Por PEDRO RAMOS DE TOLEDO*
Considerações sobre a questão urbana na ficção-científica de Aleksandr Bogdánov e no romance de Nikolai Tchernichévski
O equilíbrio tênue entre a privacidade e a vida pública sempre fora uma preocupação constante entre a Intelligentsia socialista pré-revolucionária russa e, posteriormente, entre os planejadores urbanos soviéticos. Em O que fazer?, Vera Plavlovna, protagonista do romance de Nikolai Tchernichévski, é apresentada em sonhos ao futuro socialista. Em um vasto campo de trigo, ergue-se um palácio feito de cristal e alumínio, habitado por um sem número de homens e mulheres. Esses labutam nos campos e, ao retornarem para o palácio, ceiam em grandes mesas coletivas.
Assim como nos falanstérios de Fourier, a vida privada é indivisível da vida comunal. Nada se oculta através das paredes de cristal. Tchernichévski faz de sua visão utópica um retrato do super-realismo que defendeu em sua tese: o belo é a vida e é a vida e suas transformações que devem guiar a arte e a sociabilidade. O artista não é um ser apartado de sua obra; ele é a obra que produz e sua obra remete a forma como ele atua no mundo, da mesma forma que é sua vida que guia sua produção artística. Não há espaço para hiatos entre o viver público e o viver privado.
A translucidez dos muros do falanstério, imaginado como extrapolação de um mundo liberto das relações de opressão também serviu como motif para a produção de poderosos exercícios de opressão, em que a inexistência de privacidade é produzida não pela transparência das relações sociais, mas pela constituição de um panóptico onisciente e onipresente onde quaisquer segredos são criminalmente tipificados.
Dostoivéski – um retinto e genial eslavófilo – enxergava no Palácio de Cristal de Londres um símbolo da desumanidade industrializada, que dividia os homens entre ricos lascivos e pobres bêbados e sectários. Talvez a mais poderosa distopia dos anos formativos da Rússia Soviética seja Nós (мы) de Ievguêni Zamiatin. Publicada em 1923, Nós retrata uma megalópole inteiramente construída em vidro, cujos cidadãos – nomeados com números de série – têm cada aspecto de suas vidas pessoais vigiado e controlado por um Estado totalitário. O Palácio de Cristal de Tchernichévski é também um testemunho da relação dialética entre os sonhos utópicos e os pesadelos das distopias.
O sonho de Vera Pavlovna é a realização plena do socialismo agrário dos narodistas e O que fazer? influenciou marcadamente as gerações revolucionárias posteriores. A vida comunal, marcada pela hegemonia da sociabilidade sobre o espaço privado, encontrava suas raízes na própria obshchina e era por isso um tema comum entre os escritores russos na passagem dos séculos XIX e XX.
A obshchizhitie (общижитие) (morada comunal) é o espaço de vivência cotidiana na peça Mir (1904) e no romance Republic of Southern Cross (1907) do poeta simbolista Valeri Briúsov. A partir da Revolução de 1917, as possibilidades transformadoras da obshchizhitie seduziram uma geração de urbanistas, que incorporaram em seus projetos uma série de inovações. O objetivo não era tão somente dar conta do enorme déficit habitacional nas grandes cidades, causado por gigantescas ondas migratórias, mas também revolucionar os hábitos existentes e desenvolver novas formas de sociabilidade.
Surgem nos anos iniciais do nascente Estado Soviético diversos projetos de falanstério, como os falanstérios de Tverskoi e Burishkin (1921) e os complexos habitacionais de Moscou (1922), desenhados por Leonid Vesnin. Esses consistiam em diversos complexos habitacionais com áreas de serviço interligadas e conectados por uma ampla área de lazer. O objetivo era potencializar o tempo de convívio entre seus habitantes, bem como libertar as mulheres das tarefas domésticas, um projeto caro a Alexandra Kollontai, então comissária do Bem-Estar Social e fundadora do Zhenotdel [1]. A despeito das dificuldades de distribuição de alimentos durante a Guerra Civil, os restaurantes comunais foram uma prova de sucesso desses primeiros projetos urbanísticos: em 1920, 90% da população de Petrogrado se alimentavam comunalmente; em Moscou, essa percentagem chegava a 60%.
Em Estrela Vermelha, Aleksandr Bogdánov tentou prover equilíbrio entre as necessidades individuais de privacidade e o esforço coletivo de sociabilidade: A residência de Menni ainda é uma residência nuclear, individualizada. Sua arquitetura é indistinguível das residências ao redor, no entanto sua planta aparenta ser ordinária. Ainda que a casa enquanto espaço nuclear para o exercício da individualidade seja a forma comum de moradia, essa não é a única.
Bogdánov reserva a vivência socializada para grupos etários específicos. Ao visitar a colônia das crianças, Leonid descobre que as crianças marcianas vivem em obshchizhitii. Ali convivem crianças de diversas idades, acompanhadas por alguns poucos adultos que atuam como educadores. Ao questionar a quase ausência de adultos para Nella, a supervisora que o acompanha na visita, Leonid aprende que os poucos adultos presentes são aprendizes de educadores e pais. Ele descobre então que há residências individuais na colônia para pais que queiram viver com os filhos e crianças que desejam maior privacidade.
Bogdánov justifica assim um posicionamento intermediário entre a valoração do espaço individual-burguês e a subsunção do indivíduo em formas falansterianas e comunais, fundamentais para a constituição de novas experiências de sociabilidade e que servem de base para a educação dos socialistas marcianos.
As grandes cidades estão presentes em Marte, mas Bogdánov não dedicou espaço considerável em sua obra para descrevê-las. Supomos que essa ausência pode se relacionar com o caráter pedagógico e propagandístico de Estrela Vermelha, cuja realização tinha como público os trabalhadores da Rússia e não seus intelectuais. A pequena cidade, que comporta algumas centenas de trabalhadores, se aproxima em termos de tamanho e complexidade administrativa a obshchina, unidade fundamental de sociabilidade desses trabalhadores.
Ainda que centenas de milhares de operários vivam nos subúrbios fabris de Moscou, Ecaterimburgo e São Petersburgo, Bogdánov tem plena consciência de que esses ainda são camponeses, cuja experiência social, ainda que desgarrada espacialmente do campo, remete-os para a Mir. Em um importante estudo sobre as organizações trabalhadoras russas pré-revolucionárias, Nikolai Mikhailov identificou diversos elementos presentes na vida laboral dos operários russos que remetiam diretamente às tradições campesinas da obshchina, como a punição do ostracismo aos maus trabalhadores e a luta corporativista pela restrição de vagas de trabalho aos operários com origem em determinado local [2]. São esses trabalhadores, que vivem em um estado de sociabilidade ambíguo entre o campo e a cidade, que formam o grupo social para o qual Bogdánov se dirige.
O assentamento de trabalhadores do laboratório químico onde trabalha Menni localiza-se em meio a um parque, cujas residências são iluminadas pelo reflexo do sol sobre as forragens. Para além dessa breve descrição, Bogdánov nos fornece uma imagem mais precisa da paisagem urbana quando descreve a colônia de crianças, um centro educacional que se encontra presente em todas as cidades marcianas: “Grandes edifícios de dois andares com os já conhecidos tetos azuis se espalham por entre jardins com córregos, lagoas, áreas para brincadeiras e ginástica, campos de cores e jardins de ervas medicinais, além de pequenas casas para animais e pássaros”.
O caráter idílico das cidades marcianas também é ressaltado na descrição que Leonid faz do museu de arte, em companhia de Nella, pedagoga e mãe de Netti: “O museu se localizava em uma pequena ilha, no meio de um lago, conectado às margens por meio de uma pequena ponte. A construção retangular, cercada por um jardim cheio de fontes e camas de cores azuis, brancas, negras e verdes, era luxuosamente adornada por fora e banhada de luz por dentro”.
Não há na paisagem urbana de Marte quaisquer máculas produzidas pelo processo anárquico de colonização do espaço pelo capital. O laboratório de Menni é subterrâneo e seus trabalhadores vivem em meio a um parque. O espaço onde são educadas as crianças amalgama espaços humanos cuidadosamente planejados e elementos da flora e fauna marcianas; o museu é cercado por flores e fontes e nos faz pensar em um quadro impressionista de Monet.
O espaço natural se funde ao espaço urbano. Bogdánov afasta na descrição que faz de uma fábrica pesada todos os traços que determinam o caráter insalubre da produção fabril de seu tempo: “A fábrica era completamente livre de fumaça, fuligem, odores e poeira. As máquinas, banhadas em uma luz que iluminava tudo (…) operavam metodicamente sob o ar fresco, cortando, serrando, aplainando e perfurando gigantescas peças de aço, alumínio, níquel e cobre”.
Podemos perceber na descrição que Bogdánov faz do espaço urbano um ponto de intersecção com a hostilidade e desconfiança que a Intelligentsia russa dedicou historicamente as cidades modernas. Bogdánov parece concordar com Tolstói. Não há espaço no comunismo avançado para as “horrendas chaminés das grandes fábricas”. Essa ojeriza é um elemento constituinte da tradição revolucionária russa e adentrou as décadas iniciais do Estado soviético.
