Por JEFFERSON NASCIMENTO*
As concessões ao Centrão não configuram um estelionato eleitoral, Lula foi bem claro no segundo turno, ao afirmar que governaria com o Congresso eleito
Roger Eatwell e Mathew Goodwin escreveram o livro Nacional populismo – a revolta contra a democracia liberal (Record). Na obra, reconhecem que a base social é diferente, mas incluem o bolsonarismo como fenômeno associado ao nacional-populismo, cujos principais expoentes são Donald Trump (Estados Unidos), Viktor Orbán (Hungria), Marine Le Pen (França) e o movimento pelo Brexit (Reino Unido).[i]
Os autores explicam que o movimento emergiu de uma revolta crescente contra o sistema político e a liberalização dos costumes e argumentam que a influência sobre os outros partidos e o sistema político tende a ser duradoura. Considerando que Roger Eatwell e Mathew Goodwin associam o bolsonarismo ao nacional-populismo, resgato alguns argumentos e projeto o contexto brasileiro para os próximos anos.
Roger Eatwell e Mathew Goodwin identificam quatro mudanças sociais na origem desse movimento político. Existe crescente (i) desconfiança em relação aos políticos e às instituições,[ii] verifica-se forte rejeição à liberalização dos costumes pelo (ii) medo da possível destruição das comunidades, da identidade histórica do grupo nacional e dos modos estabelecidos de vida; onde o nacional-populismo e movimentos associados mais se fortaleceram houve (iii) desalinhamento de partidos tradicionais (no Brasil, o encolhimento do PSDB está relacionado às alterações significativas nas disputas eleitorais e no comportamento da centro-direita e da direita institucional); e, destaco aqui, (iv) a privação relativa.
Os psicólogos chamam de privação relativa à crença de um indivíduo de que está perdendo em relação aos outros. A economia globalizada neoliberal fortaleceu essa sensação em função das crescentes desigualdades de renda e riqueza e da falta de expectativa em um futuro melhor. Essa sensação se relaciona com a maneira como as pessoas pensam a imigração, a identidade e a confiança nos políticos; e se traduz na crença de que o passado era melhor e de que o futuro será ainda pior.
Roger Eatwell e Mathew Goodwin, no entanto, verificaram que nos Estados Unidos a maioria dos adeptos não são desempregados e dependentes de programas sociais e sequer está no degrau debaixo, mas partilham da convicção de que o arranjo atual é prejudicial para elas por priorizar outros indivíduos e segmentos sociais. Esse ponto não explica sozinho, mas ajuda a compreender a maciça adesão ao bolsonarismo de segmentos da classe média, pequenos e médios empresários e certos segmentos trabalhadores (como autônomos, informais etc.).
Existe um processo silencioso no Brasil que favorece a sensação de privação relativa e que tende a fortalecer o campo bolsonarismo e seus aliados nas próximas eleições. E é principalmente disso que vamos tratar, buscando identificar causas materiais para essa sensação, sem reduzir a questão aos aspectos psicológicos. Estamos diante de uma redução do desemprego/desocupação aparentemente consistente. Observemos o gráfico abaixo:
No entanto, a euforia em torno desses números sobre ocupação, esconde que a geração de postos de emprego, apesar dos ótimos números de empregos formais, segundo o CAGED, tem sido puxada por ocupações de remunerações menores, com crescimento de modalidades mais precarizadas (intermitente, temporário e terceirizado). Ou seja, a queda do desemprego está combinada com uma recuperação do rendimento mensal médio muito tímida e inferior à inflação. Vejamos o gráfico a seguir.
Ora, é possível argumentar que o processo de recuperação é complexo e exige tempo. Estou de acordo com esse ponto, mas é preciso identificar as causas que tendem fortalecer o bolsonarismo e podem ser parte da queda de popularidade do governo Lula nas últimas pesquisas. Para isso, é necessário pontuar problemas materiais e não efeitos da desinformação e/ou do claro viés oposicionista de alguns meios de comunicação, como Gazeta do Povo, Estadão e Folha de S. Paulo.
Assim, é preciso pontuar que apenas agora estamos retornando aos níveis de rendimento médio pré-pandemia e ainda abaixo que o primeiro trimestre de 2021. E há um agravante: no período, a inflação acumulada é de 19,46%. Isto é, para que o poder de compra fosse o mesmo do primeiro trimestre de 2021, o rendimento médio deveria estar em R$ 3.574,34 (e não estamos considerando o pico do rendimento médio, acima dos R$ 3.139,00 entre maio e setembro de 2020; que significaria um rendimento médio corrigido acima de R$ 3.749,00)[iii]. É também disso que se trata a privação relativa: a euforia e os festejos em torno do crescimento da ocupação escondem a depreciação do poder de compra dos trabalhadores. A comemoração em torno de dados isolados como provas da melhoria da economia reforça a sensação de muitos trabalhadores de que estão realmente sendo deixados para trás.
As pesquisas mostram que não se trata de ilações. A aprovação do governo vem caindo consideravelmente e a avaliação sobre a economia é mais negativa que positiva. Na pesquisa Retratos da Sociedade Brasileira — Economia e População feita pela Confederação Nacional da Indústria (CNI),[iv] apesar 45% da população admitir a melhora da economia nos últimos seis meses, a avaliação negativa sobre o quadro econômico atual é maior que a positiva: 38% consideram ruim ou péssimo contra apenas 24% avaliando como bom ou ótimo. Outro ponto é que 22% da população crê na piora da situação nos próximos seis meses e 21% acredita que nada deve mudar. Existe ainda uma maioria que acredita na melhora da economia nos próximos seis meses: 53%. A questão é: como não frustrar essas expectativas se o governo continuar a agir do mesmo modo?
Um exercício simples de projeção é o seguinte: o novo governo Lula, mais comprometido com o receituário neoliberal do que contavam suas propagandas eleitorais, tende a piorar as condições materiais da classe trabalhadora. A inexplicável promessa de déficit zero de Fernando Haddad ameaça uma série de funções sociais do Estado e promoverá um desinvestimento que contradiz as promessas de um novo PAC, como uma nova indução do crescimento econômico coordenada pelo governo. Todos esses fatores materiais são agravados pela péssima condução das estratégias de comunicação do governo com o povo.
Existe um erro nas premissas adotadas. É fato que os eleitores bolsonaristas, tal qual os eleitores do nacional-populismo, não são transacionais e que a melhoria pura e simples das condições materiais não desmobilizará o bolsonarismo. Portanto, trata-se de um movimento que prioriza a cultura e os interesses da nação fortemente relacionado à descrença em relação ao sistema político e a aversão à liberalização dos costumes. No entanto, também tal qual o nacional-populismo, promete dar voz a pessoas que se sentem negligenciadas e/ou desprezadas por elites políticas.
E é justamente nesse ponto que o abandono até mesmo da conciliação de classes para um neoliberalismo completo e a incapacidade de dialogar com as pessoas desmobiliza uma base social que poderia sustentar o governo Lula e afugenta os eleitores pragmáticos que depositam em Lula a esperança de um novo 2003-2010 ou, ao menos, uma opção menos pior que o governo de Jair Bolsonaro. Em suma: a continuar desse modo, o governo Lula estará sendo o maior cabo eleitoral do bolsonarismo e/ou aliados para as eleições municipais de 2024 e para a nacional de 2026.
As escolhas de Lula são, em sua maioria questionáveis. Para começar, Lula deixa a impressão ao grande público de ter abandonado a chefia de governo em favor de um consórcio encabeçado pelos neoliberais, fazendo concessões ao Centrão e abandonando pautas à esquerda que foram bandeiras de campanha. Sobre os neoliberais, já mencionamos Fernando Haddad; e, há ainda, Camilo Santana, encabeçando o Ministério da Educação, assumindo os compromissos que Izolda Cela já havia feito no Ceará com entidades empresariais interessadas na educação, como a Fundação Lehman.
As concessões ao Centrão não configuram um estelionato eleitoral, Lula foi bem claro no segundo turno, ao afirmar que governaria com o Congresso eleito; o ponto é a ineficaz comunicação favorecendo a retórica bolsonarista, que se notabilizou pelo domínio da comunicação nas redes sociais e vem revertendo os efeitos deletérios da publicização da aliança Jair Bolsonaro-Centrão. Por fim, padecem de inanição pastas cujos temas foram intensamente usados como estratégia de contraposição ao bolsonarismo, como Meio Ambiente, Igualdade Racial e Povos Indígenas, relegando ao ostracismo Marina Silva (apesar do afago feito por Lula na COP), Anielle Franco e Sônia Guajajara. Em outras palavras: Lula parece não governar.
O terceiro mandato, até o momento, se destaca pelas ações de chefia de Estado, notadamente nas relações exteriores. Lula reposicionou o Brasil com destaque nos grandes debates, como a questão climática, a Guerra da Ucrânia e o genocídio de Israel sobre os palestinos. Portanto, o sucesso do governo, com Mauro Vieira e o Itamaraty, está sendo nortear o Brasil rumo ao resgate do histórico destaque do Brasil nas políticas externas.
É quase o oposto de Jair Bolsonaro, que concentrou a atuação na política externa em algumas alianças estratégicas, seja por motivos ideológicos (Trump, Estado de Israel, Orbán, etc.), seja por interesses econômicos de setores apoiadores da burguesia (Rússia, lideranças de países árabes como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, e outros). Em termos de grandes questões, Jair Bolsonaro secundarizou o papel do Brasil. Inclusive, com acenos ideológicos e econômicos para seus apoiadores em questões climáticas e em questões de saúde durante a Covid-19. Excetuando, a sua tentativa de colar sua visita à Rússia e sua conversa com Putin à busca pela paz no conflito russo-ucraniano.
De modo distinto, Jair Bolsonaro soube manter sua base social ativa. Cedeu mais diretamente a gestão da economia aos agentes do mercado, por meio de Paulo Guedes, e fez grandes concessões ao Centrão para garantir governabilidade – até mais evidentes que Lula. Porém, Jair Bolsonaro não abriu mão de imprimir sua marca em elementos culturais caros aos seus eleitores. Na educação, apesar da dificuldade de avançar sobre as Universidades e Institutos Federais, devido à autonomia dessas instituições, Weintraub e Milton Ribeiro implantaram as escolas cívico-militares difundindo uma visão de sociedade e acomodando militares da reserva em cargos; também, manteve agitado debates sobre as questões relativas à história, diversidade e justiça social (gênero, temáticas étnico-raciais, Ditadura Militar, etc.).
Essa agitação era complementada pela intensa atuação de Damares Alves no Ministério da Família, com acesso a uma importante rede de conselheiros tutelares pelo Brasil. Para tudo isso funcionar, Jair Bolsonaro e sua equipe cuidou muito bem da comunicação, colocando em suspeição a mídia tradicional, atacou instituições, como o STF, e estabeleceu uma forma de acesso aos apoiadores sem mediação (grupos no Telegram, lives semanais, perfis nas redes sociais dele e de influencers apoiadores). Essa forma de agir garantia uma agitação constante e, dada a característica não-transacional, o bolsonarismo manteve uma ampla base social mesmo em um cenário de indicadores muito ruins com uma gestão catastrófica na pandemia de Covid-19.
Mesmo as nomeações para a PGR e o STF, foram muito coerentes e geraram condições políticas favoráveis para Jair Bolsonaro perante sua base. Augusto Aras, ao atuar em sintonia com o governo, melhorou as condições para a comunicação bolsonarista vender a ideia de um governo quase sem corrupção, em oposição aos corruptos governos anteriores, e estava alinhado aos valores conservadores nas pautas morais (contra questões de gênero e contra criminalização da homofobia). Kássio Nunes Marques e André Mendonça têm votado sistematicamente favorável ao ideário bolsonarista, levando ao STF o conservadorismo moral, ampliação da base neoliberal na Suprema Corte e o compromisso com as lideranças políticas bolsonaristas e seus aliados. Os eleitores bolsonaristas, críticos ferrenhos do STF, passaram a ver os indicados de Jair Bolsonaro como resistência aos supostos interesses dominantes do sistema político.
O governo Lula sequer consegue mobilizar constantemente sua base em temas caros aos chamados setores progressistas. Representantes desses setores, que eram considerados ideologicamente centrais (pelo menos durante a campanha), pouco aparecem e dispõem de poucos recursos para agir significativamente. Além disso, suas nomeações – como já tinha se tornado praxe nos 13 anos de presidência petista – não apresentam compromissos claros em temas morais nem em pautas econômicas. Cristiano Zanin – supostamente indicado por ser garantista – agradou até bolsonaristas por suas posições morais conservadores e têm votado contra os trabalhadores. Para a PGR, Paulo Gonet Branco – que já foi sócio de Gilmar Mendes – possui uma trajetória técnica, mas possui perfil conservador com posições contrárias aos grupos que mais apoiam Lula (contra as cotas, contra a descriminalização do aborto e contra a criminalização da homofobia). Ainda que tenha votado favorável à inelegibilidade de Jair Bolsonaro nas duas ações (reunião com embaixadores e uso do 7 de Setembro), ele dificilmente iniciará ações ou dará pareceres favoráveis às minorias. Resta avaliar como agirá Flávio Dino no STF.
Estamos diante de pistas muito claras de que as condições estão favoráveis ao bolsonarismo e aliados, ou outras lideranças que venha por uma posição similar entre a extrema-direita e o populismo autoritário de direita. A manutenção do núcleo de sua base social, que não é transacional e nem se guia apenas por questões econômicas, pode ser incrementada por uma quantidade significativa de trabalhadores que perdem qualidade de vida, dia após dia, e se deparam duramente com uma propaganda mal formulada que comemora dados recortando-os do seu contexto.
A extrema direita, os nacional-populistas mundo afora e o bolsonarismo no Brasil se especializaram em ser antissistêmico e em alimentar utopias que os políticos de esquerda abriram mão ao se integrarem a ordem. Defender o status quo e se acomodar às regras do jogo é entregar a maioria da população ao canto da sereia: apesar do discurso aparentemente inovador, se trata de uma radicalização das condições atuais. Na Europa e no trumpismo, um nacionalismo contrário aos imigrantes; no Brasil e outros países latino-americanos, um neoliberalismo ou ultraliberalismo acelerado por um Estado cada vez mais repressor, excluindo minorias políticas e grupos étnicos e gêneros politicamente subordinados.
Me recordo de uma frase do professor argentino Emilio Taddei em uma aula sobre as transformações políticas na América Latina: o neoliberalismo tornou a dívida uma moratória do futuro. A riqueza dessa frase capta o problema do debate sobre austeridade e déficit zero, que sacrificam funções sociais do Estado – vitais para a maciça maioria da população. Do mesmo modo, o endividamento pessoal ou familiar rouba a possibilidade sonhar e torna o trabalho como um exercício diário de pagar o ontem.
Nesse último ponto, sejamos justos, há ações do governo que podem resgatar o ânimo de parte da sociedade (Desenrola e quitação do Minha Casa Minha Vida para família inscrita no Cadastro Único). No entanto, surge uma importante questão: quais as ações contemplam a centralidade do trabalho na vida das pessoas em busca de dignidade?
Se o perdão de dívidas pode diminuir a massa que trabalha diariamente para pagar o ontem, a redução do rendimento médio ainda condena uma maioria a não projetar o amanhã. Se o neoliberalismo penhora seu futuro e a esquerda propõe acomodação, essas vertentes da direita autoritária se fortalecem ao não terem pudor de colocar fantasias antissistêmicas.
*Jefferson Nascimento é professor de ciência política no Instituto Federal de São Paulo. Autor do livro Ellen Wood – o resgate da classe e a luta pela democracia (Appris).
Notas
[i] A classificação do bolsonarismo ainda é um debate em aberto, há quem chame de populismo autoritário de direita, populismo de direita, neofascismo, extrema-direita, entre outros. O cerne desse texto não é participar desse debate para classificar o bolsonarismo, o resgate do livro citado visa apenas considerar alguns argumentos que cabem no caso brasileiro.
[ii] A natureza elitista da democracia representativa alimenta a sensação de que grande parte dos cidadãos não possuem voz no debate nacional. É fato que a democracia liberal sempre procurou minimizar a participação das massas, como é possível ver na obra “Os Federalistas” (Federalist Papers). Alexander Hamilton, por exemplo, sugeriu que “os comerciantes eram os representantes naturais dos artesãos e trabalhadores”, defendendo um filtro econômico na representação. A pressão impediu que a ideia deste “Pai fundador” constasse na Constituição; no entanto, o desenho institucional da República Federativa dos Estados Unidos impôs outros obstáculos para a inserção no debate político. A democracia representativa liberal dos Estados Unidos serviu de modelo para parte significativa dos desenhos institucionais, inclusive do Brasil. No entanto, cumpre ressaltar que a distância das pessoas em relação ao poder parece aumentar continuamente com o avanço do receituário neoliberal, reduzindo a capacidade de responsividade do Estado.
[iii] Correções monetárias apenas pelos índices oficiais fornecidos pelo IBGE, sem considerar os impactos desiguais sobre as menores renda da inflação dos últimos anos que, sobretudo entre 2021 e 2023, se concentrou em produtos e serviços essenciais.
[iv] Ver https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/10/24/brasileiros-consideram-situacao-da-economia-ruim-mas-acreditam-que-ela-vai-melhorar-nos-proximos-6-meses.ghtml
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