Por DANIEL BRAZIL*
Comentário sobre o livro recém-lançado de Lúcia Helena Gama
O título do livro pode soar estranho, mas é uma citação de Adoniran Barbosa, em epígrafe:
Quantas dor de cotovelo
Eu bebi na minha vida
Espadona e Parreirinha
Ponto Chique, Avenida,
Outros bares da Ipiranga
Eram a consolação.
Com o subtítulo Sociabilidade e cultura em São Paulo nos anos 1960 e 1970, o volume dá continuidade ao projeto da autora, Lúcia Helena Gama, que abordou um cenário semelhante nas décadas de 40 e 50 (Nos bares da vida, Senac).
A obra é constituída basicamente de entrevistas com vários personagens que viveram o período, e também depoimentos e comentários encontrados em publicações diversas, de jornais e revistas até crônicas e textos literários. São atores, músicos, escritores, jornalistas e estudantes de diversas origens, que gravitavam em torno de bares, restaurantes, livrarias, teatros e cinemas da época, compondo um cenário efervescente de criação, polêmica e agitação política.
Os anos 1960 marcam o deslocamento deste epicentro cultural, muito focado nas faculdades da USP, ainda na rua Maria Antônia e adjacências, o Mackenzie, os botecos da Praça Roosevelt e do Centro Novo, e o início da ocupação boêmia de Pinheiros e Vila Madalena, motivados pela mudança da USP para o Butantã. A PUC, embora relevante, é situada num bairro residencial, de forma que seus estudantes também iam para os mesmos teatros e bares no triângulo Bexiga-República-Consolação.
A música, ou melhor, os botecos com música ao vivo, exerceu um papel fundamental na aglutinação intelectual do período, que viu surgir ali os grandes Festivais da Record, a dita MPB e a música de protesto. Nunca a música popular, o teatro e o cinema estiveram tão identificados em torno de um projeto político que misturava – de muitas formas, às vezes conflitantes – invenção, nacionalismo, revolução de costumes e luta de classes. Não à toa é também o período em que o campo de esquerda se fragmenta, e o golpe de 1964 vai encontrar apoio numa classe média assustada com as mudanças que aquele bando de transviados e transgressoras da “velha ordem” anunciavam ruidosamente em suas manifestações.
É também o afloramento de movimentos identitários, do Black Power, da emancipação feminina, da liberdade sexual proporcionada pelo surgimento da pílula anticoncepcional, e da televisão se tornando a maior mídia em escala mundial, para o bem e para o mal.
Há depoimentos de Plínio Marcos, Maria Adelaide Amaral, Walnice Nogueira Galvão, Marika Gidali, Ugo Giorgetti, Mouzar Benedito, Maria Rita Kehl, Ignacio de Loyola Brandão, Olgária Matos, Roberto Freire, Celso Frateschi, Nair Benedicto, Idibal Pivetta, Rudá de Andrade, Milton Hatoum, Vallandro Keating, Luiz Roncari, João Signorelli, Rita Lee, Dagomir Marquezi e Izaías Almada, entre outros.
Lúcia Gama costura os entrevistados criando uma personagem que vagueia de bar em bar, encontrando com os depoentes. Todos falam no tempo presente (“eu estou vindo de Minas Gerais para estudar”, “estou procurando trabalho no teatro”), o que cria um efeito curioso. A autora revelou que os textos foram adaptados para criar um efeito de estar em tempo real, procurando manter a fidelidade aos fatos.
É inevitável algumas repetições, em vários depoimentos. Uma vez que todos se encontravam nos mesmos bares, cantinas, teatros e cinemas, os nomes de lugares, eventos e pessoas retornam à baila. Talvez uma edição rigorosa reduzisse as quase 500 páginas do livro, mas implicaria em perda de autenticidade. É compreensível que se todos fossem ao Teatro de Arena e depois esticassem no Redondo ou fossem ouvir MPB na Galeria Metrópole, nos anos 1960, isso apareça em muitos depoimentos.
No terço final do livro, que aborda o período da ditadura, aprofunda-se a ramificação dos anseios (ou divisionismo, como diria um velho integrante do Partidão). O movimento gay (ainda não havia a sigla LGBT e suas derivações), a Jovem Guarda criando um novo público e novos locais de afluência da juventude paulista (Rua Augusta), as mulheres se destacando em várias áreas e reivindicando mais, o movimento negro estimulado pelo contato televisivo com o mundo (Panteras Negras, Mohammed Ali, Angela Davis), e Guerra do Vietnã, Maio de 68, Flower Power, Woodstock, Tropicália, Che Guevara, Araguaia, censura, cassações, ditadura.
Lucia Gama insere alguns parágrafos de situação histórica, norteando as falas. Fica claro que os vários sentidos possíveis da construção de uma história oral, vivenciada pelos personagens, criam múltiplas camadas de percepção. Em um cenário turbulento, vozes isoladas revelam dilemas existenciais, políticos, sexuais, éticos, estéticos e comportamentais.
Para quem conhece a geografia e a história de São Paulo, o livro permite várias recordações, principalmente se viveu ali no período abarcado. Há teatros e bares que ainda persistem. Mais melancólica é a situação de quem busca as livrarias ou cinemas citados, todos vitimados pela “força da grana que ergue e destrói coisas belas”.
E, para quem não conhece, o livro é uma boa oportunidade de entender como a maior metrópole do país rivalizou com a capital federal nos anos enfocados, tornando-se epicentro de movimentos culturais e sociais que ainda mostram suas marcas, ainda que fragmentadas, no Brasil do século XXI.
*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.
Referência
Lúcia Helena Gama. Eram a consolação: sociabilidade e cultura em São Paulo nos anos 1960 e 1970. São Paulo, Edições Sesc, 2023, 496 págs. [https://amzn.to/3twxXQy]
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