Irã e Israel na mídia brasileira

Imagem: NKTA ZV
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Por OSNAN SILVA DE SOUZA*

Enquanto a mídia brasileira reproduz narrativas seletivas, a verdadeira tragédia humanitária segue invisível

Numa ação ridícula e vexatória, a GloboNews chegou a retirar de suas redes digitais uma parte da entrevista com o embaixador israelense, na qual o jornalista Guga Chacra questiona ao diplomata por que Israel possui armas nucleares, por que bombardeou civis e sabotou negociações entre o Irã e os EUA.

Perante as ações imperialistas e as agressões perpetradas por Israel contra o Irã na madrugada do dia 13 de deste mês, a imprensa brasileira viu-se obrigada a narrar o óbvio: “Israel voltou a bombardear o Irã”, escreveu a Folha de S. Paulo, acrescentando que os ataques israelenses ocorreram “depois que negociações nucleares entre Teerã e os Estados Unidos de Donald Trump não apresentaram progresso”.

O pequeno texto na sua página no Instagram nada fala sobre a situação do país e do povo atingidos, mas prossegue expondo a narrativa do agressor: “Tel Aviv já havia dito que não permitiria que o país persa, seu inimigo histórico, adquirisse uma bomba atômica, algo que o Irã parece próximo de ser capaz de fazer”.[i]

Vê-se algo semelhante em O Globo: “Israel lança ‘ataques preventivos’ contra o Irã”.[ii] Em postagens seguintes, ambos os jornais ignoram os civis impactados e os danos sofridos pela nação agredida: “petróleo dispara e dólar ganha força após Israel bombardear o Irã” – é o que escreve a Folha no mesmo dia.[iii]

Esses e outros veículos viram-se forçados a retratar as ações do Irã como “revide” e “resposta”. No entanto, só existem civis e vítimas israelenses. O foco dos impactos causados pelos bombardeios concentra-se em Israel. Retrata-se o temor dos moradores de Jerusalém e Tel Aviv; como a população dessas cidades está sendo afetada e como buscar fugir das “respostas” iranianas.

Na verdade, não há no Brasil nenhum representante do Irã: ouve-se apenas os membros da embaixada ou de organizações israelenses. No seu programa, O É da Coisa, o jornalista Reinaldo Azevedo ironizou que a imprensa “parece roteirista de mísseis” em referência à cobertura dos jornais, que passam horas apontando onde cada artefato cai.

Mais horripilante, no entanto – ainda que não surpreendente –, foi o editorial do Estadão: “Israel exerce o direito de se defender.O programa nuclear iraniano é uma ameaça existencial a Israel e, por isso, é um alvo legítimo. Ademais, interromper a escalada nuclear do Irã será um alívio para o mundo”.[iv]

Sem indulgência, o grande jornal segue a sua linha sionista e liberal. Chama atenção ainda a maneira banal como têm sido tratados os discursos hitleristas de Trump e Netanyahu sobre o possível assassinato de Ali Khamenei.[v] Reflete-se sobre as reais chances e os desdobramentos internos e externos, mas procuramos, sempre sem êxito, uma condenação para tal ato de terrorismo. Imaginemos se Vladimir Putin se referisse dessa forma a Volodymyr Zelensky, ou qualquer representante de países fora do eixo Israel-Ocidente para com líderes europeus ou norte-americanos…

Numa ação ridícula e vexatória, a GloboNews chegou a retirar de suas plataformas digitais (censurou) um trecho da entrevista com o embaixador de Israel, Daniel Zohar Zonshine.[vi] Na ocasião, o jornalista Guga Chacra fez uma série de perguntas desconcertantes ao diplomata, que não soube como responder:

“Embaixador, o mundo estava mais seguro quando o Obama fez um acordo com o Irã, que o governo Netanyahu, que o senhor representa, fez de tudo para sabotar, e quando o Trump assumiu o poder, acabou saindo daquele acordo (…). Por que Israel tem bomba atômica? E que direito Israel tem, se não é signatário do tratado de não proliferação nuclear, de bombardear o Irã? Por que Israel não assinou o tratado de não proliferação nuclear? E por que Israel sabotou o acordo nuclear firmado entre Estados Unidos, Rússia, China, França, Reino Unido e que, segundo todos esses países e as agências internacionais de energia atômica, o Irã cumpria? Como bombardear um país e matar civis pode ser melhor do que um acordo que existia?”.[vii]

O recorte da entrevista foi retirado das redes digitais do programa, após poucos minutos de ser publicado. No X e no Instagram, os internautas cobraram a reposição do conteúdo nas redes e denunciaram a censura (subiu a hashtag “A Globo Censura”).[viii]

Precisaram recuar e disponibilizar o material com as eloquentes indagações de Chacra e as respostas acabrunhadas e desengonçadas de Zonshine. No entanto, nem mesmo a inclinação sionista da emissora consegue impedir vozes dissonantes, mesmo de jornalistas sem nenhum compromisso com o anti-imperialismo.

Ainda no estúdio da GloboNews, Marcelo Lins bagunça um pouco o cenário maniqueísta, no qual o Estado de Israel aparece como uma vítima se defendendo: “Os primeiros bombardeios de Israel contra o Irã aconteceram na madrugada de sexta. Tudo caminhava para mais uma rodada de negociações entre o Irã e os EUA, em Omã, sobre o programa nuclear iraniano. Isso poderia mostrar que as alas mais moderadas dentro do regime estavam conseguindo levar adiante alguma ideia de diplomacia, que poderia chegar em algum momento a um acordo (…). O Irã parecia disposto a isso. A partir do momento em que Israel atacou, quem ganha força? Os moderados, que defendiam a negociação, ou os radicais, que dizem que o Irã só será respeitado no dia em que tiver uma arma nuclear, porque, assim, ninguém ousará atacar uma potência militar nuclear? Pois é”.

Marcelo Lins ainda acentua que mesmo Benjamin Netanyahu afirmando já ter atingido o programa nuclear iraniano, bem como ter eliminado os seus principais cientistas e membros da cúpula militar, as forças israelenses permanecem atacando alvos eminentemente civis, “como o Ministério de Relações Exteriores ou como a televisão estatal iraniana? Órgãos de mídia são protegidos pelo Direito Humanitário Internacional. Mais ainda: “Israel tem um histórico recente em Gaza de atacar jornalistas. Nenhum outro conflito matou tanto jornalista quanto a ofensiva militar israelense em Gaza”.[ix]

O sionismo que vislumbramos no Estadão, na Folha e na rede Globo se fez presente também na bancada do Jornal da Cultura, na voz de Luiz Felipe Pondé, que sustentou o argumento disseminado pela linguagem dominante. Israel, mesmo quando inicia uma guerra, atacando outros países de maneira sorrateira, apenas defende a sua existência: “o serviço de inteligência de Israel, o Mossad, entregou um relatório em que mostrou que o Irã estava à beira de fabricar artefatos nucleares baratos. E o Irã sempre pregou a destruição de Israel desde a Revolução Iraniana (…). Israel tem muitas armas nucleares e nunca usou. Se o Irã tiver arma nuclear, se você levar em conta que o objetivo do Irã é eliminar Israel, é isso que coloca o país com a ideia de que precisa atrasar em alguns anos esse procedimento. Do ponto de vista de Israel, não tem muita saída: ou Israel procura enfraquecer o Irã, ou uma hora o Irã engole ele”.

No entanto, eloquentes foram as observações que se seguiram com Marcos Nobre, que optou por uma reflexão histórica: “Esse relatório do Mossad me lembra a Guerra do Iraque. Apareceu o Colin Powell dizendo: ‘eles têm armas químicas! Eles têm armas de destruição em massa’. É isso. Você inventa um negócio, diz que o serviço secreto é super bom… para simplesmente destruir a ordem internacional. Se um país ataca o outro, simplesmente porque pode, não tem mais regras. Qual é o único país que tem arma nuclear na região? É Israel. 90 ogivas. Qual é o único país que não assinou o tratado de não proliferação de armas nucleares? Israel. A única resposta que Israel tem sempre é a Guerra”.[x]