O medo das cidades como fonte corruptora da alma russa sempre correu forte entre os eslavófilos [3], que viam nas cidades o caos inerente a modernidade ocidental. As cidades – sempre pensadas a partir dos grandes centros urbanos ocidentais – eram vistas como ninhos de criminalidade, dissidência, pobreza, doenças e vícios. O ódio eslavófilo a tudo que é citadino encontrava-se presente tanto em meio à nobreza e setores mais reacionários da sociedade russa quanto na própria Intelligentsia radical do século XIX. Para aqueles as cidades carregam dentro de si a sedição que varreu a Europa em ondas revolucionárias e regicidas; para esses, as cidades são centros de pobreza e injustiça social e que trazem consigo todas as tragédias do capitalismo.
Exemplos de condenação moral à vida urbana proliferam na tradição literária da Intelligentsia russa. Podemos citar a título de exemplo a obra Viagem de São Petersburgo a Moscou (1790) de Aleksandr Radishchev, importante autor iluminista e considerado um dos precursores da Intelligentsia radical, que descreve as cidades como antros insalubres e imorais. Entre os populistas essas críticas eram ainda mais frequentes: Sofia Perovskaya, importante figura do movimento Narodnaya Volya, culpou os estímulos artificiais da vida urbana pelo amadurecimento sexual precoce das meninas; Nikolai Zlatovratski via as cidades como “encarnações de força sinistras”. Bakunin acreditava que as cidades não mereciam nada menos que a total destruição.
Existe uma tradição “urbanófoba” na literatura de ficção-científica russa que foi pouco estudada e que nos permite refletir sobre a impressão de seus autores sobre o espaço urbano. Talvez a obra inaugural da ficção-científica russa seja Fromtheyear4338: Lettersfrom St. Petersburg, de Vladimir Odoiévski. Nessa obra, Odoiévski apresenta uma grande megalópole sem nome, que veio a existir a partir da conurbação entre São Petersburgo e Moscou.
Odoiévski descreve uma cidade idílica – bastante parecida com as cidades marcianas – e se utiliza dessa cidade para descrever a superação do debate entre “eslavófilos” e “ocidentalistas”. Sua cidade é adornada com várias maravilhas tecnológicas, porém tal cidade somente é possível de existir na Rússia, cuja ortodoxia garantiu a sobrevivência do Estado enquanto o resto da Europa caiu em ruínas (Odoievski, 2007).
Alguns anos depois, Vladimir Taniêev, em sua obra utópica Communist States of the Future (1879), vislumbrou um futuro de comunas agrárias autogestionadas, organizadas em Federações. Cada comuna teria 2000 habitantes e as cidades teriam funções meramente administrativas, sem residentes fixos.
Já no século XX, a ficção russa foi inundada por obras anti-urbanas. Podem ser citados a obra The Cruel City (1907), de Pavel Dnieprov, que retrata São Petersburgo como um bloco de gelo cujo interior queima com luxúria; e os movimentos artísticos dos “socialistas mujiques” e “poetas citas”, que condenavam as cidades em favor de uma visão idílica do campo. Sergei Iesênin referiu-se às cidades como “um labirinto onde os homens perdem sua alma”. Alexander Blok, Pilniak eIvanov-Razumnik projetavam em seus poemas a cidade como um espaço de solidão e ausência de comunidade.
A hostilidade para com a urbanidade capitalista, temperada por uma tradição de nostalgia bucólica, se encontrava nas raízes do socialismo russo, cindido entre o apreço pela capacidade produtiva das cidades e terror pelos males sociais do industrialismo; pelo desprezo pela “idiotia” do campo e o desejo por uma vivência ditada pelos ritmos da natureza. Depositário dessa tradição, Bogdánov, em Estrela Vermelha, tentou operar a fusão entre os aparelhos urbanos e uma natureza cuidadosamente domesticada. Sua solução narrativa nos remete à teoria arquitetônica das cidades-jardins, bastante em voga nas primeiras décadas do século XX.
A ideia de cidade-jardim originou-se a partir da obra de Ebenezer Howard, Tomorrow: A Peaceful Path to Real Reform, de 1898, e depois reeditada sob o título Garden Cities of Tomorrow, em 1904. Howard propôs em sua obra uma reforma radical dos espaços urbanos como resposta ao rápido processo de êxodo rural em decorrência da industrialização e consequente inchaço das cidades. Esse processo levava à especulação do valor imobiliário em prejuízo da comunidade, estimulando a favelização e isolamento dos munícipes, além da acentuada flutuação nos preços dos alimentos, que produziam em sua época seguidas ondas de fome.
As cidades-jardim seriam conectadas por meio de um centro urbano maior que serviria de hub entre as diversas cidades e forneceria atividades produtivas mais especializadas, coordenando de forma planejada as vocações das cidades a ela conectadas.
O movimento da cidade-jardim ressoou junto aos anseios da intelectualidade socialista e povoou a imaginação dos primeiros planejadores urbanísticos soviéticos. Importantes nomes do socialismo russo, notadamente entre narodistas e anarquistas, produziram na primeira década do século XX seus próprios projetos. Nomes como Piotr Kropotkin em Fields, Factories, And Workshops; Or, Industry Combined With Agriculture And Brain Work With Manual Work (1898) e Aleksandr Tchayanov em Journey of my Brother Alexei to the Peasant Utopia (1906) produziram elaboradas utopias urbanas no afã de superar a dicotomia entre o campo e a cidade. Bogdánov, com sua obra Estrela Vermelha, é uma personagem dentro dessa tradição.
Bogdánov reafirma o mundo urbano como espaço de convivência central no socialismo marciano, porém sua cidade não é a cidade capitalista. Sua fábrica não é a fábrica alimentada por carvão e vapor, mas a fábrica movida à energia elétrica. Seus trabalhadores não são reificados pelo trabalho alienado que visa tão somente a reprodução ampliada do capital, mas: “centenas de trabalhadores que se movem constantemente entre as máquinas. (…) não há traço de ansiedade em seus rostos, cujas únicas expressões são de quieta concentração. Eles parecem inquisitivos, observadores eruditos que não interagem com tudo o que ocorre ao seu redor”.
Ao se dirigir para os trabalhadores russos, cuja força de trabalho lhes é expropriada e posta a serviço das máquinas, Bogdánov apresenta o trabalhador marciano, mestre da maquinofatura, que supervisiona a produção totalmente automatizada. Ao descrever uma fábrica impoluta – mais próxima de um laboratório do que de uma fábrica russa –, Bogdánov aponta para as terríveis condições de trabalho do proletariado russo sujeitos à existência laboral mais insalubre.
Bogdánov cria a partir da descrição de funcionamento da fábrica marciana aquilo que Fredric Jameson classifica como “enclave utópico”, i.e., a composição de um espaço imaginário dentro de um espaço social real. A partir desse enclave, a utopia marciana torna-se um reflexo negativo que permite aos trabalhadores enxergarem no possível, no extrapolado, as condições históricas objetivas em que se realiza o mundo para além das ilusões ideológicas que atenuam e ocultam as relações de exploração [4].
A descrição do funcionamento da fábrica não pode ser desvinculada do espaço da cidade em Estrela Vermelha. A dicotomia cidade/campo carrega diversos sentidos e seu debate tem uma história própria, que atravessa momentos distintos, configurando-se em sistemas conceituais polarizados: de um lado cidade/ocidente/indústria/capitalismo; do outro a obshchina / eslavofilia / agricultura / nativismo.
A descrição de uma sociedade empiriomonística é o objetivo principal de Bogdánov. A partir do desenvolvimento da visão de mundo laboral, oriunda do domínio técnico da maquinofatura, a classe trabalhadora faz avançar a causalidade produtiva que torna irrelevante quaisquer dicotomias: mente e matéria, sujeito e objeto, cidade e campo, trabalho manual e trabalho intelectual. Assim como a energia na maquinofatura se converte livremente entre diversas formas (térmica, elétrica, mecânica, nuclear), também são cambiáveis todas as formas de labor. Ao desenvolver aspectos da produção marciana, Bogdánov tem como objetivo imagético delinear o funcionamento de uma sociedade que superou os limites estruturais impostos a si mesma pelo caráter fetichista da produção capitalista.
Estrela Vermelha insere-se na longa tradição do gênero publicista russo. Em seu cerne encontramos a subsunção da arte em relação à vida enquanto ferramenta orientadora da ação política. A raiz desse criticismo é a Realnaia Kritika, desenvolvida por Belinski nos anos 1840, um método de interpretação que buscava tornar a linha existente entre a vida e a arte diáfana e extrair do texto o processo de criação artística a partir da análise concreta dos contextos históricos, sociais e psicológicos.
A Realnaia Kritica seria posteriormente radicalizada pelos críticos materialistas dos anos 1860, que extrapolam o realismo de Belinski para além da literatura, condicionando o realismo à própria ação política da Intelligentsia. A literatura é mimesis da vida, um reflexo pálido das forças sociais que atuam subjacentes ao processo criativo.
Tchernichévski, em sua tese “o belo é a vida” defendeu que “arte pela arte” produz meramente tipos universais a partir de homens reais, particulares, e por isso é sempre incompleta. O criticismo de Bogdánov é herdeiro do realismo crítico de Pissarev e Tchernichevki em sua integralidade. Bogdánov enxergava nesse hiato entre o universal artístico e o particular real as mesmas dicotomias presentes nas mais diversas esferas da experiência humana. Somente por meio da perfeita harmonia entre “forma” e “conteúdo” seria possível unificar a arte em um sistema monístico superior capaz de guiar o coletivo na criação de uma arte verdadeiramente proletária, fundamental para a constituição da visão de mundo proletária.
Bogdánov constrói por meio da narrativa ficcional suas respostas às questões colocadas por narodistas e marxistas; eslavófilos e ocidentalistas; urbanizadores e desurbanizadores. A partir de sua obra o autor justapõe às condições existentes de produção que lhes são contemporâneas extrapolações tecnológicas que objetivam produzir aquilo que Darko Suvin categorizou como conceito definidor – Novum – da ficção-científica: o estranhamento cognitivo, i.e., a extrapolação do real que permite ao leitor desanuviar as relações de opressão às quais se encontra submetido.
A cidade marciana é o produto final do processo formativo de uma sociedade urbana a qual por sua vez é descrita por Henri Lefrebve como um processo de dominação imposto pela industrialização que absorve a produção agrícola. Lefevbre enxerga esse fenômeno por meio do avanço do processo de valorização do espaço que passa a organizar a produção e produzir descontinuidades no desenvolvimento histórico do espaço. Tais descontinuidades se acumulam até um determinado ponto crítico, quando então ocorre uma explosão que lança no espaço os diversos fragmentos que compõem a cidade. Essas descontinuidades representam o ímpeto totalizante do capital que metamorfoseia o espaço-obra em espaço-produto, que carrega a marca da mercadoria e transforma os espaços em valores de troca, cujos fins e usos são sempre historicamente determinados [5].
O espaço marciano é citadino, industrial, porém a partir da definição de Lefebvre, não é urbano. Marte ultrapassou todas as fases críticas de seu desenvolvimento e a explosão de suas cidades não apenas causou danos irreparáveis ao ecossistema marciano como levou ao desaparecimento do campo enquanto espaço de reprodução social.
A revolução marciana decorre desse fato. A cidade descrita por Bogdánov é consequência da superação dessas descontinuidades cuja última fase crítica resulta em uma explosão final que reconfigura o espaço e as experiências. Essa explosão lança a arte, a ciência e trabalho por todo o espaço. Já não mais a cidade é o espaço de reprodução do capital, mas se torna o espaço de realização do ser genérico do homem: seu valor enquanto mercadoria desaparece e passa somente a existir enquanto espaço planejado, enquanto quartel na luta eterna entre as forças produtivas marcianas e a natureza.
*Pedro Ramos de Toledo é mestre em história pela USP.
Referências
Aleksandr Bogdánov. Estrela Vermelha. Tradução: Ekaterina Vólkova e Américo Paula Vaz de Almeida. São Paulo, Boitempo, 2020.
Nikolai Tchernichévski. O que fazer?. Tradução: Angelo Segrillo. Curitiba, Prismas, 2015.
Notas
[1] Zhenotdel (женотдел), acrônimo para “Seção das Mulheres”, foi um bureau hierarquicamente centralizado e submetido executivamente ao Comissariado do Bem-Estar que tinha por objetivo operacionalizar o processo de emancipação feminina e atrair as mulheres para a causa socialista.
[2] MIKHAILOV, Nicolai. “Non-Party Worker’s Organizations in St. Petersburgand the Provinces Before and During the First Russian Revolution.” In: PIRANI, Donald Fitzer; Wendy Z. Goldman; Gis Kessler; Simon (Ed.), A Dream Deferred: New Studies in Russian and Soviet Labour History, pp.30-45. Bern: Peter Lang, 2008.
[3] É importante ressaltar que a “eslavofilia”, i.e., a crença no caráter único do povo russo, cuja particularidade projeta unicidade tanto a sua história quanto aos seus possíveis devires, não é um termo politicamente carregado. Seu significado flui de acordo com as diversas conjunturas históricas que o invoca para legitimar ou deslegitimar diversos projetos políticos. É essa dubiedade que Lênin ataca em “A Herança que renunciamos” ao apontar que a eslavofilia aproxima os narodistas dos setores autocráticos russos e nessa aproximação acabam por rejeitar a herança iluminista das gerações radicais de 1830 e 1840.
[4] JAMESON, Fredric. Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions. New York: Verso, 2005.
[5] LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte, UFMG, 2004.