Está como o diabo gosta

Joan Miró, Ouro de firmamento, 1967.
image_pdf

Por LORENZO VITRAL*

O que vimos até aqui no conflito na Europa mostra que os ânimos ainda não baixaram de nenhum lado.

Já temos um recuo de alguns dias, desde a invasão russa na Ucrânia, para tentar traçar alguma inteligibilidade nos fatos e versões do ocorrido. Muito se tem digo sobre uma nova ordem, um mundo multipolar, com a inclusão, na verdade, da aliança russo-chinesa como um segundo polo. Reestabelecemos, assim, o que já existiu, com a delimitação de esferas de influências dos países militarmente mais poderosos e não, como para onde deveríamos avançar, num mundo em que a autodeterminação dos países e povos fosse de fato respeitada.

A omissão da ONU no conflito demonstra o que acabamos de dizer. Nesse novo velho mundo, já que há um retorno, o Brasil e todo o sul global, como também já apontado, poderão se beneficiar, permitindo, imagina-se, “escolher” sua esfera de influência, que seria mutável de acordo com seus interesses. Claro, os nossos “russos” são os americanos. Um deles inclusive é candidato à presidência neste ano.

Poder tecer as frias considerações acima nos é permitido, provavelmente, devido ao também recuo, que funda uma posição que visa ao racional, da situação de conflito geopolítico-militar que assola a velha Europa, onde se pensava que guerras eram coisas do passado. Até onde vi, a razão, ou até o senso comum, parecem ausentes no debate.

Uma olhada superficial na imprensa europeia das últimas semanas é suficiente para nos convencer disso. Observando a imprensa francesa, particularmente o Le Monde e o Libération, infere-se a reprodução da narrativa anglo-saxã de que “a Ucrânia é livre para escolher ser membro da OTAN”; “a OTAN é da paz”; “Putin é um ditador louco que deseja reestabelecer o império soviético”; “guerra é coisa que não se faz mais” e outras platitudes.

Uma das perguntas feitas numa entrevista, da edição do Libération do dia 26 de fevereiro, ao tarimbado ex-diplomata francês, Michel Duclos, o jornal pergunta como explicar que essa guerra tenha sido mal antecipada pelos países ocidentais e pelos europeus em particular. A resposta dada por Duclos inclui a afirmação de os dirigentes europeus não queriam acreditar…..Estupefação! Como assim? Não deu para perceber?

O jornal de maio de 68 (hélas!) reverbera a opinião pública mediana a respeito dos acontecimentos, o que inacreditavelmente parece ser também a posição – provavelmente, conveniente – dos setores dirigentes europeus. As palavras que tentam incluir no debate alguma compreensão da posição russa é, no mais das vezes, tímida, furtiva e irônica. Toda a intrincada história dos vínculos Rússia/Ucrânia; o fato de o governo ucraniano ter sido implementado com apoio americano e por contingentes neonazis – os maiores da Europa; o abandono dos acordos de Minsk – respaldados na ONU – pelo governo ucraniano; a expansão sem limites da OTAN… são desprezados. Vale uma espécie de “liberdade” de a Ucrânia fazer o que bem quiser, o que acabou autorizando a mesma “liberdade” a Putin.

Poderíamos pensar que, o real de Putin, faria os europeus – já que a guerra é na bela Europa e não nos liberados teatros de guerra do sul global – buscarem uma posição de conciliação. No entanto, por hora, não é isso que se vê: a Alemanha, a França e outros se apressam em armar a Ucrânia; os EUA, que parecem em choque nesse início, envia dinheiro – pouco – à Ucrânia e promove as anunciadas e terríveis sanções econômicas.

A resistência ucraniana tem sido forte até então, o que com a gasolina jogada pelos europeus promete tornar a guerra mais longa do que gostaria a Rússia, o que – como os ocidentais talvez estejam calculando – poderá enfraquecer Putin e – quem sabe? – prejudicá-lo internamente também.

Uma eventual escalada do conflito é, por razões óbvias, bastante perigosa e encontra guarida na própria resistência civil aos russos. Nada como um inimigo externo para unificar um país: mesmo opositores ao governo Zelensky e críticos da OTAN estão se voluntariando para combater o invasor (vejam o artigo “Uma carta à esquerda ocidental de Kiev”, de Taras Bilous, publicado no Jornal GGN).

O que vimos até aqui mostra que os ânimos ainda não baixaram de nenhum lado. Ficamos pensando no que precisará ainda acontecer… Parece-nos que desceu um tipo de névoa no velho continente que obscurece o risco que todos corremos, como se manifestasse um desejo de aniquilamento que está sendo compartilhado. Afinal, sobrevivemos a uma pandemia e a volta à vida pode parecer por demais árdua.

*Lorenzo Vitral é professor titular de linguística da Faculdade de Letras da UFMG.

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES