Por VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ*
Estudo de caso: uma estimativa constitucional entre o Brasil e o Peru
Nota explicativa sobre o método empregado nesta análise de conjuntura: Paralelismos são recursos metodológicos; por aproximação e distanciamento, procura-se uma melhor compreensão de fatos, casos, sem que ainda haja um entendimento e explicações assim tão claras. Os paralelos podem revelar nuances, remover a sujeira e a opacidade que o presente forçosamente impõe à análise de conjuntura. O cuidado aqui está em não criar modelos típicos, sobretudo, quando não tem nada de ideais – nenhum ideal a compartilhar. Em todo caso, é um recurso útil, quando não nos tornamos vítimas do açodamento das “primeiras leituras”.
Há paralelismos possíveis entre o Brasil (2016) e o Peru, de 2022? Sim e não. Se observarmos pela lente histórica, que remonta à Venezuela, Honduras, Paraguai e outros, então, tudo segue pelo rio caudaloso e extremamente poluído, com margens absolutamente opressivas – diria Bertold Brecht.
De modo pragmático, possivelmente, o maior paralelo a ser verificado estaria nos efeitos presentes e futuros, a partir da incidência do Golpe de Estado que depôs a presidenta Dilma Rousseff e do Estado de Exceção protocolado por Pedro Castillo: desorganização e miséria social.
Espera-se que não, mas os efeitos poderão ser compartilhados – e isso a história política, em ação neste preciso momento, nos contará. O Peru estará entrando em algum protótipo de fascismo pós-moderno, assim como entramos em 2016 e, a partir de primeiro de janeiro de 2023, esperamos começar a remover para os entulhos da história?
O Peru conhecerá algum módulo lunar do fascismo, como viemos a verificar com sobras no Brasil do pós-2016? Talvez quanto ao fascismo interposto haja semelhanças, quanto à imposição, duração e aos efeitos.
Ao que tudo indica, a partir das massivas mobilizações populares e protestos volumosos, é possível dizer que não – e nisto teriam uma experiência diversa da nossa, uma vez que não parecem crer em goiabeiras milagrosas e nem rezam para pneus furados – apesar das muitas mortes registradas e da imposição de Estado de emergência.
Por outro lado, o funcionamento, o ritmo, a geração (uma parte da motivação), os ritos, os processos, as autorias e suas consequências, são absurdamente divergentes. O pano de fundo tem conexões, pode ser o mesmo; todavia, o enredo, o núcleo da história, os atos, o palco (muito além dos atores), são desconexos entre si.
Contra ambos, Dilma Rousseff e Pedro Castillo, foi acionado o mecanismo de defenestração do poder chamado de impeachment (impedimento), no entanto, a motivação, o start, para ambos é inverso, precisamente o contrário: contra Dilma Rousseff impôs-se por meio de golpe e, contra Pedro Castillo, o mecanismo foi acionado por um contragolpe.
Do estado democrático de direito
A partir do Peru, temos uma trilha que não beneficia em nada a nenhum país da América Latina, especialmente da América do Sul, e nos serve (ao Brasil) de exemplo “do que não fazer”. Com todos os problemas enfrentados por Pedro Castillo, que não foram poucos, da esquerda à direita do espectro político, até o presente momento, há uma trilha de desconstituição das institucionalidades que garantiriam, inclusive, sua governabilidade – e que, sem esse caminho minimamente pavimentado, resultou na sua destituição e prisão. Como já é do noticiário e do conhecimento em geral, agora vigora um Estado de Emergência. Porém, como chegou a tanto?
Resumidamente, a trilha é esta: autogolpe = decreto do Estado de Exceção = toque de recolher = contragolpe = destituição (prisão) = Estado de Emergência. Com as mobilizações sociais, manifestações populares, o desfecho alcançou contornos mais graves, pois, se os enfrentamentos com as forças de segurança subirem de degrau, poderemos ver algo como a imposição de uma Lei Marcial. Neste caso, estaria em vigência o Direito Militar e seus gravames, como a execução ordinária.
Nosso aprendizado dependerá de termos acolhido o teorema popular que nos alerta para a obrigação lógica de aplicarmos uma regra simples: para situações semelhantes não é válido o entendimento de que “para um peso, pode haver duas medidas”.
E assim indagamos, preliminarmente, o que deveria ser regular, seguro e legítimo, no Brasil e no Peru do Estado de Exceção (e Estado de Emergência), de 2022?
De modo genérico, a resposta é simples: deveríamos respeitar integralmente o Estado Constitucional, e, no gênero, o Estado de Direito Democrático de 3ª Geração. Trata-se de um desenho constitucional em que as diretrizes do Estado de Direito (1ª geração) são asseguradas, como a divisão dos poderes, a legalidade e a institucionalidade do Poder Público. Do mesmo modo, o Princípio Democrático (CANOTILHO, 1990) passou a ser a mola mestra da segunda geração dessa Ordem Constitucional – já com a previsão dos crimes contra a democracia. Na fase atual do Estado Constitucional, a 3ª geração nos obriga ao direito internacional, aos direitos ambientais, à defesa dos direitos da Humanidade, nos conduz precisamente à tese do Direito a ter direitos e, neste quesito, nos condiciona à recepção, cumprimento e defesa integral dos Direitos Humanos. De modo ainda mais objetivo: “para o mesmo peso, uma só medida”.
Mas, qual seria a síntese de tudo? Trata-se, exatamente, de darmos provimento (Força de Lei) ao Texto Constitucional (HESSE, 1991), ou seja, o que se exige, de toda forma, é o cumprimento da Constituição, em face do rigor que se instituiu como Força Normativa da Constituição – e para isso também é válido o uso da força física reguladora do Poder Público (“poder de polícia”). Esta é a origem, a base e o farol do Estado Constitucional; sem isto, não há Constituição que não saia do papel (LASSALLE, 1985). Essa Constituição peso-morto só interessa a um tipo de governante: o déspota, esclarecido ou não.
Sendo assim, antes que aleguem ser um exercício acadêmico diletante – buscar novos conceitos –, é preciso saber que o Estado de Direito Democrático de 3ª Geração está desenhado na Constituição Federal de 1988. O fato de não sabermos, “termos esquecido” (oportunamente, esporadicamente), ou não respeitarmos a Constituição, isso apenas informa da nossa compreensão e perspectiva acerca do país, da própria “expectativa de direito” e também, em algumas situações, revela nosso total descompromisso com o próprio Direito que deveria ser líquido e certo.
É óbvio que isso tudo diz muito de nós mesmos, enquanto povo e Nação. Chegamos num ponto em que acusamos o conceito, para camuflar a realidade. Seja enquanto ironia, deboche, seja na forma da simples negação e recusa, parece que sempre estamos aptos a atacar os princípios (como um ato de reclamar da vida), ao invés de agirmos para a mudança substancial da realidade.
As pessoas parecem se esquecer de que os princípios não andam sozinhos (afinal, “o direito não socorre a quem dorme”) e que as configurações conceituais refletem um estágio do pensamento (processo civilizatório) e nos servem como “guia”, especificamente, para “medirmos” a realidade, avaliarmos o quanto nos falta para que algum objetivo possa ser compartilhado coletivamente, com aquela famosa “clareza meridional”.
No caso do direito, em especial, ainda podemos pensar que os princípios carregam garantias, isto é, normas e formas eficazes (juridicamente) a fim de que sejam respeitados e cumpridos: do direito de ir e vir ao habeas corpus, tem-se o exemplo liminar, tanto quanto do direito de livre expressão devemos caminhar na direção da tipificação dos crimes cometidos contra o Estado Democrático de Direito. No primeiro caso, a garantia recai sobre direitos individuais, no segundo momento a garantia se dirige à própria Constituição Federal – sendo-lhe inerente a configuração do Estado democrático de direito. É óbvio, portanto, que o problema não está em “ir e vir”, mas sim no abuso desse direito, sobretudo enquanto ameace a integridade e os direitos do outro.
Do mesmo modo, é possível afirmar que nenhum direito será assim tão fundamental a ponto de ameaçar a observância de outros direitos: a liberdade não inclui a pregação do ódio e do caos social, menos ainda se espera legitimar a ameaça à integridade social, a convivência democrática, o Estado de direito. Também, por óbvia consequência, é preciso entender desde sempre que a liberdade de um nunca irá regularizar ações contra a integridade moral e social do povo, por meio de ameaças, ataques e ações efetivas contra a ordem constitucional. Sob esse amplo critério, há certas semelhanças entre o Brasil, desde 2016, acentuando-se entre 2017-2022, e o Peru, com a última decretação do Estado de Exceção.
São situações similares porque, criticar o contexto ou alguns conteúdos constitucionais é algo bem diverso (juridicamente) do que negar provimento à ordem constitucional ou simplesmente atropelar negativamente seus dispositivos. Essa ação denegatória pode ser individual, como ação despótica iminente, por grupos armados de ódio ou de munição letal (há crime previsto na Constituição Federal de 1988), ou ainda por interpretação equivocada, golpista ou oportunista de juízes ou de tribunais: a Lava Jato estendeu recordes de exemplos perturbadores ao Brasil.
O custo dos golpes à Constituição
Golpear a Constituição Democrática (legítima, por definição preambular) traz inúmeras consequências, quer sejam morais, sociais, políticas e econômicas, quer sejam institucionais. Consequências societais dos vários Golpes à Constituição Federal de 1988 são vistas no desemprego, na fome, na assunção do Fascismo ao poder. Do mesmo modo, consequências institucionais estão presentes na negação da democracia, por dentro do Estado, no aparelhamento das instituições que deveriam servir à República, mas que atuam em conformidade ao projeto de terra arrasada, com interesse claro no desmonte do Estado social e na falência total das principais políticas públicas – de relevante cunho social.
No Peru, simplesmente não se observou a cláusula constitucional (mal redigida, por sinal) em que se descreve a “única” situação plausível para a dissolução congressual e a “disposição de se interpor um governo transitório e excepcional”. Sem que a oposição tivesse protocolado, formalmente, as duas solicitações de “voto de desconfiança” – e tivesse sido derrotada, por suas vezes, pela situação –, não haveria o fato jurídico que autorizaria a dissolução do legislativo.
Na prática, violou-se a Constituição para impor o Estado de exceção. Se não entendermos que as regularidades e as institucionalidades devem ser seguidas, como reserva de segurança da própria ordem constitucional, de modo direto, estaremos autorizando o mesmo cometimento de ação delituosa contra o Estado democrático de direito – aqui ou no Peru. No Brasil, comparativamente, a tentativa para implementação de um tipo de Estado de exceção, por algum tempo, foi mais sutil: leu-se muito mal o artigo 142 da Constituição Federal de 1988, objetivando-se deturpar o sentido constitucional ali depositado para se criar a “narrativa” de que haveria intenção de se autorizar um “poder militar moderador”; na prática, interventor.
Em si, sem grandes considerações acerca do despropósito, trata-se de absurdo (aberratio in legis), pois basta-nos recuperar o sentido lato senso que se desvela sob o Estado democrático de direito: princípio da constitucionalidade (unicidade constitucional); princípio democrático; princípio da legalidade e da segurança jurídica; divisão dos poderes; sistema republicano de freios e contrapesos; sistema de direitos fundamentais (individuais, coletivos, difusos, sociais), princípio da justiça social. Em suma – após o impeachment, em que o ex-presidente Pedro Castillo sequer recebeu voto de confiança do seu partido (o Peru Livre é marxista-leninista) –, qualquer permissividade que se destine ao malfeito constitucional praticado no Peru, de nossa parte, equivaleria à autorização, voluntária ou involuntária (consciente ou alienada), para que o art. 142 surtisse o mesmo efeito golpista, impondo-nos um verdadeiro “Estado de Exceção moderador”.
