Dialética do antipetismo

Rodchenko vermelho
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JEAN PIERRE CHAUVIN*

O mesmo casuísmo encontrado nas pautas morais reverbera na “ética” corporativa

Uma das coisas mais difíceis é o cidadão admitir seus preconceitos. Preconceitos? Digo mais: prevenção. Melhor dizendo, que fatores explicariam a rejeição de parte expressiva do eleitorado, inclusive aqueles que se intitulam “progressistas”, a candidatos afiliados ao Partido dos Trabalhadores? O primeiro deles terá caráter socioeconômico. Há aqueles que, sem admiti-lo, agem desse modo por se suporem refinados, supremos, distintos da “ralé”. Quer saber como identificar um desses espécimes? Basta ver como age servilmente com as pessoas um grau acima deles; e como trata seca e rispidamente aqueles em condição que supõem inferior à sua.

Seria óbvio recordar que parte do nosso comportamento encontra raízes no modo como fomos criados (e, por extensão, nos clubes, associações e demais ambientes recomendados por vovó-vovô, titio, titia, papai-e-mamãe ou amigos). Além da tríade patriarcado, apologia da família e moral de ocasião, é inegável que muitos agem dessa ou daquela maneira sem compreender onde, por que e como essas e outras repulsas nascem. Quantos dentre nós levou vida dupla durante a adolescência, por não poder conversar sobre assuntos “proibidos” com os pais?

Ai dos filhos de hoje, se chegarem em casa com botons e adesivos de campanha, ou livros sobre revolução, sindicalismo, entreguismo militar brasileiro, aporofobia, ou mesmo vídeos sobre democracia moderna. É que o “cidadão de bem” suporta quase todos os excessos de suas crias (“coisa da idade”); mas elas que não ousem falar sobre políticas públicas, pautas inclusivas, criação de oportunidades, combate aos preconceitos, desarmamento, assistência social ou distribuição de renda.

Para além da impostura que se funda na mania de distinção social, alimentada no aconchego do lar e reforçada nos círculos mais ou menos restritos, a resistência a votar em petistas costuma se associar ao franco corporativismo. Cada área, cada setor, cada autônomo, pessoa jurídica, profissional liberal costuma encontrar “justificativas” para transformar o outro (ou seja, quem pensa além dos interesses mesquinhos da sua categoria) em bestas feras comunistas, endemoniadas, simplórias e desordeiras.

O mesmo casuísmo encontrado nas pautas morais reverbera na “ética” corporativa. Quem não se recorda do alarde feito pelos médicos, São Paulo afora, quando o PT levou o programa Mais Médicos às cidades de difícil acesso à população carente, onde nenhum “doutor” aceitaria trabalhar? Quem não foi interpelado pela dentista – indignada ao descobrir que o seu cliente, pacato, ordeiro, pagador em dia, votava contra o ultraliberalismo, a hipocrisia moralista e o patriotismo entreguista? Quem nunca levou bordoada de motorista de aplicativo, a sugerir que votar em candidatos da “extrema esquerda” seria sinal de radicalismo?

Radicalismo, vejam bem! Radicalismo… Quantas vezes os bancos foram salvos (e quanto lucraram?) durante os mandatos de Lula e Dilma? Quantos incentivos ao macro e microempreendedorismo foram criados, durante os seus governos? E quantas vagas, nos cursos superiores e mercado de trabalho? O mesmo “radicalismo” também permitiu que manifestantes ocupassem livre e irrestritamente o palácio do governo, em 2013, durante as pretensiosas “jornadas de junho”, logo cooptadas pela extrema-direita (esta, financiada por empresários norte-americanos e “nacionalistas” que moram em Orlando). A postura da presidenta foi tão “radical” que, no dia seguinte ao ato na esplanada, Dilma Rousseff veio a público defender o direito do povo se manifestar… Não me venham dizer que uma pessoa com seu histórico e caráter teria sido demagoga, naquela ocasião.

Porém, há outra camada onde os preconceitos, as prevenções e as rejeições encontraram maior reverberação, desde 2013: a esfera semi-individual. Seria o caso de contabilizar e refletir sobre a proporção de eleitores que votaram segundo a “recomendação” dos pais; ou conforme o “ensinamento” do seu líder religioso; ou ainda, em acordo com a “ordem” do patrão.

O que isso sugere? (1) Que o chamado voto de cabresto persiste desde os tempos dos “coronéis”, fincados nos latifúndios improdutivos deste território durante a Primeira República. (2) Que a suposta autonomia de pensamento (o tal voto consciente) às vezes é uma quimera: somente uma pessoa que desconhece e/ou despreza as múltiplas formas de conhecimento e saber, acredita pensar sozinha e eleger alguém por conta própria. Se eu tivesse maior audácia, repetiria aquele refrão paradoxal do Humberto Gessinger: “Ouça o que eu digo: não ouça ninguém”.

Convenhamos: é por esses e outros fatores indesculpáveis que precisamos dar a tal estado de coisas denominação mais precisa. Não se trata apenas de ideias preconcebidas contra uma legenda partidária – o que é muito grave –, mas um misto de prevenção contra o povo e de rejeição ao que está embutido nas políticas sociais. Seria menos desonesto os antipetistas se definirem desse modo, especialmente quando persistem em se abster, anular o voto ou renovar o crédito no destruidor-mor (a despeito de testemunharem quatro anos de desgoverno neofascista, mancomunado com os setores mais nefastos e perigosos da sociedade).

Agora, se a alegação do voto contra o PT repousar em protesto contra a corrupção, aí será desfaçatez pura e simples de quem sonega imposto; orgulha-se das oportunidades e zomba dos desfavorecidos; que simula incapacidade de enxergar rachadinhas, ou a compra de 57 imóveis com dinheiro vivo; que ainda defende a operação lavajatista, made in USA (orquestrada pelo então juiz que pretendia fazer carreira como ministro do candidato que ajudou a eleger) etc., etc., etc. A defesa de um efetivo projeto de país soberano e menos desigual, pautado pelo estado democrático de direito, deveria se situar bem antes e acima do nojinho pessoal, da tradição sem-sentido ou da cafonice de classe.

Por gentileza, faça diferença para si e para os outros, no dia 30.

*Jean Pierre Chauvin é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Mil, uma distopia (Luva Editora).

 

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores. Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES