Heteronomia

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Por VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ*

A força da heteronomia é visível em casos em que foram implementadas medidas como o uso obrigatório de máscaras e o distanciamento social

Quando vivemos tempos de retrocesso, em que verdadeiras organizações criminosas assaltam o Estado, os cofres públicos, algumas instituições e institucionalidades precisam ser retomadas, como se precisássemos readquirir a legitimidade das ações, a boa fé pública, a garantia de que as ações públicas, institucionais, não reverberem somente os interesses egoístas, mesquinhos.[i]

Esse é o sentido mais geral proposto pelo conto “A sereníssima república”, em que Machado de Assis (1994) diagnostica a multiplicação de regras (sem legitimidade) e, com elas, os defeitos da coisa pública. Afinal, velhos jogadores da política, com regras novas, no jogo da “soma-zero”, terminam em confronto para agir pelas “lacunas da lei”.

Talvez um exemplo emblemático de um confronto como esse seja o dos ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023, quando grupos (de dentro do próprio Estado e de civis comuns) que rejeitavam o resultado eleitoral tentaram agir pelas lacunas da lei, buscando enfraquecer as instituições. A resposta do Estado, buscando a criminalização e a punição, com base em regras previamente estabelecidas – Constituição Federal de 1988 e Código Penal –, reafirmou o papel da heteronomia como fundamento da ordem jurídica e democrática.

Costuma-se associar heteronomia à autonomia: por oposição.[ii] Porém, o que faria mais sentido, do ponto de vista pragmático, seria a similitude negativa (por exclusão) entre heteronomia e anomia: sendo a primeira uma imposição de regras e de normas de forma coercitiva e generalista e, por exclusão, a anomia implicando na “ausência de regras” ou em sua total ineficácia.

A heteronomia se associa a um sentido de organização (normas que normalizam sistemas e funcionamentos), ao passo que a anomia aponta para o desmonte de uma “ordem projetada”, e assim implica numa desordem do status quo. Pensemos na pandemia de Covid-19: a fragilidade ou até mesmo ausência de normas sanitárias defendidas por algumas figuras políticas e até mesmo do campo médico levou a situações de quase anomia.

A força da heteronomia é visível em casos em que foram implementadas medidas como o uso obrigatório de máscaras e o distanciamento social. Nesse período de crise, a heteronomia organizou a vida coletiva mesmo frente à resistência de grupos que reivindicavam uma autonomia plena e irresponsável – os chamados “não-vacinados”, ligados a um amplo segmento que defende a “antivacina”.

Se a autonomia é associada à liberdade (ou até emancipação), “tomar as rédeas para si”, controlar as escolhas e os caminhos adotados, a heteronomia não implica exatamente no seu oposto, uma vez que as escolhas continuam (ou podem continuar) a existir; apenas, digamos assim, não são escolhas aleatórias, uma vez que ocorrem dentro de um cenário possível (previsível), mais ou menos delimitado como horizonte dos fatos. E dessa forma, a autonomia assinala a liberdade positiva (uma suposta “livre escolha”) e a heteronomia sinaliza para a “liberdade negativa”: para garantir a liberdade no exercício da cidadania, o Estado tem que ser limitado em seus poderes.

É dentro dessa “liberdade comprometida” pela margem de ação, pelos marcos decididos, pelas regras minimamente ajustadas, que a liberdade se manifesta: nunca haverá liberdade plena, total, como um ideal absoluto; especialmente porque “onde todos podem tudo, ninguém pode nada” (e, neste caso, teríamos anomia). Esse princípio pode ser observado nos debates sobre o PL das fake news (PL 2630/2020), no Brasil.

O projeto tem como objetivo regular as plataformas digitais para coibir a disseminação de desinformação, mas os grupos contrários a tal proposta (aqueles velhos jogadores da política) afirmam que se trata de ameaça à liberdade de expressão. O PL sinaliza a necessidade de se criar limites institucionais que garantam a convivência democrática no espaço público digital.[iii]

Não é que na heteronomia a liberdade seja vigiada ou que não exista autonomia nenhuma[iv], mas sim que seja definida, delimitada para todas e todos. Há um marco legal, ético, político, cultural em que certas coisas, ações, decisões, são possíveis, aceitadas, e outras são recusadas, anuladas, condenadas. Por exemplo, diante da racionalidade o negacionismo deve ser recusado, atacado em qualquer tentativa de validação.

Desse modo, a heteronomia pode ser associada ao Estado – como ente jurídico e político – ou não, como ocorre no interior de grupos, associações, comunidades, culturas, etnias que se autorregulam: uma vez que se decida coletivamente (autogestão), a decisão só tem sentido se for cumprida por todos os indivíduos (heteronomia). E implica, ainda, dizer que a força impositiva das decisões (normatização), uma vez que tenha transcorrido o momento das deliberações, deve ser geral e se fazer presente nas ações de todos os indivíduos envolvidos. Portanto, na heteronomia há forças[v] que se destacam pela generalidade, anterioridade e coercitividade.[vi]

Também vemos que a heteronomia pode decorrer da autonomia, aquele momento da liberdade criadora em que se corrigem, afirmam ou constroem caminhos e decisões[vii] – ainda que, em seguida, devam ser aceitos e realizados por todos os indivíduos. É mais usual pesar-se que a heteronomia venha listada junto ao aparato estatal, porque se pensa nas regras e nas normas como atribuições advindas do Estado: o chamado monopólio legislativo. Ocorre como se a normalização (o que é aceitável) derivasse unicamente do Estado, sendo este a única fonte geradora validável das tais normas e regras – chama-se isto de “positivismo jurídico”.

