Forças Armadas e genocídio

Imagem: Luiz Armando Bagolin
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Por CARLA TEIXEIRA*

Há uma tentativa de descolar a instituição militar dos crimes cometidos na pandemia, jogando uma cortina de fumaça que permita entrever apenas as atitudes individuais

A CPI do Genocídio, prevista para ser instalada pelo Senado Federal na semana que vem, será uma excelente oportunidade para que os brasileiros conheçam a dimensão da tragédia que abate o país. À parte as consequências políticas e possível responsabilização de indivíduos, é muito importante que se faça a busca por soluções institucionais que protejam as instituições de serem utilizadas contra a vida da população, no futuro, por governantes inescrupulosos e sanguinários.

Entre os responsáveis, as Forças Armadas aparecem como as principais sócias do genocídio em curso. A presença de militares, da ativa e da reserva, em cargos civis dão a medida de interferência dos milicos nas questões políticas do país e deve nos fazer considerar que talvez o problema maior não seja Bolsonaro, mas os generais que utilizam a popularidade do capitão para se manterem no poder.

Os atuais integrantes do Alto Comando se graduaram nos anos 1970, são filhotes da ditadura, (de)formados pela “linha dura” para enxergar a esquerda, os movimentos sociais e os meios de comunicação como inimigos. O general Augusto Heleno – chefe do Gabinete de Segurança Institucional –, quando era capitão, foi ajudante de ordens do então ministro do Exército, general Sylvio Frota, demitido por Geisel, em 1977, por tentar dar um golpe e impedir a abertura democrática.

A redemocratização baseou-se num arranjo político marcado pela conciliação e acomodação. O acerto anistiou torturadores, assassinos e ocultadores de cadáveres que jamais foram submetidos a qualquer justiça de transição. Os militares e integrantes da sociedade civil que apoiaram a ditadura nunca tiveram a democracia como valor, apenas como senso de oportunidade para garantir suas posições hegemônicas na nova ordem constitucional pós-1988.

Assim, a presença de milicos no atual governo é a volta dos que não foram. Diante da crise social que sangra o país, os militares mantiveram seus privilégios, seus salários, não foram atacados pela deforma da previdência, usufruem de cargos no governo e garantem a impunidade diante dos inúmeros crimes cometidos durante a pandemia. Isso sem contar as compras superfaturadas de leite condensado, pizza, vinho e cerveja. Não foi o acaso que manteve o general Pazuello no ministério da saúde quando nenhum sanitarista aceitou o cargo para fazer campanha contra o uso de máscaras, vacinas e a favor de remédios ineficazes.

Na retaguarda do gordo favorito do presidente, o Exército comprou, produziu e distribuiu cloroquina superfaturada (pagou seis vezes mais que o valor usual), mesmo sabendo que o medicamento é ineficaz contra a covid. Houve uma demanda do ministério da saúde pela distribuição do “Kit Covid” (contendo cloroquina, ivermectina e azitromicina) durante a crise de oxigênio ocorrida em Manaus. À época, médicos do Hospital da FAB denunciaram pressão, coação e represálias para que a hidroxicloroquina fosse receitada aos pacientes com covid.

Após o retumbante fracasso no combate à pandemia que já alcança o estarrecedor número de quase 380 mil mortes, a demissão de Pazuello, do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e dos três comandantes das Forças foi uma manobra que tentou colocar os militares como garantidores da ordem institucional e (acredite se quiser!) dos princípios democráticos, versão ecoada e replicada pela mídia corporativa (a mesma que apoiou a ditadura militar).

As falas de generais afirmando que “não há risco de ruptura” demonstra que ninguém quer ser o fiador de um governo fracassado. Ademais, qualquer golpe seria redundante, pois o atual governo já é militar. Em relação à ideologia da ditadura, a mudança é de forma, não de conteúdo: a hierarquia e a ordem que se impõem através do silenciamento do conflito, modelo que tentam reproduzir para o restante da sociedade.

Recentemente, o ex-comandante do Exército, general Pujol, disse que Pazuello deveria ter pedido demissão quando Bolsonaro o impediu de comprar vacinas. Aos incautos, fica parecendo que a decisão de permanecer ministro foi exclusivamente de Pazuello (o futuro boi de piranha), mas nas Forças Armadas nenhum militar da ativa se mantém num cargo civil sem a permissão do seu comandante (no caso, o próprio Pujol). Há uma tentativa de descolar a instituição militar dos crimes cometidos na pandemia, jogando uma cortina de fumaça que permita entrever apenas as atitudes individuais.

Uma das frentes de investigação da CPI do Genocídio será a recomendação do uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19. À luz da leniência praticada durante a redemocratização – que anistiou torturadores e assassinos, preservando suas memórias ao prazer dos fanáticos de agora –, os senadores têm o dever cívico e histórico de apurar o papel desempenhado pelas Forças Armadas no genocídio e os indícios de corrupção envolvendo a compra, produção e distribuição de cloroquina. Os generais precisam prestar contas à sociedade civil. Sem apurar isso, incorreremos novamente em erro e não seremos capazes de construir uma democracia sólida no Brasil.

*Carla Teixeira é doutoranda em História na UFMG.

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