Para quem sempre militou pelo alargamento propositivo das margens constitucionais, pelo aprofundamento do leito dos direitos fundamentais – notadamente os direitos sociais –, causa enorme perplexidade ter que defender teses e orientações do positivismo constitucional. Entretanto, dado o nível de desconhecimento e de retrocesso moral, social, cognitivo, que atingimos na atualidade, hoje, novamente, defendemos obviedades. Mais precisamente, defendemos o positivismo constitucional, no sentido estrito de que se deve obedecer à ordem constitucional – mais ainda contra os positivistas de ontem e que hoje se tornaram negacionistas ou oportunistas.
Com essa experiência do Peru, e que nos sirva de lição, devemos aprender, internalizar, ações e moções em defesa da Constituição Federal de 1988, mormente, às vésperas da posse em 1º de janeiro de 2023. Que sejamos capazes de rechaçar qualquer ação golpista, que tenhamos lucidez e força para enfrentarmos (e modificarmos profundamente) os descaminhos em que o país se meteu no pós-2016.
No processo de impeachment de 2016, ao contrário do que pensam muitos, não seguimos todas as chamadas institucionalidades. O que vimos em curso foi o rito ser observado, no entanto, desconsidera-se (muitos ainda) que a premissa processual é falsa – e por duas razões que se comunicam diretamente:
O processo do impedimento é um processo incomum, pois segue uma diretriz jurídica e política (os juízes são parlamentares e não juízes togados). Em 2016, ao contrário do impeachment de Collor, a iniciativa foi política e não jurídica. Não se inicia o impedimento sem o fato gerador consumado em prova, como um ato jurídico (no Peru, o ato jurídico é o próprio Decreto do Estado de Exceção). O impeachment, em síntese, como ato procedimental, deve ser seguido à risca neste sentido: do jurídico ao político. Caso contrário, institui-se como golpe.
Imediatamente ligado ao falso rito, está o fato de não haver crime de responsabilidade cometido – o próprio TCU da época havia inocentado a ex-presidenta Dilma Rousseff. Sem o crime, ou seja, sem a materialidade delituosa, não há autoria, e isso quer dizer que a ex-presidenta Dilma Rousseff não foi autora de nenhum crime de responsabilidade. Portanto, com autoria e materialidade inexistentes, o processo não seguiu os ritos processuais minimamente exigíveis. Daí a segunda razão para se configurar como Golpe de Estado (MARTINEZ, 2019).
Ao contrário do Peru, em que o Decreto presidencial atua como o próprio ato jurídico, em desacordo com a Constituição, o golpe de 2016 é absolutamente inconstitucional e sem nenhum amparo no rito processual minimamente esperado. Desse modo, vemos que não são apenas diferenças sutis que afastam os dois momentos da história política que não queremos repetir. No entanto, é importante repetir: em nenhum momento Dilma Rousseff tentou um autogolpe ou cometeu qualquer ilícito que pudesse alimentar crimes de responsabilidade (vide TCU) – e aqui não há nenhum paralelismo com o Peru.
O Golpe de Estado de 2016 destruiu a dignidade humana do povo, as instituições republicanas e a menor possibilidade de convivência democrática, posto que passamos a “fazer política” entre inimigos – e não mais adversários. Provavelmente, o resultado de tudo que vem ocorrendo no Peru traga efeitos similares ou piores dos que temos visto no Brasil: a perda das institucionalidades funcionando como estopim e força do agravamento da miséria social, da desilusão popular, e do caos patrocinador do Fascismo. A contenção a isso tudo dependerá, como sempre, da resistência popular e da força das instituições.
*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da UFSCar.
Referências
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Lisboa, Almedina, 1990.
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
LASSALLE, Ferdinand. Que é uma Constituição. São Paulo: Kairós, 1985.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. Teorias do Estado – Ditadura Inconstitucional: golpe de Estado de 2016, forma-Estado, Tipologias do Estado de Exceção, nomologia da ditadura inconstitucional. Curitiba, Editora CRV, 2019.
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