Enfim, heteronomia tem a ver com o sentido amplo de hétero ou diferente: fora, acima, distante. A norma e a regra surgem dentre os “mesmos”, a partir da vontade desses “mesmos indivíduos”, tidos em liberdade e isonomia, porém, trata-se de um resultado (norma) com uma constituição diversa, uma forma distinta, diferente das vontades iniciais. Há um processo de subsunção, que se descola da origem, das parcelas de vontades anunciadas e se converte em uma diretriz comum, uniforme, diretiva, e que volta a regular inclusive os dados, indivíduos, vontades originais.

Portanto, no Brasil, a própria institucionalização da República precisa agir sobre nós com força de heteronomia, em que não apenas acreditemos no ideal da salus publica, da saúde preservada da coisa pública, e em que todas as “saúvas” da corrupção pública sejam fortemente punidas.

Antes que isso ocorra será difícil associar o Estado brasileiro à instituição por excelência em que ocorre (transcorre) a centralização e a organização do poder, em torno dos interesses do nosso povo (dignidade), com a preservação da integridade do nosso território e a afirmação da soberania (tendo-se a soberania institucional, mas, igualmente a soberania popular).

*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da UFSCar. Autor, entre outros livros, de Bolsonarismo. Alguns aspectos político-jurídico e psicossociais (APGIQ). [https://amzn.to/4aBmwH6]

Referências


ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.

DURKHEIM, Émile. Sociologia. Org. José Albertino Rodrigues. São Paulo: Ática, 1988.

KANT, I. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1990.

MACHADO, de Assis. A sereníssima República e outros contos. São Paulo: FTD, 1994

SIDOU, J.M. Othon. Dicionário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

Notas


[i] Os ataques à educação e à saúde pública são constantes: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2025/04/10/operacao-pf-sorocaba-desvio-recursos-publicos.htm.

[ii] “Heteronomia jurídica. Sujeição do indivíduo, ou assimilação por ele, aos preceitos do direito, independentemente de sua vontade, mas decorrente da força coercitiva do Estado” (Sidou, 2016, p. 305). Mais ampla do que a ação estatal, a Ágora, na Grécia antiga, e os cantões suíços exemplificam a heteronomia enquanto “poder social” (Arendt, 1991), pois os “cidadãos” participam dos debates públicos, opinam, defendem suas teses e votam (hoje são os valores descritos como liberdade, transparência, isonomia, autonomia). A tese vencedora, então, ganha “força de lei”, impondo-se como regra abstrata, geral, comum, auto aplicada. Uma assembleia de estudantes ou docentes teria a mesma finalidade e institucionalidades semelhantes, como na decretação de uma greve. Seja na forma estatal ou não, a heteronomia adquire a força coercitiva, ou seja, a “força de lei” – “contra todos” (chamado de efeito erga omnes, uma regra auto aplicada “contra todos”, vencidos e vencedores). Isso ainda nos revela o sentido abstrato e universal da lei, como ficção jurídica que decorre da intervenção política. Pode-se dizer que, em conformidade com a fixação do poder social – para além da ação estatal – vigora o Princípio Democrático constante na democracia direta ou participativa: a heteronomia que se fundamenta na coletividade.

[iii] Em dezembro de 2024, deputados de direita (Republicanos-AM e União-RJ) propuseram novo projeto de lei sobre o tema, de caráter mais brando, como alternativa ao PL das Fake News. O texto, que se coloca como Lei de Proteção às Liberdades Constitucionais, tem sido visto como uma possibilidade de consenso. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/novo-projeto-da-centro-direita-vira-alternativa-ao-pl-das-fake-news-no-congresso/.

[iv] Até pode ser que seja, como é comum em Estados totalitários, teocracias.

[v] É interessante lembrar que, quando os romanos estendiam sua cidadania aos povos conquistados assim promoviam a heteronomia romana por meio da adesão, com a imposição da cultura do dominador. A força aqui provinha da violência, mas depois se interpunha por meio da cultura, de uma associação cultural.

[vi] “É fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que possa ter” (Durkheim, 1988, p. 52).

[vii] Aqui também se associa a ideia de legitimidade: “A minha liberdade exterior (jurídica) deve antes explicar-se assim: é a faculdade de não obedecer a quaisquer leis externas senão enquanto lhes pude dar o meu consentimento. — Igualdade, a igualdade exterior (jurídica) num Estado é a relação entre os cidadãos segundo a qual nenhum pode vincular juridicamente outro sem que ele se submeta ao mesmo tempo à lei e poder ser reciprocamente também de igual modo vinculado por ela” (Kant, 1990, p. 128). Na ordem democrática, a heteronomia exige a legitimidade das ações, ainda que na sociedade de classes prevaleça apenas o princípio. 


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