Colin Powell foi secretário de Estado dos EUA durante o Governo Bush. Em 2003, tentou convencer a comunidade internacional de que havia armas químicas e de destruição em massa no Iraque: “Saddam Hussein e seu regime estão escondendo seus esforços para produzir mais armas de destruição em massa”.[xi]

Na ocasião, as palavras “armas de destruição em massa” foram utilizadas 17 vezes por Colin Powell. Foi a frase que legitimou a invasão dos EUA no Iraque e uma guerra que provocou a morte de mais de 100 mil iraquianos. As tais armas químicas, biológicas e nucleares, porém, nunca foram encontradas. Quase duas décadas depois, Colin Powell descreve as suas mentiras como uma “mancha indelével em seu currículo”.[xii]

Mais patética e repugnante só a entrevista de Bush em 2006: “A principal razão pela qual nós entramos no Iraque foi que, na época, nós pensávamos que ele tivesse armas de destruição em massa. Acontece que ele não tinha – mas ele tinha a capacidade de fabricar armas de destruição em massa. Mas eu também falei do sofrimento humano no Iraque e da necessidade de avançar a pauta da liberdade.”[xiii]

“A pauta da liberdade”… Vemos algo semelhante em curso no Irã. O “regime” – para optarmos por um termo recorrente na grande imprensa – deve ruir não apenas porque é uma ameaça ao Ocidente e ao seu guardião no Oriente Médio, Israel, mas também porque “oprime mulheres e gays”. É o “regime dos aiatolás”. Uma teocracia, um governo autoritário, que censura e persegue. Assim, a aniquilação de Khamenei pode pavimentar a estrada para o florescimento de uma democracia liberal – “a pauta da liberdade” que usufrui o Iraque depois da “Operação Liberdade” liderada por EUA e Reino Unido.

A imprensa que noticia todos os dias que “Palestinos mortos sob tiros de Israel ao buscar comida se tornam rotina em Gaza”, [xiv]ou que “Ataque de Israel mata 59 palestinos que esperavam por comida em Gaza”, [xv]é a mesmo que apresenta o Estado israelense como o bastião da verdade e da luta contra “o eixo do mal”.[xvi]

*Osnan Silva de Souza é doutorando em história pela Unicamp.

Notas


[i] https://www.instagram.com/p/DK0h1xKTfgY/

[ii] https://www.instagram.com/p/DK0i-86RqD_/

[iii] https://www.instagram.com/p/DK0tFVXOwGA/

[iv] https://www.estadao.com.br/opiniao/israel-exerce-o-direito-de-se-defender/

[v] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/06/16/netanyahu-nao-descarta-matar-lider-supremo-do-ira-diz-tv.ghtml

[vi] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/video-guga-chacra-enquadra-embaixador-de-israel-e-e-censurado-pela-globo/

[vii] https://www.instagram.com/p/DK-sJJjoqDR/

[viii] https://www.brasil247.com/midia/censura-globonews-remove-video-em-que-guga-chacra-confronta-embaixador-de-israel

[ix] https://www.facebook.com/watch/?v=3178406855642817

[x]https://www.youtube.com/watch?v=FLG0eyNfhjQ&pp=ygUeam9ybmFsIGRhIGN1bHR1cmEgbWFyY29zIG5vYnJl0gcJCd4JAYcqIYzv

[xi] https://www.theguardian.com/world/2003/feb/05/iraq.usa

[xii] https://g1.globo.com/mundo/blog/sandra-cohen/noticia/2021/10/18/colin-powell-tentou-se-redimir-de-discurso-fatidico-na-onu-que-serviu-de-pretexto-para-a-invasao-do-iraque.ghtml

[xiii] https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55351024

[xiv] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2025/06/palestinos-mortos-sob-tiros-de-israel-ao-buscar-comida-se-tornam-rotina-em-gaza.shtml#:~:text=Segundo%20m%C3%A9dicos%20que%20trabalham%20no,do%20bloqueio%20total%20em%20maio.

[xv] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/israelenses-matam-a-tiros-palestinos-que-esperavam-por-comida-em-gaza/

[xvi] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2024/10/01/o-que-e-o-eixo-da-resistencia-comandado-pelo-ira-e-quem-o-integra.htm


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