Direito e, rasgando a Constituição de 1988, viabilizaram o alpinismo aventureiro que ainda hoje permanece no comando do Executivo.
*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP.