Descarbonizar a economia global

Imagem: Lina Kivaka
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARIANA MAZZUCATO*

Apenas o setor público pode mobilizar e coordenar investimentos na escala necessária para descarbonizar a economia global

Nas últimas semanas, vários membros da Aliança Financeira de Glasgow Financial para Emissões Zero (GFANZ) – um grupo de 450 instituições financeiras – pularam fora devido a preocupações a respeito do custo de cumprir seus compromissos climáticos. Ao desistir, eles desmentiram a noção de que as instituições financeiras privadas podem liderar a transição para uma economia neutra em carbono. O que a transição realmente precisa é de Estados mais ambiciosos que vão além da regulação dos mercados para se tornarem formadores de mercado.

A abordagem liderada pelo mercado está enraizada na crença de que as instituições financeiras privadas alocam capital de forma mais eficaz do que qualquer outra instituição. A implicação é que os Estados devem abster-se de “escolher vencedores” ou “distorcer” a concorrência de mercado e limitar-se a “reduzir os riscos” das oportunidades de investimento verde para torná-las mais atraentes para os principais investidores privados.

Mas a história econômica moderna traz um relato diferente. Em muitos lugares e em muitas ocasiões, são os atores públicos que assumiram a liderança na formação e criação de mercados que, a partir de então, trazem benefícios tanto para o setor privado quanto para a sociedade em geral. Muitos dos grandes avanços tecnológicos que hoje achamos que são parte da vida aconteceram apenas porque entidades públicas fizeram investimentos que o setor privado considerou muito arriscados.

A história real é, portanto, bem diferente do mito predominante. Devemos muitos sucessos econômicos não a atores públicos que saíram do caminho, mas a um Estado empreendedor que assumiu a liderança. Além disso, a abordagem em que o mercado lidera está em desacordo com o objetivo de produzir uma transição verde global justa, na qual os custos e riscos sejam compartilhados de forma justa dentro dos e entre os países. “Reduzir os riscos” pressupõe uma estratégia que socializa os custos e privatiza os lucros.

O financiamento privado ainda tem um papel crucial a desempenhar, é claro. Mas apenas o setor público pode mobilizar e coordenar investimentos na escala necessária para descarbonizar a economia global. A questão, então, é o que essa abordagem deve incluir.

Primeiro, os Estados devem assumir seus papéis como “investidores de primeiro recurso”, em vez de esperar para intervir apenas como “credores de último recurso”. Em todo o mundo, as instituições financeiras públicas empregam muitos bilhões de dólares a cada ano e, devido ao seu design distinto e estruturas de governança, podem disponibilizar um tipo de finanças de longo prazo, paciente e orientado para as missões que o setor privado muitas vezes não está disposto a prover. As evidências mostram que empréstimos diretos de bancos públicos com boa governança podem desempenhar um poderoso papel de moldagem de mercado, informando percepções de futuras oportunidades de investimento.

Em segundo lugar, devemos repensar a relação entre o setor público e o privado, especialmente quando se trata de compartilhar riscos e recompensas. Quando entidades públicas assumem riscos para atingir objetivos sociais, o setor privado não deve se apropriar dos resultados financeiros.

Por exemplo, se um governo está financiando grandes projetos de energia renovável e outros investimentos verdes, pode ter uma participação acionária neles. Os retornos também podem ser socializados pela atribuição de uma proporção dos direitos de propriedade intelectual ao Estado, permitindo que os lucros sejam reinvestidos em novos projetos verdes. É importante ressaltar que as empresas que se beneficiam de finanças públicas devem estar sujeitas a condições que alinhem suas atividades comerciais com os objetivos da política industrial verde, práticas trabalhistas justas e outras prioridades.

Terceiro, para direcionar o investimento privado para atividades verdes e para reduzir o investimento em atividades prejudiciais, os Estados devem fortalecer e atualizar as regras que regem os mercados financeiros. Tal regime poderia incluir bancos centrais introduzindo políticad alocativas de crédito verde e regras e padrões como reforço regulatório para evitar lavagem verde e arbitragem regulatória.

Quarto, os formuladores de políticas devem reconhecer que o financiamento da dívida – fornecido tanto pelo setor público como pelo privado – não é necessariamente um substituto dos gastos fiscais diretos. A lógica dos instrumentos financeiros reembolsáveis não se concilia facilmente com as características de bem público de alguns investimentos relacionados ao clima. Investimentos em justiça climática e reflorestamento trarão retornos de longo alcance, mas não necessariamente do tipo que pode ser usado para pagar um empréstimo. Navegar por essas questões e entregar investimentos na escala necessária exigirá coordenação estratégica em todas as áreas de formulação de políticas sociais, ambientais, fiscais, monetárias e industriais.

Finalmente, deve-se fazer mais para fornecer espaço fiscal suficiente para que os países do Sul Global busquem suas próprias agendas domésticas de descarbonização e adaptação. Muitos países, incluindo aqueles que estão mais expostos ao colapso climático acelerado, estão enfrentando dívidas pendentes significativas. Agora é imperativo que os países devedores do Norte Global – que são responsáveis pela maior parte das emissões na atmosfera – ajudem a reduzir esses encargos por meio de cancelamentos de dívidas, reestruturação de dívidas, compensação de perdas e danos ou substituindo empréstimos climáticos por concessões climáticas.

Para limitar o catastrófico aquecimento global, o financiamento para mitigação e adaptação climática deve ser aumentado drasticamente. Mas a qualidade do financiamento também é importante. Em vez de manter a esperança de que as instituições financeiras privadas traduzam suas super-propagandeadas promessas de trilhões de dólares em emissões zero em ações críveis e responsáveis, devemos exigir que os Estados assumam o papel que lhes cabe. Isso significa mobilizar e direcionar as finanças para metas climáticas claras e ambiciosas e moldar os mercados financeiros para se alinharem a essas metas. Cobrir a lacuna de financiamento requer uma reformulação radical da arquitetura financeira e uma mudança substancial nos fluxos financeiros. Nenhuma das duas coisas vai acontecer sem intervenções políticas.

Para especificar as mudanças necessárias, vou moderar um painel só de mulheres na COP27 com a primeira-ministra de Barbados Mia Mottley, a diretora geral da OMC Ngozi Okonjo-Iweala, a ministra egípcia de Planejamento e Desenvolvimento Econômico Hala El Said e a primeira-ministra escocesa Nicola Sturgeon. Os desafios são urgentes. Se os Estados não assumirem a liderança no financiamento climático, a transição verde permanecerá fora de alcance.

*Mariana Mazzucato é professora de economia na Universidade de Sussex (EUA). Autora, entre outros livros, de O Estado empreendedor (Companhia das Letras).

Tradução: Maurício Ayer para o site Outras Palavras.

Publicado originalmente no site Project Syndicate

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES