Em (e por) Cuba

René Burri, Cartaz de Che Guevara, 1993.
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Por ANTONIO CANDIDO*

A Ilha representa para os outros povos latino-americanos o exemplo de como é possível alcançar o máximo de justiça social realizável

Estive em Cuba vinte e seis dias, de janeiro a fevereiro de 1979, como membro de uma das comissões julgadoras do prêmio anual Casa de las Américas. São prêmios de romance, conto, poesia, ensaio, literatura infantil, testemunho para autores latino-americanos ou residentes em país da América Latina. A partir de 1979 incluíram-se prêmios de poesia e ficção para escritores antilhanos da língua francesa e inglesa. A partir de 1980 haverá para os brasileiros um prêmio em língua portuguesa nos diversos gêneros. Um dos significados mais importantes desse prêmio é o fato de promover anualmente o encontro de intelectuais de todos os países da América Latina, sem ter sob a égide de algum país imperialista.

Fiz parte da comissão do prêmio de ensaio com mais quatro companheiros: um argentino, um cubano, um porto-riquenho e uma russa. Indicamos três obras, das quais, uma deveria ser escolhida; mas acabaram sendo as três, porque havia vagas devidas a prêmios não atribuídos. Os autores premiados foram um porto-riquenho de orientação marxista; um guatemalteco meio goldmaniano, com algum Bakhtine e certo estruturalismo; uma mexicana que seguia a tradição das monografias de cunho positivo, sem qualquer referência ideológica intencional.

A estadia foi fascinante, mas trabalhosa, porque havia muita matéria para ler em poucos dias. Por isso não foi possível aproveitar todas as oportunidades oferecidas pelos anfitriões: visitas a instituições educacionais, assistenciais, culturais; exposições, espetáculos, concertos, conferências, projeções de filmes; visitas a fazendas e cooperativas etc. Não foi possível, sobretudo andar à vontade pelo Interior, conviver mais intimamente com o povo, penetrar pelo quotidiano adentro com a curiosidade natural de quem visita pela primeira vez um país socialista e quer ver como funciona. O que valeu foi a leitura prévia dos livros recentes de brasileiros, como Fernando Morais, Jorge Escosteguy e Ignácio de Loyola. (Só na volta li o de Antônio Callado). Os dois primeiros tinham ido lá para observar e escrever, em tempo integral; mas Ignácio de Loyola, não sei como pôde funcionar ativamente numa comissão de prêmio e ainda por cima ver e anotar tanta coisa para o seu livro. Os três tornaram possível uma preparação relativa para a visita.

Ajudou também muito César Vieira, que estava na comissão para obras teatrais e, tendo antes visitado Cuba com seu grupo de teatro, conhecia bem as coisas. Além disso, me vali de conversas e andanças com brasileiros residentes lá, alguns fazia muito tempo; de colegas das comissões que tinham experiência do país; dos próprios cubanos, sempre prontos a informar, discutir e ouvir.

Não foram, portanto, vinte e cinco dias despreparados. Além disso, em circunstância como esta ocorre uma espécie de experiência condensada, por causa da capacidade de ver e assimilar mais do que em períodos normais. A convivência ganha um toque de intensidade, a observação se aguça, os poros da mente ficam mais abertos e a curiosidade calça botas de sete léguas na percepção. Por isso tenho certa confiança nas minhas impressões.

Sendo programadas pelos hospedeiros, as nossas experiências se concentraram nos aspectos positivos do país, que são surpreendentes nos setores que pude ver: vida cultural, escola, organização assistencial e agrícola, artes. Nada vi da indústria nem dos mecanismos do governo. Mas nas brechas dos programas e tanto quanto permite a dificuldade dos transportes urbanos, andei pelas ruas, fui a restaurantes, vi alguma coisa dos Comitês de Defesa da Revolução, tive certos contactos na zona residencial atulhada do centro de Havana. E muitas conversas de rua, fáceis entre gente tão amável e comunicativa. Estive mesmo quase participando de uma discussão de jardim, sobre se um trilhão é mil vezes ou cem vezes mais do que um bilhão, sendo que o defensor da primeira hipótese explicava com o seu ar de aposentado que no mundo “hay millonarios, hay billonarios, pero no hay trillonarios”. Todos mais velhos que eu, alegres, talvez um pouco bebidos, de charuto na boca, tomando a fresca da tarde à sombra da estátua velha de Martí.

O cubano que encontramos na rua e nas reuniões parece em geral alegre, desanuviado, altivo e sem sombra de cafajestismo. Nunca se tem a impressão do povo acabrunhado ou constrangido, que chama a atenção do visitante em certos países. É como se igualdade social, abolindo as classes privilegiadas, suprimisse também o impulso de as macaquear, a vontade deprimente de parecer com elas; e assim instaura um modo de ser ao mesmo tempo natural e confiante. No caso de Cuba isto é devido também ao fato de todos terem adquirido uma espécie de orgulho confortador por causa das vitórias sobre el enemigo (e que inimigo, ali a uns poucos quilômetros, com a maior força do mundo). E por causa da superação das fases mais duras na luta pela construção do país socialista.

Quando estávamos voltando para Havana, depois de quase uma semana perto de Cienfuegos, fomos até a Baía dos Porcos ver o local e o museu relativo à fracassada invasão dos expatriados, custeada e orientada pelos Estados Unidos no tempo de Kennedy. Foi quando Jesus Díaz, excelente contista e cineasta, se pôs a relatar as manobras de forças convergindo para enfrentar o desembarque, algumas por aquele caminho, outras pela redondeza. Ele, que era então muito jovem, comandava um pelotão. Quando estava dizendo isto, levantou-se e veio vindo o encarregado do ônibus (que fica perto do motorista) e confraternizou, dando também as suas informações. Era mais velho que Jesus, tinha um tipo popular decidido e também comandava um pelotão de outra unidade, no mesmo combate decisivo.

Entre aqueles homens expansivos, formados na atmosfera heroica e exaltante da luta pelos melhores ideais, que condicionou uma geração de cubanos, podia-se ter a ideia nítida do que são forças armadas construídas nesse nível humano e ideológico; do quanto elas dão realidade à metáfora geralmente vazia do “povo em armas”; e como tudo isso deve ter contribuído para a serenidade firme que se observa nas pessoas.

(No Hotel Passacaballo, perto de Cienfuegos, eu já tinha feito camaradagem com o encarregado do ônibus, apreciando suas ideias desabusadas sobre a violência eventualmente necessária na implantação do socialismo, na hora certa e na dose certa, dizia ele. E citava o exemplo de Allende como da tolerância excessiva que acaba dando vitória ao inimigo e, assim, provocando violência maior, porque o terror branco é o que sabemos).

Outro fator para o modo de ser que estou comentando é com certeza a tranquilidade em relação às necessidades básicas ꟷ que a Revolução Cubana de fato resolveu. É impressionante como amigos e inimigos do regime concordam neste ponto fundamental: que em 20 anos os problemas cruciais foram solucionados e o povo cubano tem o que precisa, de maneira satisfatória, em matéria de alimentação, saúde, instrução, previdência; de modo menos satisfatório, mas suficiente, em alojamento. A Revolução acabou com a miséria e os extremos da desigualdade, dando a todos, oportunidades mais ou menos equivalentes. Falta resolver em bom nível a questão da moradia, cuja solução é sempre difícil e mais vagarosa nos países que instauram a igualdade econômica, mostrando como a privação e a desigualdade neste setor são incríveis nas sociedades de classe. Ao contrário de antes, agora todos os cubanos têm onde morar com decência, mas o espaço habitacional ainda é parco e há desconforto. Pelo que depreendi, no ritmo atual de construções de Cuba poderá levar ainda muitos anos para dar moradias realmente boas a todos. Também o transporte urbano deixa a desejar, havendo poucos ônibus, e táxis mais do que vasqueiros. Mas, repito, todos sabem que o essencial está resolvido.

O trabalhador que volta para a sua casa modesta, depois de muito tempo na fila e um trajeto em veículo apinhado, tem apenas que enfrentar o mau-humor e o cansaço desta dificuldade. As grandes causas materiais de desespero não existem mais para ele, porque não lhe falta o essencial: alojamento, comida, roupa, assistência médica, instrução para os filhos, dinheiro. Supondo que more como um operário brasileiro e que, como este, se esfalfe nos longos percursos, tem sobre ele um feixe decisivo de vantagens, que permitem paz de espírito e alívio das tensões corrosivas.

Nas velhas casas subdivididas do centro de Havana, no fim da tarde, os trabalhadores estão sentados na sua cadeira, banho tomado, conversando com os vizinhos, enquanto vão chegando da escola os filhos bem nutridos, bem uniformizados, com todo o material necessário, com as oportunidades de qualquer menino cubano, seja filho de camponês ou oficial, de operário ou ministro, de motorista ou escritor. A impressão do estrangeiro passeando é que de fato está num outro sistema; que o socialismo está se construindo e com ele um timbre diferente de humanidade.

Se esse estrangeiro resolver caminhar por uma estrada ou descampado; se quiser andar longamente pelas ruas num passeio noturno, de volta ao hotel, não correrá risco maior de assalto nem de ser estripado por causa do relógio de pulso. A delinquência é por assim dizer normal, na taxa inevitável que se imagina em sociedade bem organizada. (Não ouvi falar em nada pior do que roubo de óculos escuros, máquinas fotográficas, bolsas, um ou outro conto do vigário, raros erros intencionais de conta e propostas de câmbio negro, inofensivas para o turista, graves para o proponente, pois as penas para desonestidade são pesadas). Uma segurança dessas, que vem de todos, da base, do dia-a-dia, espanta e tranquiliza o visitante acostumado às nossas e outras paragens; ao mesmo tempo revela a transformação do homem, junto com a transformação da sociedade, uma coisa condicionando a outra.

Essa novidade no homem, incrível na América Latina, pode ser verificada nas atividades mais diversas, desde a realização quase miraculosa de uma terapia redentora para as moléstias mentais, até o funcionamento dos Comitês de Defesa da Revolução ꟷ como eu vi mais de um, ao ar livre, num trecho de rua transformado em auditório, com os renques de cadeiras, a mesa diretora, a tribuna, os holofotes e alto-falantes. Aí se vê realmente o povo discutir, deliberar e influir ꟷ em assuntos que vão desde a comida ruim de um restaurante do bairro, até as prepotências de um funcionário. Então o observador começa a sentir a extraordinária liberação de energia que o socialismo acarreta. Para a massa enorme que a desigualdade econômica sufoca e mutila espiritualmente, ele abre as possibilidades para a realização de cada um, que se torna imediatamente a realização de todos. Em Cuba este processo correu paralelo a outro, e que foi uma sorte grande histórica: o êxodo de inimigos, a saída voluntária da burguesia, com a sua cauda longa de parasitas e corruptos, livrando o país de grande parte dos elementos que teriam suscitado continuadamente os problemas mais graves. Deu-se até certo ponto uma substituição de classes, que foi uma das condições do seu desaparecimento progressivo; e como a Revolução pode vencer o assalto daquela parte adversa, a república ficou de fato mais limpa. Talvez seja impressão, mas parece haver uma nitidez acentuada nas pessoas, na atmosfera quotidiana, nas regras do jogo. Para quem se habituou a ler o socialismo nos livros e a fazer alguma força para o seu advento longínquo, a experiência é das que exaltam e compensam.

Assim, Cuba está conseguindo renovar o homem, sobre a base duramente construída das garantias essenciais à vida ꟷ coisa que nenhum outro país latino-americano sequer esboçou até agora. Noutros países socialistas há uma retórica acentuada sobre esta re-formação humana; mas, freqüentemente, fica parecendo que objetivos imediatos de natureza técnica e econômica são postos antes, de modo a jogarem para muito adiante (e, portanto, quem sabe torná-la impossível) essa humanização que em Cuba parece tão presente e realizada.

Daí a impressão de um socialismo mais desafogado e flexível do que fariam supor certas formulações oficiais. Inclusive uma liberdade de experiência, cujos traços originais divergem do que é rígido na prática de outros países socialistas. Talvez devido a peculiaridades da história de Cuba.

Na Biblioteca Nacional, em Havana, assisti a uma conferência de Roberto Fernández Retamar, seguida de debates com os participantes duma espécie de curso nacional cujos melhores alunos, todos adultos, estavam ali para discutir a figura de José Martí. Falou-se do seu radicalismo quase socialista, configurando um verdadeiro precursor da situação atual, como se ele fosse o equivalente latino-americano dos radicais russos do século passado, ꟷ homens como Herzen, Tchernitchevski, Dobroliubov. Pensei então que Cuba talvez seja um caso único entre os latino-americanos, pela capacidade precoce de formular posições verdadeiramente revolucionárias; e não com o sentido meramente autonomista das outras nações, determinado pelas classes dominantes, que mantiveram o jugo e sua justificação ideológica apesar da mudança de estatuto. Martí teria sido na verdade um precursor orgânico (não um mero símbolo); e o peso da sua atuação influi na maneira pela qual os cubanos assimilaram o marxismo e praticam o socialismo. Isso é diferente do que aconteceu no resto da América Latina, pois nos outros países o papel de patriarca coube a conservadores, ou a vocações de rei sem coroa. A originalidade das soluções cubanas (pensava eu ouvindo os debates) está enraizada no processo histórico da luta pela libertação nacional. Por isso Martí é situado em plano teórico depois de Marx, e Fidel Castro se considera seu seguidor[1].

O teste de uma revolução (de verdade) é a relação entre o seu custo humano e o seu saldo social. A conclusão a respeito é que Cuba realizou um máximo de igualdade e justiça com um mínimo de sacrifício da liberdade. Trata-se de um regime voltado para a libertação do povo, a fim de promover a sua atuação efetiva na transformação da sociedade. Portanto, teve e tem de neutralizar inimigos, evitar retrocessos, usar certa dureza para realizar o que é a solução mais humana para o homem. O intelectual de um país onde a burguesia domina com força bastante para permitir o jogo das opiniões; mesmo o intelectual de um país como o Brasil, que só recentemente readquiriu um pouco do direito a este jogo, pode estranhar, por exemplo, a severa arregimentação social do trabalho em Cuba, as limitações da sua imprensa, o rigor com os adversários. Mas ao mesmo tempo verifica que enquanto nos nossos países há uma prática democrática de superfície, porque está baseada na tirania econômica e alienadora sobre a maioria absoluta; em Cuba há uma restrição relativa na superfície e, em profundidade, uma prática da democracia em seus aspectos fundamentais, isto é, os que asseguram não apenas a igualdade e a libertação da miséria, mas o direito de deliberar nas unidades de base e dialogar com os dirigentes, resultando a conquista dos instrumentos mentais que abrem as portas da vida digna.

Tenho lido e ouvido restrições a Cuba, e de fato algumas devem ser procedentes. Mas quando consideramos um país ou um regime, nosso olhar se orienta pelas nossas convicções. As minhas levam a achar que as falhas da Revolução Cubana são pequenas em face do enorme saldo positivo, isto é, o êxito na construção do socialismo. E de um socialismo aberto, inteligente, fraterno. O conservador e mesmo o liberal de corte tradicional verão com certeza de outro modo, porque pensam sempre na estrutura em si, e não no processo, que dá o sentido real das coisas.

Com pouco discernimento desse processo e com uma visão formalista parecem estar diversos críticos de valor, como, para citar apenas um, o escritor espanhol Juna Goytisolo, que em artigo deste ano enumera as restrições mais correntes nos meios intelectuais, inclusive esquerdizantes ao seu modo. Trata-se de uma resenha do livro Cuba: Order and Revolution, de Jorge I. Domínguez, no New York Review of Books (Vol. XXVII; nº 4, 22 de março de 1979).

Deixando de lado a análise e o pormenor dos reparos, fixemos a conclusão, que é justamente onde o autor se encontra com muitos outros. Depois de reconhecer que a Revolução Cubana acabou praticamente com o desemprego; que teve “êxito espetacular” nos setores fundamentais da instrução, saúde, habitação para os pobres; depois disso chegam ao que lhe parecem ser os grandes pontos negativos. Assim, diz que na região do Caribe sempre houve quatro pragas: (1) monocultura; (2) caudilhismo; (3) governo militar e ditadura; (4) dependência em relação aos Estados Unidos. Segundo ele, nada disso se alterou essencialmente em Cuba, com a diferença que a dependência passou a ser com relação à União Soviética.

Trata-se de uma reflexão de caráter formal, no sentido em que cada tópico é visto como um traço autônomo e não em seu nexo com a realidade. Ou por outra: é visto pela aparência lógica, não na realidade do contexto, que permite determinar o significado verdadeiro.

De fato, a monocultura do açúcar continua ꟷ, mas desapareceram suas consequências negativas para a sociedade, inclusive a concentração da riqueza em mãos de uma oligarquia e o desemprego na entressafra; ou por outra, ꟷ o açúcar não é mais fator de concentração de riqueza em poucas mãos, nem de subordinação ao imperialismo, nem de uma desigualdade monstruosa, nem de desamparo do trabalhador, que antes era jogado periodicamente na miséria.

Existe a liderança continuada de um homem, mas ela não é imposta pelos interesses econômicos a fim de manter a desigualdade. Além de controlada por diversos órgãos, é sancionada a cada momento pelo diálogo com o povo e o desejo das organizações, porque corresponde às aspirações populares e às necessidades sociais. Fidel Castro é um líder extremamente humano que funciona de fato como mandatário, inclusive pela capacidade excepcional de consulta direta às bases e de fidelidade aos órgãos da Revolução. Como disse Alceu Amoroso Lima, é sem dúvida o maior líder latino-americano deste século, com a estatura dos grandes libertadores do século passado.

Quanto ao terceiro ponto, a simplificação formalista chega a fazer sorrir. O exército cubano nasceu da guerrilha, da luta revolucionária, sendo realmente uma extensão do povo em armas. (La más roja flor del pueblo, como no velho canto republicano espanhol). Ele fez a Revolução e em certa medida é condição dela; a participação no poder é a sua quota de serviço, ao lado da de outros setores. Querer compará-lo aos exércitos sangrentos às fratricidas do Caribe, da América Central e da do Sul; querer assimilar a sua atuação no poder à violência policial a serviço das classes dominantes, que se observa nesses casos, é quase cômico.

Finalmente sabe-se que a União Soviética e outros países socialistas (de um socialismo menos atraente que o de Cuba) apoiaram a Revolução Cubana e tornaram possível em grande parte a sua sobrevivência. Mas os próprios estudiosos adversos reconhecem que, apesar da fidelidade a esses países, ditada pela comunhão de propósitos e pela gratidão, Cuba tem mantido uma independência notável em sua política, inclusive a contrapelo de preferências soviéticas, como no caso do auxílio a Angola e Moçambique. É o que se pode ler entre outros lugares nos insuspeitos Problems of Communism, publicação oficiosa norte-americana (vol. XXVII nov-dez. 1977). Mas ficando para argumentar no terreno esquemático de Goytisolo, poder-se-ia dizer: ꟷ Muito bem, suponhamos que Cuba passou de fato da dependência americana para a soviética. O que lhe varia a primeira? O que lhe vale a segunda? Enquanto os Estados Unidos a tinham transformado de maneira aviltante num apêndice semicolonial, por intermédio de sucessivas organizações políticas da oligarquia; enquanto ainda hoje sustenta de maneira direta e indireta toda a sorte de Duvalliers e Somozas, para perpetuarem os regimes mais sinistros da América; enquanto isso a União Soviética ajuda Cuba a construir um socialismo humano, que resolveu os problemas que sufocam todos os outros países latino-americanos.

A conclusão, para quem quer ver realmente a justiça social, é que se Cuba for apoiada por um grande número de países não precisará depender deste ou daquele, podendo desabrochar com mais desafogo. Portanto, trata-se de apoiar, e não rejeitar; de reconhecer as enormes qualidades e entender os defeitos; de promover em cada um dos nossos países os movimentos de apoio, que pressionem os governos no sentido de reconhecimento diplomático e do intercâmbio. Se puderem manter relações normais com um grande número de outros estados, Cuba será cada vez mais aberta, menos monocultura, menos atenta à sua segurança, mais democrática e próspera. Ela representa para os outros povos latino-americanos o exemplo de como é possível alcançar o máximo de justiça social realizável. Por isso, em Cuba está o melhor da América.

*Antonio Candido (1918-2017) foi Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Autor, entre outros livros, de Literatura e sociedade (Ouro sobre Azul).

Publicado originalmente na revista Encontros com a Civilização Brasileira, no. 18, em dezembro de 1979.

 

Nota


[1] Num importantíssimo livro a sair, cujos originais pude ler, Florestan Fernandes analisa com profundidade e larga informação os aspectos originais da tradição revolucionária de Cuba.

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