Por JEAN PIERRE CHAUVIN*
O mesmo casuísmo encontrado nas pautas morais reverbera na “ética” corporativa
Uma das coisas mais difíceis é o cidadão admitir seus preconceitos. Preconceitos? Digo mais: prevenção. Melhor dizendo, que fatores explicariam a rejeição de parte expressiva do eleitorado, inclusive aqueles que se intitulam “progressistas”, a candidatos afiliados ao Partido dos Trabalhadores? O primeiro deles terá caráter socioeconômico. Há aqueles que, sem admiti-lo, agem desse modo por se suporem refinados, supremos, distintos da “ralé”. Quer saber como identificar um desses espécimes? Basta ver como age servilmente com as pessoas um grau acima deles; e como trata seca e rispidamente aqueles em condição que supõem inferior à sua.
Seria óbvio recordar que parte do nosso comportamento encontra raízes no modo como fomos criados (e, por extensão, nos clubes, associações e demais ambientes recomendados por vovó-vovô, titio, titia, papai-e-mamãe ou amigos). Além da tríade patriarcado, apologia da família e moral de ocasião, é inegável que muitos agem dessa ou daquela maneira sem compreender onde, por que e como essas e outras repulsas nascem. Quantos dentre nós levou vida dupla durante a adolescência, por não poder conversar sobre assuntos “proibidos” com os pais?
Ai dos filhos de hoje, se chegarem em casa com botons e adesivos de campanha, ou livros sobre revolução, sindicalismo, entreguismo militar brasileiro, aporofobia, ou mesmo vídeos sobre democracia moderna. É que o “cidadão de bem” suporta quase todos os excessos de suas crias (“coisa da idade”); mas elas que não ousem falar sobre políticas públicas, pautas inclusivas, criação de oportunidades, combate aos preconceitos, desarmamento, assistência social ou distribuição de renda.
Para além da impostura que se funda na mania de distinção social, alimentada no aconchego do lar e reforçada nos círculos mais ou menos restritos, a resistência a votar em petistas costuma se associar ao franco corporativismo. Cada área, cada setor, cada autônomo, pessoa jurídica, profissional liberal costuma encontrar “justificativas” para transformar o outro (ou seja, quem pensa além dos interesses mesquinhos da sua categoria) em bestas feras comunistas, endemoniadas, simplórias e desordeiras.
O mesmo casuísmo encontrado nas pautas morais reverbera na “ética” corporativa. Quem não se recorda do alarde feito pelos médicos, São Paulo afora, quando o PT levou o programa Mais Médicos às cidades de difícil acesso à população carente, onde nenhum “doutor” aceitaria trabalhar? Quem não foi interpelado pela dentista – indignada ao descobrir que o seu cliente, pacato, ordeiro, pagador em dia, votava contra o ultraliberalismo, a hipocrisia moralista e o patriotismo entreguista? Quem nunca levou bordoada de motorista de aplicativo, a sugerir que votar em candidatos da “extrema esquerda” seria sinal de radicalismo?
Radicalismo, vejam bem! Radicalismo… Quantas vezes os bancos foram salvos (e quanto lucraram?) durante os mandatos de Lula e Dilma? Quantos incentivos ao macro e microempreendedorismo foram criados, durante os seus governos? E quantas vagas, nos cursos superiores e mercado de trabalho? O mesmo “radicalismo” também permitiu que manifestantes ocupassem livre e irrestritamente o palácio do governo, em 2013, durante as pretensiosas “jornadas de junho”, logo cooptadas pela extrema-direita (esta, financiada por empresários norte-americanos e “nacionalistas” que moram em Orlando). A postura da presidenta foi tão “radical” que, no dia seguinte ao ato na esplanada, Dilma Rousseff veio a público defender o direito do povo se manifestar… Não me venham dizer que uma pessoa com seu histórico e caráter teria sido demagoga, naquela ocasião.
Porém, há outra camada onde os preconceitos, as prevenções e as rejeições encontraram maior reverberação, desde 2013: a esfera semi-individual. Seria o caso de contabilizar e refletir sobre a proporção de eleitores que votaram segundo a “recomendação” dos pais; ou conforme o “ensinamento” do seu líder religioso; ou ainda, em acordo com a “ordem” do patrão.
O que isso sugere? (1) Que o chamado voto de cabresto persiste desde os tempos dos “coronéis”, fincados nos latifúndios improdutivos deste território durante a Primeira República. (2) Que a suposta autonomia de pensamento (o tal voto consciente) às vezes é uma quimera: somente uma pessoa que desconhece e/ou despreza as múltiplas formas de conhecimento e saber, acredita pensar sozinha e eleger alguém por conta própria. Se eu tivesse maior audácia, repetiria aquele refrão paradoxal do Humberto Gessinger: “Ouça o que eu digo: não ouça ninguém”.
Convenhamos: é por esses e outros fatores indesculpáveis que precisamos dar a tal estado de coisas denominação mais precisa. Não se trata apenas de ideias preconcebidas contra uma legenda partidária – o que é muito grave –, mas um misto de prevenção contra o povo e de rejeição ao que está embutido nas políticas sociais. Seria menos desonesto os antipetistas se definirem desse modo, especialmente quando persistem em se abster, anular o voto ou renovar o crédito no destruidor-mor (a despeito de testemunharem quatro anos de desgoverno neofascista, mancomunado com os setores mais nefastos e perigosos da sociedade).
Agora, se a alegação do voto contra o PT repousar em protesto contra a corrupção, aí será desfaçatez pura e simples de quem sonega imposto; orgulha-se das oportunidades e zomba dos desfavorecidos; que simula incapacidade de enxergar rachadinhas, ou a compra de 57 imóveis com dinheiro vivo; que ainda defende a operação lavajatista, made in USA (orquestrada pelo então juiz que pretendia fazer carreira como ministro do candidato que ajudou a eleger) etc., etc., etc. A defesa de um efetivo projeto de país soberano e menos desigual, pautado pelo estado democrático de direito, deveria se situar bem antes e acima do nojinho pessoal, da tradição sem-sentido ou da cafonice de classe.
Por gentileza, faça diferença para si e para os outros, no dia 30.
*Jean Pierre Chauvin é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Mil, uma distopia (Luva Editora).
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